Entrevista

Papa sobre as mulheres abusadas em casa: "problema quase satânico"

Francisco sobre abusos à rede de televisão italiana Mediaset: “É aproveitar-se da fraqueza de alguém que não pode se defender”

Da redação, com Vatican News

Papa Francisco /Foto: REUTERS/Gregorio Borgia/Pool

“O número de mulheres que são espancadas, abusadas em casa, também pelos seus maridos, é tão grande. Para mim, o problema é quase satânico”. Foi o que disse, na Casa Santa Marta, o Papa Francisco durante entrevista para a rede italiana Mediaset. O Pontífice tratou sobre os problemas ligados à violência, à pobreza, às consequências da pandemia e à vida dos prisioneiros.

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O encontro, coordenado pelo vaticanista Fabio Marchese Ragona, contou com a presença de Giovanna, uma mãe que perdeu o seu emprego e cuja vida familiar é feita de violência; Maria, uma mulher sem casa; Maristella, uma escoteria de 18 anos a quem a pandemia tirou a alegria; Pierdonato, ex-condenado à prisão perpétua e que cumpriu 25 anos de cárcere.

Violência

À Giovanna, que perguntou como recuperar a sua dignidade, o Papa, depois de descrever o problema da violência como “quase satânico”, respondeu: “É humilhante, muito humilhante. É humilhante quando um pai ou uma mãe bate no rosto de uma criança, é muito humilhante, e eu digo sempre, nunca bata no rosto de uma criança. Por quê? Porque a dignidade é o rosto. Esta é a palavra que eu gostaria de retomar, porque, por detrás dela, está a sua pergunta: há dignidade em mim? Qual é a minha dignidade depois de tudo isto, qual é a dignidade das mulheres espancadas e maltratadas?”.

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Francisco prosseguiu: “Uma imagem vem-me à mente ao entrar na Basílica à direita, a piedade de Nossa Senhora, Nossa Senhora humilhada diante do seu filho nu, crucificado, malfeitor aos olhos de todos, ela é a mãe que o criou, totalmente humilhada. Mas ela não perdeu a sua dignidade e olhar para esta imagem em momentos difíceis como o seu de humilhação e quando se sente perder a dignidade, olhar para aquela imagem dá-nos força… Olhe para Nossa Senhora, fique com essa imagem de coragem”.

A cultura da indiferença

A Maria, que pergunta por que razão a sociedade é tão cruel para com os pobres, Francisco disse: “você fala de crueldade, é assim, esta é a bofetada mais dura da sociedade, ignorar o problema dos outros… Estamos entrando numa cultura da indiferença onde tentamos distanciar-nos dos problemas reais, da dor dos sem-teto, da falta de trabalho. Pelo contrário, com esta pandemia os problemas aumentaram porque batem à porta aqueles que oferecem dinheiro emprestado: os agiotas”.

“Uma pessoa pobre, uma pessoa em necessidade, cai nas mãos dos agiotas e perde tudo, porque eles não perdoam. É crueldade e mais crueldade, digo isso para chamar a atenção das pessoas para não serem ingênuas; o agiota não é uma saída para o problema, o agiota traz novos problemas”.

O Papa perguntou então à mulher se, quando encontra uma pessoa que está em uma situação pior, vai dar-lhe uma mão. E depois da resposta afirmativa de Maria, ele acrescentou: “Quando se sofre, compreende-se a profundidade da dor. Tente sempre olhar de frente para os problemas, porque haverá alguém que estará pior do que você e que precisa do seu olhar para seguir em frente”.

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Deus próximo aos carcerados

Pierdonato perguntou ao Papa se há esperança para quem deseja uma mudança. Francisco respondeu com a frase da Bíblia: “a esperança nunca desilude”. E acrescentou: “Há uma ópera de que gosto muito, que diz o contrário: na Turandot sobre a esperança, diz-se que a esperança desilude sempre. Mas eu digo a você: a esperança nunca desilude”.

