DE VOLTA À VIDA

Francisco propõe 'um plano para ressuscitar' diante da emergência Covid-19

Uma reflexão assinada pelo Santo Padre foi publicada no site Vida Nueva, na qual ele aplica a ressurreição de Cristo à atual pandemia

Da redação, com Vatican News

Papa durante a Audiência Geral no início deste mês / Foto: Vatican Media

O Papa Francisco redigiu uma reflexão em que faz uma conexão entre a ressurreição de Jesus e a atual crise em que a sociedade mundial está inserida. A reflexão foi publicada nesta sexta-feira, 17, no site do periódico espanhol Vida Nueva.

Um plano para ressuscitar

Por Francisco

“Eis que Jesus veio ao seu encontro e lhes disse: ‘Alegrai-vos!’” (Mt 28, 9). É a primeira palavra do Ressuscitado depois que Maria Madalena e a outra Maria descobriram o túmulo vazio e se encontraram com o anjo. O Senhor veio ao seu encontro para transformar sua dor em alegria e consolá-las em meio à aflição (cfr. Jr 31, 13). É o Ressuscitado que quer ressuscitar as mulheres a uma nova vida e com elas a humanidade inteira. Quer que iniciemos a participar da condição de ressuscitados que nos espera. Convidar à alegria pode parecer uma provocação, e inclusive, uma atitude de mau gosto diante das graves consequências que estamos sofrendo pelo Covid-19. Não são poucos os que poderiam pensá-lo, assim como os discípulos de Emaús, como um gesto de ignorância ou de irresponsabilidade (cf. Lc 24, 17-19). Como as primeiras discípulas que foram ao túmulo, vivemos rodeados por um clima de dor e incertezas que faz com que nos perguntemos: “Quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós?” (Mc 16,3) Como faremos para levar adiante esta situação que nos transborda completamente? O impacto de tudo o que acontece, as graves consequências que se apresentam e vislumbram, a dor e o luto pelos nossos entes queridos nos desorientam, desencorajam e paralisam. É o peso da pedra do túmulo que se impõe diante do futuro e que ameaça com o seu realismo, sepultar toda a esperança. É o peso da angústia das pessoas vulneráveis e idosas que passam a quarentena na absoluta solidão, é o peso das famílias que não sabem como conseguir um prato de comida em suas meses, é o peso dos profissionais da saúde e servidores públicos que estão exaustos e desanimados… esse peso que parece ter a última palavra.

Sem dúvida, chega a ser comovedor destacar a atitude das mulheres do Evangelho. Diante das dúvidas, do sofrimento, da perplexidade em frente à situação e incluindo o medo da perseguição e de toda a situação que elas poderiam passar, foram capazes de se colocar em movimento e não se deixarem paralisar com o que estava acontecendo. Pelo amor do Mestre, e com esse típico, insubstituível e abençoado gênio feminino, foram capazes de assumir a vida como vinha, desviar com astúcia os obstáculos para estar perto do seu Senhor. Ao contrário de muitos dos Apóstolos que ficaram paralisados pelo medo e a insegurança, que negaram o Senhor e escaparam (cf. Jo 18, 25-27), elas, sem esquivar nem ignorar o que acontecia, sem fugir nem escapar, souberam simplesmente estar e acompanhar. Como as primeiras discípulas que, no meio da obscuridade e do desconsolo, carregaram suas bolsas com aromas e se puseram a caminho para ungir o Mestre sepultado (cf. Mc 16, 1). Nós pudemos, no tempo, ver muitos que foram levar a unção da corresponsabilidade para cuidar e não pôr em risco a vida dos outros. Ao contrário dos que fugiram com a ilusão de se salvarem a si mesmos, fomos testemunhas de quantos vizinhos e familiares se isolaram com esforço e sacrifício para ficar em suas casas e assim bloquear a difusão. Pudemos descobrir que muitas pessoas que já viviam sofriam a pandemia da exclusão e da indiferença, seguiram se esforçando, acompanhando e apoiando-se para que esta situação seja (ou fosse) menos dolorosa. Vimos a unção derramada por médicos, enfermeiros e enfermeiras, funcionários de mercados, lixeiros, cuidadores, motoristas, forças de segurança, voluntários, sacerdotes, religiosas, avós e educadores, e muitos outros que se dedicaram a entregar tudo o que possuíam para dar um pouco mais de dedicação, cuidado, calma, e ânimo à situação. Todavia a pergunta que se ouvia era a mesma: “Quem rolará a pedra do túmulo para nós?” (Mc 16, 3), todos eles não deixaram de fazer o que sentiam que podiam e tinham que dar.

E foi precisamente ali, no meio de suas ocupações e preocupações, que as discípulas foram surpreendidas por um anúncio impressionante: “Não está aqui, ressuscitou”. Sua unção não era uma unção para a morte, mas para a vida. Seu velório e acompanhamento do Senhor, também na morte e na maior desesperança, não foi em vão, mas lhes permitiu serem ungidas pela Ressurreição: não estavam sós, Ele estava vivo e as precedia no seu caminho. Somente uma notícia transbordante seria capaz de romper o círculo que lhes impedia ver que a pedra tinha sido tirada, e o perfume derramado tinha maior capacidade de expansão do que aquilo que as ameaçava. Esta é a fonte da nossa alegria e esperança, que transforma as nossas ações: nossas unções, entregas… nosso velar e acompanhar de todas as formas possíveis deste tempo, não são e nunca serão em vão; não são entregas para a morte. Cada vez que participamos da Paixão do Senhor, que acompanhamos a paixão dos nossos irmãos, vivendo inclusive a própria paixão, nossos ouvidos escutaram a novidade da Ressurreição: não estamos sozinhos, o Senhor nos precede no nosso caminho removendo as pedras que nos paralisam. Esta boa notícia fez com que as mulheres voltassem em seus passos para buscar os Apóstolos e os discípulos que permaneciam escondidos para contar-lhes: “A vida arrancada, destruída, aniquilada na cruz despertou e voltou a palpitar de novo” (1). Esta é a nossa esperança, que não nos poderá ser roubada, silenciada ou contaminada. Toda a vida de serviço e amor que vocês entregaram no tempo voltará a palpitar de novo. Basta abrir uma fresta para que a Unção que o Senhor quer nos doar se expanda com uma força incontrolável e nos permita contemplar a realidade desoladora com uma visão renovada.

