Religiosa scalabriniana e sacerdote jesuíta refletem sobre pedido incansável do Papa, nestes 10 anos de pontificado, por uma “cultura do encontro”
Julia Beck
Da redação
Nestes 10 anos de pontificado, o Papa Francisco pediu incansavelmente para que os fiéis católicos promovessem uma “cultura do encontro”. O termo, que parte de uma visão teológica e pastoral do Santo Padre – e é carregado de profundidade, tem seu primeiro grande destaque na segunda viagem apostólica internacional do Pontífice à Terra Santa, em 2014.
Em Jerusalém, no 50º aniversário do histórico encontro do Papa Paulo VI com o Patriarca Atenágoras I, Papa Francisco e o Patriarca Ecumênico Bartolomeu protagonizaram um abraço e beijo da paz. Para muitos, o encontro foi sinônimo de superação de séculos de “desencontros” entre as Igrejas Católica e Ortodoxa.
Na época, o mundo acompanhou atentamente os gestos dos dois líderes religiosos. Ações estas que expressaram na prática aquilo que Francisco promoveu com palavras desde os primórdios de seu magistério em 2013, a “cultura do encontro”.
Para compreender melhor este conceito incentivado pelo Santo Padre – e que não se limita a um encontro ecumênico ou inter-religioso, mas também engloba um encontro com os migrantes, refugiados, pobres e com os irmãos de forma geral, é preciso primeiramente destacar o encontro com Deus.
Encontro com Deus
O membro da Coordenação do Centro de Estudos e Ação Social (Ceas), padre Marcos Augusto Brito Mendes, SJ, recorda que, antes de Jesus, Deus já tomava a iniciativa de se encontrar com a humanidade por meio dos profetas.
“Deus quer sempre se encontrar com seu povo e estabelecer conosco uma Aliança. Jesus, Filho de Deus, é por si só o Encontro definitivo de Deus que se faz gente para nos resgatar, pois Deus não quer perder nenhum de nós (Jo 6:39). Mas esse Deus que vem ao nosso encontro respeita a cada um de nós, Deus não se impõe, Deus espera que, na nossa liberdade, nós O acolhamos”, reflete.
A scalabriniana Irmã Rosa Maria Martins Silva lembra que a base de qualquer atitude humana e cristã está na busca por Deus. “Nós cristãos temos como fundamento Jesus de Nazaré e temos a graça de nos encontrarmos com Ele por meio da Palavra, do Pão partilhado”.
Escuta, diálogo e respeito
Quem acolhe a Deus, indica o sacerdote, está interessado em escutar, dialogar, ser presença e, principalmente, aderir a seu Reino e Projeto de Vida e Justiça. “Nosso Deus respeita a nossa alteridade, e deseja que nós aprendamos em nossas relações com o Divino, mas também uns com os outros, que possamos desenvolver o respeito com a alteridade”.
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De acordo com o presbítero, todo católico deve saber que só se constrói o Reino de Deus a partir do diálogo entre as diferenças. É nesse encontro, explica o jesuíta, que surge o novo e que o Reino de Deus brota, quando nas relações se estabelecem abertura e respeito.
Cultura do encontro simples
Em homilia na Casa Santa Marta, em 2016, Francisco pediu aos fiéis que trabalhassem por uma cultura do encontro simples, assim como fez Jesus: “não só vendo, mas olhando, não apenas ouvindo, mas escutando, não só cruzando-se com as pessoas, mas detendo-se com elas, não só dizendo “que pena, pobrezinhos!”, mas deixando-se arrebatar pela compaixão”.
Padre Marcos enfatiza que, com esta fala, o Santo Padre quer ressaltar que a vida não é feita de atos extraordinários, mas que a vida se constrói no ordinário, no cotidiano. Nesse ordinário, o sacerdote defende que é preciso valorizar o “gastar tempo” com as pessoas, a começar com a família, partindo sempre do mandamento do amor.