“Há Deus, não em órbita, mas Deus ao seu lado, porque o estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura… Deus está com cada um dos carcerados, com qualquer pessoa que passe por dificuldades… Você não diz, mas você sabe no fundo do coração que foi perdoado e que tem a esperança que não desilude… É por isso que eu posso lhe dizer uma coisa: Deus perdoa sempre, Deus perdoa sempre… A nossa força reside na esperança deste Deus que é próximo, compassivo e terno, terno como uma mãe. Ele próprio o diz, e é por isso que você tem a esperança. Obrigado pelo seu testemunho”.

A necessidade do contato face a face

Maristella abordou a questão das consequências da Covid para os jovens e perguntou como criar uma relação saudável feita de contatos e experiências. O Papa lembrou que, no lockdown, faltou o contato com amigos e amigas, com a família, porque não se podia sair e talvez a escola não funcionava.

“Precisamos de contato, contato face a face, mas temos a tentação de nos isolarmos com outros métodos, por exemplo, entrar em contato apenas por celular, as amizades do celular, a falta de diálogo concreto. Você aprendeu com esta situação que o diálogo concreto não pode ser substituído pelo diálogo on-line, que há algo mais”.

Falando do hábito dos jovens terem sempre de usar os seus smartphones, Francisco acrescentou: “Se você quiser usar o celular, use-o, mas isso não cancele o contato com as pessoas, contato direto, contato de ir juntos à escola, de passear, ir tomar um café juntos, contato real e não contato virtual. Porque se deixarmos de lado o contato real, também nós acabaremos líquidos ou gasosos, sem consistência, sempre on-line, e à pessoa on-line falta ternura”.

Crise, conflito e esperança

Giovanna tomou novamente a palavra, e depois de contar como tinha perdido tudo devido à pandemia, perguntou como é possível ter esperança. “A Covid colocou todos nós em crise”, respondeu o Papa.

“Uma maneira de sair da crise é amargurar-se, e uma amargura é, muitas vezes, acabar com tudo. O número de suicídios tem aumentado muito com a crise…. A crise está aberta, o conflito fecha você, e você não vê uma saída para o conflito, com a sua luta vejo que você está lutando para sair melhor da crise, não desistiu e isto é ótimo, está dando uma lição de resistência, uma lição de resistência às calamidades… Está fazendo uma aposta, para a vida e para a vida dos seus entes queridos de seguir em frente. Não sabe para onde, porque não tem casa nem emprego, não sabe o que fazer. Mas está olhando para a frente, está saindo melhor do que antes, mas não sozinha. Isto é importante: procure alguém, pessoas que a acompanhem”.

Um coração aberto aos pobres

A Maria, que perguntou o que pode ser feito para abrir o coração das pessoas aos pobres, Francisco respondeu: “Quando você olha para o rosto de uma pessoa pobre, o seu coração muda, porque chegou ao ‘sacramento do pobre’, digamos ‘sacramental’… porque o olhar de uma pessoa pobre muda você”.

Esta cultura do descarte, alertou o Santo Padre, não é só com os pobres, com as pessoas que têm necessidades. “Quantas vezes numa família temos a realidade de descartar os velhos, descartar os avós… quando automaticamente numa certa idade se procura uma casa de repouso para colocar no depósito, não repouso, no depósito, o seu velho, os avós, faz-se algo impiedoso…. Enviamos para fora o que não gostamos, e também isto acontece por vezes desde o início da vida: muitas vezes, aparece uma criança (e se diz, ndr): ‘Mas não…, vamos mandá-la de volta porque ela é um problema para nós’. E assim, quando a sociedade adoece, começa a descartar os pobres. Mas temos de lutar contra isto”.

