Entrevista

Drama dos refugiados é responsabilidade de todos, diz especialista

América Latina não está longe do drama vivido pelos refugiados, destaca Professor de Teologia Moral Fundamental e Ética das políticas de imigração na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma

Kelen Galvan e Danusa Rego
Da redação, com colaboração de Cícero Lemes

Padre René Micallef fala sobre raiz do problema vivido pelos imigrantes / Foto: Arquivo Pessoal

Padre René Micallef fala sobre raiz do problema vivido pelos imigrantes / Foto: Lubos Rojka/PUG

Na segunda parte da entrevista sobre o drama vivido pelos refugiados na Europa, o professor de Teologia Moral Fundamental e Ética das políticas de imigração do Departamento de Teologia Moral na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, padre René Micallef, destaca a responsabilidade de cada pessoa para a solução deste problema.

“Não há ninguém que se encontra realmente distante da realidade dos refugiados e dos imigrantes pobres”, enfatiza padre Micallef. As notícias têm evidenciado fatos ocorridos na Europa, porém o especialista recorda que há realidades tristes em outros continentes. “Conheço bem a situação na América Central, no México, na Guatemala. Conheço o sofrimento dos haitianos que entram no Brasil passando pelo Equador e o Peru. Tenho estudado as redes migratórias na África e na Ásia”.

É sempre possível se isolar do pobre, fechando-se para não ver o problema, porém, padre Micallef aponta que é preciso “formar o coração e a mente” para agir em favor das pessoas marginalizadas do mundo. “De forma séria, calma, constante e fundamentada, buscando entender e transformar a estrutura social injusta que nos cerca com o nosso empenho político e associativo”.

A seguir, leia a segunda parte da entrevista 

A foto da criança encontrada morta na costa da Turquia evidencia a urgência e a gravidade do problema dos refugiados. Sabemos que esta é uma entre milhares de histórias anônimas. O senhor acredita que o impacto da foto pode ser um divisor de águas para resolver este problema?

Dado que a sociedade civil pan-europeia é ainda muito fraca, e não é realista imaginar uma mudança a partir de baixo, depende muito da coragem dos políticos importantes como Merkel, Hollande e Cameron. Podemos usar a onda de empatia gerada as partir desta foto para demonstrar a liderança que se espera deles neste momento e fechar o capítulo da política mesquinha do asilo inaugurado com o Regulamento de Dublin. Ou podemos esperar umas semanas até quando nós esquecermos essa foto, e não fazer nada.

Certamente, os jornalistas e diretores tem uma grande responsabilidade: devem ir além do sensacionalismo e das montanhas russas das emoções e ajudar a gente a conhecer estas histórias, a entender o que vivem estas pessoas. E se hoje as pessoas não são mais capazes de acompanhar os documentários sérios e que educam quanto aos problemas sociais e políticos, é preciso, talvez, propor telenovelas e filmes dramáticos que façam entender o sofrimento das pessoas reais de hoje e não das famílias burguesas dos séculos passados. Certamente, para um diretor, é muito fácil esmiuçar os efeitos desta foto. Basta isolar e destacar o fato entre tantos outros dos jornais cotidianos, escolher uma história onde a vítima é local e o acusado estrangeiro para transformar o “outro” de pequeno anjo inocente a um monstro voraz.

O senhor acredita que a solução para este problema esteja associada à superação da “globalização da indiferença” da qual Papa Francisco fala frequentemente?

Certamente, mesmo sabendo que esta expressão não me agrade muito. Há muita empatia em nosso mundo, e nas últimas décadas se faz muito para promover e defender os direitos humanos. Penso que o problema é que somos bombardeados de notícias tristes e de imagens de gente que sofre, e acabamos nos tornando insensíveis ou colocamos filtros para não ver essas imagens. Sempre nos limitamos a ler as notícias esportivas, aquelas sobre celebridade e sobre futilidades, evitando tudo aquilo que diz respeito ao sofrimento do outro, sobretudo depois de uma dura jornada de trabalho.

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Acredito que seja justo se proteger do balanço das emoções e, em vez disso, formar o coração e a mente para agir em favor das pessoas marginalizadas do mundo, de forma séria, calma, constante e fundamentada, buscando entender e transformar a estrutura social injusta que nos cerca com o nosso empenho político e associativo.

A raiva e a tristeza que provoca a foto de uma criança afogada não nos deixa nunca indiferentes. A indiferença, da qual fala Papa Francisco, diz respeito àquilo que fazemos depois com essas fortes emoções que podem ser canalizadas para fomentar em nós a virtude moral que nos serve para construir um mundo melhor. Ou então pode se transformar em cinismo ou pessimismo… e é essa a verdadeira indiferença que mata.