E como as mulheres do Evangelho, também nos convida mais uma vez a voltar sobre nossos passos e deixarmos nos transformar por este anúncio: o Senhor, com sua novidade, pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade (Evangelium gaudium, 11). Nesta terra desoladora: o Senhor se empenha em regenerar a beleza e fazer renascer a esperança: “Eis que estou fazendo coisas novas, estão surgindo agora e vós não percebeis?” (Is 43, 18b) Deus jamais abandona seu povo, está sempre junto com ele, especialmente quando a dor se faz mais presente. Se há algo que aprendemos neste tempo é que ninguém se salva sozinho. As fronteiras caem, os muros desabam, e todos os discursos fundamentalistas se dissolvem diante de uma presença quase imperceptível que manifesta a fragilidade à qual estamos sujeitos. A Páscoa nos convoca e convida a recordar dessa outra presença discreta e respeitadora, generosa e reconciliadora capaz de não romper o caniço quebrado nem apagar o pavio já fraco da chama (cf. Is 42, 2-3) para fazer palpitar a vida nova que nos quer presentear a todos. É o sopro do Espírito que abre horizontes, desperta a criatividade e nos renova na fraternidade para dizer presente (ou seja, estou aqui) diante da enorme e imperativa tarefa que nos espera. É preciso discernir e encontrar o pulso do Espírito para impulsionar junto com outras dinâmicas que podem testemunhar e canalizar a vida nova que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história. Este é o tempo propício do Senhor, que nos pede para não nos conformarmos nem ficarmos satisfeitos e menos ainda justificarmo-nos com lógicas substituíveis ou paliativas que nos impeçam de assumir o impacto e as graves consequências que estamos vivendo. Este é o tempo propício para nos animarmos a uma nova imaginação do possível com o realismo que apenas o Evangelho pode nos proporcionar. O Espírito, que não se deixa prender nem instrumentalizar com esquemas, modalidades ou estruturas fixas ou decaídas, nos propõe associarmo-nos a seu movimento capaz de “fazer novas todas as coisas” (Ap 21, 5).

Neste tempo nos demos conta da importância de “unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral” (2). Toda a ação individual não é uma ação isolada, para o bem ou para o mal, mas traz consigo consequências para todos, porque na Casa Comum tudo está interligado; e se as autoridades sanitárias ordenam o confinamento nos lares, é o povo que torna possível, consciente da sua correponsabilidade em bloquear a pandemia. “Uma emergência como a do Covid-19 é derrotada em primeiro lugar com os anticorpos da solidariedade” (3). Lição que romperá todo o fatalismo no qual estávamos imersos e permitirá voltar a sentirmo-nos artífices e protagonistas de uma história comum e, assim, responder conjuntamente a tantos males que atingem milhões de irmãos ao redor do mundo. Não podemos nos permitir de escrever a história presente e futura em detrimento ao sofrimento de tantos. É o Senhor que nos voltará a perguntar: “Onde está teu irmão? (Gn 4, 9), na nossa capacidade de resposta, oxalá se revele a alma dos nossos povos, este reservatório de esperança, fé e caridade onde fomos gerados e que, por tanto tempo, vimos anestesiado ou silenciado.

Se atuarmos como um só povo, unido diante de outras epidemias que nos rodeiam, podemos ganhar um impacto real. Seremos capazes de atuar com responsabilidade diante da fome que muitos sofrem, sabendo que temos alimentos para todos? Continuaremos olhando para o outro lado com um silêncio cúmplice diante destas guerras fomentadas por desejos de domínio e de poder? Estaremos dispostos a mudar os estilos de vida que mergulham tantos na pobreza, promovendo e animando-nos a levar uma vida mais austera e humana que possibilite uma divisão equitativa dos recursos? Adotaremos como comunidade internacional as medidas necessárias para deter a devastação do meio ambiente ou seguiremos negando a evidência? A globalização da indiferença seguirá amenizando e tentando o nosso caminho… Esperemos que nos encontre com os anticorpos necessários da justiça, da caridade e da solidariedade. Não tenhamos medo de viver a alternativa da civilização do amor, que é “uma civilização da esperança: contra a angústia e o medo, a tristeza e o desalento, a passividade e o cansaço. A civilização do amor se constrói no dia a dia, de modo ininterrupto. Pressupõe o esforço comprometido de todos. Supõe, para isso, uma comprometida comunidade de irmãos”. (4)

Neste tempo de tribulação e luto, é o meu desejo que todos possam fazer a experiência de Jesus, que sai ao teu encontro, te saúda diz: “Alegrai-vos” (Mt 28, 9). Que seja essa a saudação que nos mobilize a convocar e amplificar a boa nova do Reino de Deus.

Notas

1. R. Guardini, El Señor, 504.

2. Carta enc. Laudato si’ (24 maio 2015), 13.

3. Pontifícia Academia para a Vida. Pandemia y fraternidad universal. Nota sobre la emergencia COVID-19 (30 de março de 2020), p. 4.

4. Eduardo Pironio, Diálogo con laicos, Buenos Aires, 1986.

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