Superlotação nas prisões

Pierdonato perguntou como curar as feridas dos detentos que estão ainda mais sozinhos em tempos de pandemia. Francisco explicou que a pandemia faz isto, deixa as pessoas sozinhas. Sobre o problema da superlotação das prisões, o Santo Padre afirmou: “a superlotação é certamente um muro, não é humano! Qualquer condenação por um crime cometido deve ter uma esperança, uma janela. Um cárcere sem janela não é bom, é um muro. Uma cela sem janela não é bom. Não necessariamente uma janela física, uma janela existencial, uma janela espiritual. Para poder dizer: ‘Sei que vou sair, sei que poderia fazer isto ou aquilo'”.

É por isso que a Igreja é contra a pena de morte, disse Francisco, porque na morte não há janela, não há esperança, se fecha uma vida. “Há esperança do outro lado, mas não há nenhuma aqui. É por isso que a prisão deve ter uma janela”.

O Papa relatou então a experiência de um prisioneiro não crente que trabalhava com madeira. Um visitante aconselhou-o a ler o Evangelho. “Recebeu o Evangelho, começou a ler alguns trechos. No meu coração (disse, ndr) algo aconteceu, aquele muro que eu tinha à minha frente caiu, abriu-se’ e como ele era um bom carpinteiro fez isto (o Papa mostra a escultura de madeira feita pelo prisioneiro, ed.), e disse-me: ‘Esta é a minha experiência desde que conheci Jesus’. Isto foi feito por um prisioneiro que viu que com Jesus que o muro caiu e que havia uma janela de vida”.

Relação com Deus colocada à prova

Mariastella perguntou então como poderia, na sua idade, ter uma relação com Deus e mantê-la. O Santo Padre recordou que no lockdown tudo vai à prova, também a relação com Deus; “A relação com Deus não é uma coisa linear que corre sempre bem, a relação com Deus tem crises como qualquer relacionamento de amor numa família…. Pegue o Evangelho, no Evangelho está a palavra de Deus que lhe ajustará mais uma vez: tenho medo dos pregadores que querem curar a vida em crise com palavras, palavras, palavras. A vida em crise é curada com proximidade, compaixão, ternura. O estilo de Deus”.

“O Evangelho lhe dá isto. Parecerá um pouco estranho para alguns, mas se você me dissesse: “Padre, zangar-se com Deus é pecado? Dizer: ‘Senhor, eu não te entendo…’. É uma forma de rezar! Muitas vezes ficamos zangados com o pai, com a mãe. As crianças irritam-se com os seus pais porque pedem mais atenção. Não tenha medo de se zangar com Deus, você deve ter a liberdade de uma criança perante Deus. Quando você se zanga com o seu pai e a sua mãe não é bom, mas saiba que o seu pai e a sua mãe amam você; você se zanga com Deus porque isto ou aquilo não está bem, mas você sabe que Ele o ama e Ele não se assusta, porque Ele é pai e sabe como podemos reagir, nós que somos todas crianças perante Deus. Deve ter a coragem de dizer ao Senhor todos os sentimentos que você tem. Evangelho na mão e o coração pacificado”.

As felicitações de Francisco

Em conclusão, o Papa dirigiu-se diretamente aos telespectadores e perguntou: “O que você pensa do Natal? Que tenho de sair e comprar isto ou aquilo… OK, mas o que é o Natal? É uma árvore? Uma estátua de um menino com uma mulher e um homem ao seu lado? Sim, é Jesus, é o nascimento de Jesus, pare um pouco e pense no Natal como uma mensagem de paz”.

“Desejo-lhes um Natal com Jesus, um verdadeiro Natal. Será que isto significa que não podemos comer? Que não podemos festejar? Não, façam festa, comam de tudo, mas o façam com Jesus, isto é, com paz no coração. E a todos vocês que estão me ouvindo, desejo-lhes um Feliz Natal. Façam festa, dêem presentes, mas não se esqueçam de Jesus. O Natal é Jesus que vem, Jesus que vem tocar o seu coração, Jesus que vem tocar a sua família, que vem até você, à sua casa, ao seu coração, à sua vida. É fácil conviver com Jesus, ele é muito respeitoso, mas não se esqueça d’Ele. Feliz e Santo Natal a todos. E rezem por mim”!

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