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Como as pessoas comuns, aquelas que também estão fisicamente distantes dessa realidade, podem ajudar ou se empenhar para a solução do problema?

Não há ninguém que se encontra realmente distante da realidade dos refugiados e dos imigrantes pobres. Conheço bem a situação na América Central, no México, na Guatemala. Conheço o sofrimento dos haitianos que entram no Brasil passando pelo Equador e o Peru. Tenho estudado as redes migratórias na África e na Ásia.

Certamente, é sempre possível se isolar do pobre e do outro, fechando-se em zonas residenciais luxuosas, exclusivas e protegidas, para não ver o problema. Por isso é necessário abrir o coração aos estrangeiros. Afinal, cada um de nós deve reconhecer que há um estrangeiro, um desconhecido, uma voz incômoda e diferente no fundo do nosso coração, que necessita saber acolher, dia após dia. O outro é muitas vezes mais próximo, muito próximo a mim, daquilo em que acredito ser “eu mesmo”.

Penso que a acolhida e a xenofobia se enraizam no nosso modo de tratar aquela parte do “Eu” que não se enquadra completamente com a imagem que queremos projetar de nós mesmos. Esse esforço quotidiano para acolher a alteridade presente em nós é tarefa de todos, também daqueles que vivem nos locais mais remotos da Siberia ou da Amazonia onde nenhum refugiado gostaria de se abrigar.

O que a União Europeia poderia fazer?

A UE somos nós, não é um rico soberano centenário qualquer que mora em Bruxelas e resolve todas as crises dos seus pobres subalternos jogando dinheiro no ar. Não é Papai Noel. Somos nós, o povo europeu soberano que deve exigir dos nossos representantes que encontrem um modo justo e equilibrado para acolher estas pessoas, para resolver os conflitos no mundo, para desmascarar e punir aqueles que fornecem armas e fomentam os conflitos por algum “interesse nacional” obscuro.

Somos nós os que devemos condenar os jogos mesquinhos feitos por nossos representantes, os quais em nosso nome tratam a Europa como uma senhora idosa a ser explorada, depenada, por interesse de outros membros da União, mas evitando as onerações, a responsabilidade e os deveres recíprocos de solidariedade que nascem entre associados iguais e adultos.

Devemos despertar e descobrir-nos concidadãos, superar a fina diplomacia do passado e não ter medo de dizer que existem políticos e governos ainda xenofóbicos e racistas na UE e que a maneira com a qual algumas autoridades e comunidades lidam com os refugiados e imigrantes nas fronteiras e no centro de nossa bela e civilizada pátria europeia é simplesmente vergonhoso.

Não somos simplesmente “políticos estrangeiros”, somos também nossos representantes: nas instituições da União representam todos os concidadãos Europeus, e despreza-se os direitos humanos dos estrangeiros, precisa ter a coragem de fazê-los recordar o que representa a União Europeia. Não podemos ser europeus e desprezarmos o outro, negando os seus direitos e tratando-os como um animal. A UE é a antítese de Auschwitz…quem não entende e insiste em fabricar e comercializar o medo do outro nos corredores do poder da Europa não deve ser tolerado.

Onde a Europa deve investir o dinheiro?

Na minha opinião, tem que dar vistos a refugiados em países vizinhos ao conflito, em vez de construir muros e ter que resgatar mortos ou quase mortos do mar… certamente não deve parar de salvar as pessoas no mar, mas esta não é a solução!

Deve-se lutar contra o trabalho sem registro e a exploração, em vez de ser mesquinho ao dar o status de refugiado ou proteção humanitária e de gastar muito dinheiro para expulsar os requerentes de asilo “rejeitado”. Precisa oferecer cursos de línguas e ajuda aos imigrantes para converter os seus títulos de estudos em títulos europeus.

Infelizmente, a Europa organiza um congresso após o outro cada vez que aparece uma foto que sacode a consciência. Neste congresso os nossos políticos tomam decisões demagogas ou surreais – como bombardear as embarcações vazias de traficantes – sem concluir nada para afrontar o problema real, se não esperar que as pessoas esqueçam aquela foto, para em seguida retomar o jogo em que o mais inteligente assume sobre os outros a própria responsabilidade. Esperamos que possam um dia organizar uma conferência em que tomem decisões sérias e eficazes para resolver os problemas reais dessas pobres pessoas.

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