“No amor eu posso ver as pessoas vulneráveis como irmãs, a quem sinto dever moral de ajudar por não aceitar que elas vivam em tal situação de vulnerabilidade. Ao ver o outro como irmão em Cristo, não estou vendo um qualquer, estou o acolhendo como um semelhante a mim, como parte da mesma família que pertenço, pois compreendo o que significa dizer e rezar a um Pai que é nosso”
– Padre Marcos Augusto Brito Mendes
“Aprendendo a ‘amar o próximo e amar a si mesmo’ teremos a possibilidade de realmente desenvolver um encontro amoroso com Deus, que é Seu santo desejo. No amor eu posso ver as pessoas vulneráveis como irmãs, a quem sinto dever moral de ajudar por não aceitar que elas vivam em tal situação de vulnerabilidade. Ao ver o outro como irmão em Cristo, não estou vendo um qualquer, estou o acolhendo como um semelhante a mim, como parte da mesma família que pertenço, pois eu compreendo o que significa dizer e rezar a um Pai que é nosso”, disse.
Periferias existenciais
A “Cultura do encontro” está associada a outro termo bastante utilizado por Francisco em seu papado: “as periferias existenciais”. O pedido do Santo Padre é para que esta cultura não fosse aplicada apenas nas realidades próximas, mas também nas realidades onde a dignidade está ameaçada.
Todos os que estão colocados à margem da sociedade estão na periferia existencial, afirma Irmã Rosinha. A religiosa recorda que o Pontífice frisou certa vez que “as periferias existenciais estão repletas de solidão”. É preciso encontrar as pessoas que estão nesta situação, incentiva.
“É preciso encontrá-los e quem nos ensina exemplarmente como fazer isso são os evangelhos. Jesus de Nazaré nos catequiza como fazer esse encontro com e nas periferias existenciais na Igreja e fora dela. Atenção às periferias geográficas é fundamental”, defende.
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“Jesus traz para o centro todas as pessoas. O que Ele deseja é promover a cultura da inclusão em oposição ao mundo que promove a cultura da exclusão”
– Padre Marcos Augusto Brito Mendes
Migrantes e refugiados
A cultura do encontro é também associada no magistério do Papa Francisco aos migrantes e refugiados. Este apelo tornou-se essencial neste período de grande crise migratória e é proposto pelo Pontífice aos moldes de Jesus de Nazaré, um encontro cristão, observa Irmã Rosinha.
As características básicas deste encontro cristão, explica a religiosa, são a aproximação sequenciada dos cinco sentidos: tato, olfato, audição, paladar, visão. “No encontro cristão não basta olhar, é preciso ver, não basta aproximar, é preciso tocar, não basta falar é preciso fazer, exercitar a compaixão. O encontro cristão remete ao paladar, no sentido de que, me encontrando, sinto o sabor, degusto, rumino, antes, durante e depois a alegria do encontro. A cultura do encontro nos leva a uma experiência de sinergia, de cumplicidade, de saída de si”.
Irmã Rosinha comenta que acolher o refugiado e o migrante não é tarefa fácil. “O encontro ou a práxis exige mais que a teoria. Não existe acolhida sem encontro. Posso dizer que acolhi, mas posso não ter encontrado. O encontro vai para além da acolhida”, defende.
Fraternidade
Padre Marcos frisa que a fraternidade é uma marca da cultura do encontro, quando se aprende a amar o outro como um irmão em meio às individualidades.
“Não estou falando de individualismo, mas do encontro de individualidades que aprendem a se respeitarem em suas diferenças, confrontam e superam suas divergências em busca do bem comum”, pontua.
A fraternidade floresce, reforça o sacerdote, quando todos aprendem a conviver e amar as diferenças, encarando-as não como obstáculo, mas como riqueza. Segundo o presbítero a fraternidade é a busca do bem comum, ela cria comunhão, comunidade, é fruto de diálogo, respeito e encontro.
A Carta Encíclica Fratelli Tutti é retomada por Irmã Rosinha. “Todos irmãos, fraternidade. Não é possível fraternidade sem encontro. Porque a fraternidade exige acolhida, relação verdadeira e sincera, aproximação”, observa.