Deslocamentos internos, foco da mensagem do Papa para o Dia do Migrante e Refugiado 2020, devem ser mais discutidos pela sociedade, afirma socióloga
Julia Beck
Da redação
“Um drama invisível que a crise mundial causada pela pandemia da Covid-19 exacerbou”. Foi desta forma que o Papa Francisco se referiu, em sua mensagem para o Dia do Migrante e do Refugiado 2020 que será celebrado neste domingo, 27, à realidade das pessoas deslocadas dentro de seus próprios países. O assunto escolhido pelo Pontífice é, de acordo com a socióloga Lúcia Rangel, uma pauta que merece ser mais discutida pela sociedade.
A socióloga explica que os deslocamentos de pessoas ocorrem principalmente pela busca de melhores condições de vida. No Brasil, recorda a estudiosa, há muitas décadas as pessoas se deslocam para o sudeste (mais especificamente para a cidade de São Paulo) porque é uma região com melhor padrão de vida. “No mundo, as migrações ocorrem por razões muito semelhantes e a decisão de emigrar não é nada fácil”.
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“Emigrar envolve muito sofrimento e coragem, portanto as pessoas só emigram se de fato a vida fica muito difícil na terra de origem. E a vida fica muito difícil quando a população enfrenta calamidades como grandes secas, guerras, conflitos étnicos, pobreza extrema, fome, perseguição religiosa…”, complementou Lúcia.
“Emigrar envolve muito sofrimento e coragem, portanto as pessoas só emigram se de fato a vida fica muito difícil na terra de origem”
Lúcia Rangel
A estudiosa recordou também que além da dificuldade de tomar a decisão de se deslocar, as famílias sofrem também com um forte preconceito.
Em sintonia com o Santo Padre, que pede acolhimento, proteção, promoção e integração dos deslocados internos, a socióloga explica que estas ações são parte da generosidade cristã, esta que pode ser visível através de instituições que trabalham em prol dos migrantes e refugiados no Brasil e também no mundo.
Jesus e a realidade dos deslocados internos
Na mensagem para o Dia do Migrante e Refugiado deste ano, o Papa traz para o centro de sua reflexão a realidade de descolamento enfrentada por Jesus, quando ainda era um bebê, forçado, junto a sua família, a fugir do Rei Herodes para se salvar. O pensamento do Santo Padre e a relação com a realidade dos deslocados internos ficam ainda mais evidentes com a escolha do tema deste ano: “Forçados, como Jesus Cristo, a fugir”.
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“Infelizmente, nos nossos dias, há milhões de famílias que se podem reconhecer nesta triste realidade. (…) Em cada um deles, está presente Jesus, forçado – como no tempo de Herodes – a fugir para Se salvar. Nos seus rostos, somos chamados a reconhecer o rosto de Cristo faminto, sedento, nu, doente, forasteiro e encarcerado que nos interpela (cf. Mt 25, 31-46). Se O reconhecermos, seremos nós a agradecer-Lhe por O termos podido encontrar, amar e servir”, escreveu Francisco.
Igreja imersa na realidade da migração
A diretora do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Irmã Rosita Milesi, destaca que migrantes internos em geral vivem situações e circunstâncias semelhantes à de todos os migrantes. “No mundo, são mais de 40 milhões de pessoas deslocadas internamente”, reforçou.
Wagner Cesário, assessor nacional da Cáritas Brasielira, organismo da Igreja que realiza trabalhos também de acolhimento e ajuda para migrantes e refugiados, aponta que os deslocamentos dentro do país ocorrem em sua maioria como consequência de ações humanas sobre as realidades naturais.
“No mundo, são mais de 40 milhões de pessoas deslocadas internamente”
Irmã Rosita Milesi
Tais ações, de acordo com Cesário, provocam desequilíbrios climáticos, como secas prolongadas e grandes inundações; desastres e crimes ambientais, como queimadas e rompimento de barragens; implantação de grandes empreendimentos, como usinas hidrelétricas e parques eólicos; e avanço do agronegócio que estimula o êxodo dos pequenos agricultores do meio rural. O assessor nacional da Cáritas também cita a criminalidade como um fator de deslocamento.
