Era bem esperada uma encíclica sobre a fé, ainda no Pontificado de Bento XVI. De fato, ele já havia escrito uma sobre a caridade (Deus caritas est – Deus é Amor) e uma sobre a esperança (Spe salvi – Salvos na Esperança). Faltava uma sobre a fé, para completar a trilogia de ensinamentos pontifícios sobre as virtudes teologais, dons preciosos recebidos de Deus no Batismo.
E foi o Papa Francisco quem nos deu a encíclica Lumen Fidei (A Luz da Fé), sobre a fé, bem no decorrer do Ano da Fé. Ele mesmo, no entanto, já havia dito, quando a anunciou há poucas semanas, que seria uma encíclica “escrita a quatro mãos”, uma vez que seu predecessor já havia trabalhado, antes de abdicar ao pontificado, em vista de sua publicação.
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.: Leia a Encíclica Lumen Fidei na íntegra
A encíclica nos vem, não apenas para a melhor vivência do Ano da Fé, mas para compreender e viver melhor a própria fé. Não é um texto para ser analisado com mera curiosidade intelectual, ou com o intuito de fazer uma análise teológica sobre ele; seria muito pouco. Bem mais, ele deve ser lido e degustado com o desejo de compreender e acolher cada palavra dita com amor de pai por quem fala com a sabedoria adquirida ao longo de uma existência e com o desejo de comunicar coisas essenciais à vida dos filhos…
É interessante notar que o Papa não fala da fé a partir das “verdades da fé”: o primeiro capítulo traz o título – "acreditamos no amor". Nosso ato de fé é precedido pelo amor de Deus, que se manifesta ao mundo e nos faz experimentar seu amor salvador; a experiência do amor precede a fé! Não é também isso que acontece entre as pessoas? Quando duas pessoas se amam verdadeiramente, elas passam a acreditar profundamente uma na outra…
É o que já ouvimos do Papa emérito Bento XVI em outras ocasiões: nossa fé e nossa experiência religiosa não decorrem de uma doutrina perfeita, nem de um ideal ético altíssimo, mas do encontro com a pessoa de Deus, amoroso e fiel, que se revelou, veio ao nosso encontro e nos amou. É a isso que o Papa se refere quando fala, na encíclica, sobre Abraão, nosso pai na fé, a experiência histórica e mística do Povo de Israel, a vinda do Filho de Deus ao mundo e a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
“Ele me amou e por mim se entregou na cruz”, exclama São Paulo, depois de fazer a experiência do encontro com Jesus Cristo no caminho de Damasco; sua fé foi vivíssima e inabalável porque experimentou o “mistério” do amor de Deus, manifestado em Cristo Jesus. Para os apóstolos e para os grandes cristãos, que foram e são os santos, falar da fé não significou tratar de verdades abstratas, bem elaboradas pela razão humana; eles falavam, antes de tudo, da pessoa de Deus e de Jesus Cristo, de sua ação envolvente, especialmente de seu amor misericordioso e de sua providência. As verdades da fé e da moral, também elaboradas bem como doutrinas, seguem depois disso.
A encíclica fala, no capítulo 2º, que é preciso crer para compreender; de fato, a fé é um dom sobrenatural, que nos é dado como luz forte, que nos faz perceber melhor aquilo que queremos compreender. É o contrário do que, geralmente, as pessoas imaginam: não é “ver para crer”, mas “crer para ver”. Na ordem da fé, podemos dizer: quem crê compreende mais e melhor. Não é que a fé dispensa o esforço da razão e o estudo: fé e razão completam-se e não devem ser opostas, nem tidas como excludentes.
Um belo capítulo trata da transmissão da fé: esta é uma das preocupações sérias da Igreja em nossos dias. O Papa fala que a Igreja é “a mãe da nossa fé”. Esta não é um fato individual e subjetivo: aquilo que cremos foi transmitido a nós, vem de longe, dos apóstolos! “Transmiti-vos aquilo que eu mesmo recebi”, observou São Paulo (1Cor 15,3). Cremos no testemunho de quem creu primeiro; e temos motivos bons para fazer isso! Cremos com quem já creu, os mártires, os santos, os mestres da fé ao longo da história. Cremos e temos o compromisso de continuar a transmitir hoje essa preciosa herança da fé!
Enfim, a encíclica trata das obras da fé. “A fé, sem as obras, é morta em si mesma”, já advertia São Tiago! Mas não se trata de opor as obras à fé: estas são decorrência e fruto da fé verdadeira. Crendo, nós nos colocamos na sintonia com o plano de Deus sobre este mundo e sobre a nossa vida. E então, surgem as obras da fé e cessam as obras contrárias à fé, porque são contrárias a Deus e ao seu amor!
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
@DomOdiloScherer