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Padre Agnaldo Júnior, diretor nacional do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR) destaca que de fato a novidade não está no fenômeno, que faz parte da história humana, mas sim na atual magnitude e nas más condições em que milhares de pessoas são forçadas a se deslocarem, seja dentro de seus próprios países ou atravessando alguma fronteira internacional.
“A importância da temática desse ano se dá por chamar a atenção da sociedade em geral sobre a necessidade de tirar essas pessoas da invisibilidade, reconhecer o direito delas deslocarem em busca de proteção e melhores condições de vida para elas e suas famílias. Assim como ajudar a todos a reforçar as redes de solidariedade para assisti-las em suas necessidades, promovendo uma integração humana e solidária”, frisou o sacerdote.
Em consonância com padre Agnaldo, Cesário destaca que por isso é tão importante para a Igreja, a partir da palavra do Santo Padre, discutir, envidar esforços e pôr em prática as iniciativas de atenção na perspectiva de minimizar e oferecer uma vida digna a quem chega com essas marcas de sofrimento.
Ações de acolhida
Segundo o assessor nacional da Cáritas, o organismo tem desenvolvido ações de prevenção aos deslocamentos, favorecendo, por meio da educação ambiental e do uso de tecnologias sociais, a convivência com biomas, de implantação de grandes empreendimentos, e apoiando famílias que vivem nas comunidades atingidas por desastres ou crimes ambientais, como as que vivem no entorno de barragens rompidas e nas margens dos rios.
Nesta sexta-feira, 25, a Cáritas vai promover um encontro formativo nacional para cerca de 100 agentes que atuam em todo o país. Esse momento terá como eixo central a discussão da mensagem do Papa para o Dia Mundial e o tema da migração interna.
“A importância da temática desse ano se dá por chamar a atenção da sociedade em geral sobre a necessidade de tirar essas pessoas da invisibilidade, reconhecer o direito delas deslocarem em busca de proteção e melhores condições de vida para elas e suas famílias”
Padre Agnaldo Júnior
Irmã Rosita revela que, nesta semana, o IMDH, juntamente com várias outras organizações da Rede CLAMOR Brasil, organizou várias atividades e buscou colaborar com a sensibilização da sociedade, especialmente, através de reuniões virtuais. Uma das atividades foi a divulgação de cards com as frases centrais da mensagem do Papa Francisco, são elas: “É preciso conhecer para compreender. É necessário aproximar-se para servir. Para reconciliar-se é preciso escutar. Para crescer é necessário partilhar. É preciso coenvolver para promover. É necessário colaborar para construir”.
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Além de um informativo online e a divulgação de vídeos com testemunho de migrantes venezuelanos, atendidos pelo IMDH, o instituto potencializou a ampliação do apoio a crianças migrantes e refugiadas, com a distribuição semanal do Kit “Angel Gabriel”. “Este é um kit nutricional para garantir alimento a bebês com menos de 3 anos de idade, cujas famílias estão em alta vulnerabilidade e não conseguem assegurar a estas crianças uma nutrição básica apropriada”, contou a religiosa.
Padre Agnaldo, por sua vez, relata que, embora o trabalho do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados esteja mais voltado para os migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados que são oriundos de outros países, em algumas ações há a busca pelo atendimento de algumas pessoas que se encontram exatamente como migrantes internos, ou mesmo alguns brasileiros retornados, como por exemplo algumas famílias que estavam vivendo na Venezuela e tiveram que retornar ao Brasil devido à crise que o país vizinho vem enfrentando.
“Movidos pelo lema: acompanhar – servir – defender a população migrante e refugiada mais vulnerável em nosso país, o SJMR segue com seus cinco escritórios de atenção a essas populações nos estados do Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Minas Gerais, Amazonas e Roraima. Todo o trabalho do SJMR encontra-se relacionado a um dos cinco eixos que norteiam nossas ações: proteção – meios de vida – integração – incidência – pastoral”, concluiu.