No dia em que a Igreja celebra uma década do magistério de Francisco, Cardeal Orani e padre Rafael Solano destacam olhar do Pontífice para as periferias existenciais
Julia Beck
Da redação
“Habemus Papam!” Foi o que proclamou o protodiácono Jean-Louis Tauran às 20h12 do dia 13 de março de 2013 do balcão Central da Basílica de São Pedro. Dez anos se passaram e o primeiro discurso e gestos de Francisco seguem latentes: a indicação de um caminho de fraternidade para a Igreja, a preocupação com a evangelização e o famoso pedido de oração aos fiéis – “Não se esqueçam de rezar por mim”.
No entanto, uma cena não vista pelo mundo – e que teve a participação de um brasileiro – foi capaz de marcar o novo Papa mesmo antes de seu anúncio público, além de impactar na escolha de seu nome de pontificado.
“Trago sempre vivas na memória as palavras que Dom Cláudio (falecido em 4 de julho de 2022) me disse no dia 13 de março de 2013, pedindo-me que não me esquecesse dos pobres”, disse Francisco em telegrama endereçado ao arcebispo metropolitano de São Paulo, Cardeal Dom Odilo Scherer, por ocasião da morte do Cardeal Hummes.
Os pobres, os migrantes, os refugiados, as vítimas de violência, os enfermos e tantos outros que se encontram nas “periferias existenciais” estão, de fato, no centro de seu magistério.
Periferias existenciais
Para compreender melhor esses 10 anos de apelo do Santo Padre em prol dos “últimos”, o Cura da Catedral e vigário geral da Arquidiocese de Londrina (PR), padre Rafael Solano, afirma que é preciso olhar para o então cardeal, provincial e jesuíta Jorge Mario Bergoglio.
“Um grande leitor das realidades do mundo, mestre de noviços e um verdadeiro admirador da obra do jesuíta Michel de Certeau”, indica. Segundo o sacerdote, Bergoglio entrou neste mundo teológico e compreendeu o valor e o significado do termo “periferias existenciais”.
Esta expressão é sublinhada pelo presbítero como “muito válida”. “Está no DNA do pontificado de Francisco: uma urgência constante de entender as necessidades do mundo”, frisa.
Falar e agir
Padre Solano pontua que os que estão às margens das “periferias existenciais” não ficaram ao longo destes 10 anos apenas nos discursos e homilias do Papa. Francisco, exemplifica o presbítero, foi, muitas vezes, ao encontro deles, em lugares onde, muitas vezes, ninguém havia ido.
“E o Papa diz: temos muito a dizer e vamos lá porque eles têm também a oportunidade de serem ouvidos. A presença traz consigo uma mudança a partir de um encontro e aproximação com os que sofrem”, sublinha.
O vigário geral da Arquidiocese de Londrina recorda, então, a marcante viagem do pontífice à Ilha de Lampedusa e cita uma frase do Papa sobre os que morrem durante a tentativa de migração: as águas do mediterrâneo estão engolindo a vida de tantas pessoas que procuram um futuro diferente.
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O padre também lembra o pedido do Pontífice pelo fim dos “muros”, referente às nações que se fechavam para os migrantes e refugiados, e depois o pedido para a criação de pontes, incentivando o encontro com as culturas, pessoas e realidades.
“As realidades sociais de outros países, culturas e ambientes trazem consigo a necessidade de estabelecer caminhos novos. É onde está a beleza do pontificado de Francisco, a sinodalidade. Um novo caminho, uma nova forma de entender que a Igreja pode caminhar unida”, sinaliza.
Visita à comunidade de Varginha, no Rio
Em 2013, durante sua viagem ao Brasil, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), o Papa Francisco demonstrou, mais uma vez, na prática, o seu olhar apurado e cuidadoso com as periferias existenciais. O Pontífice visitou a Comunidade de Varginha, no Complexo de Manguinhos, na zona norte.
Durante a visita, quebrou os protocolos, abraçou e abençoou as pessoas, além de ter se encontrado de forma reservada com sete famílias. No campo de futebol da comunidade, o Santo Padre fez o discurso oficial de um palco montado na laje. Em sua fala, afirmou que, ao começar a planejar como seria sua visita ao Brasil, por conta da JMJ, mostrou um grande desejo de ter a oportunidade de visitar uma comunidade da cidade do Rio de Janeiro.
“Queria bater em cada porta, dizer “bom dia”, pedir um copo de água fresca, beber um “cafezinho”, falar como a amigos de casa, ouvir o coração de cada um – dos pais, dos filhos, dos avós… Mas o Brasil é tão grande! Não é possível bater em todas as portas! Então, escolhi vir aqui, visitar a comunidade de vocês que, hoje, representa todos os bairros do Brasil”, disse na época.
Ao relembrar o episódio, o arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Cardeal Orani Tempesta, conta que Francisco era bem espontâneo com todos que encontrou. Segundo o cardeal, a visita do Papa à comunidade foi bem difícil devido à segurança.
“Nesses lugares por onde ele passou, ele marcou. (…) O Papa fez questão de caminhar a pé e de falar sobre sua unidade com os mais carentes e necessitados”, sublinha.
Olhar que inspira
Também no Rio de Janeiro, mais um cuidado com os que padecem nas periferias existenciais: o Santo Padre inaugurou uma unidade para o tratamento de pessoas com problemas de saúde mental, especialmente dependência de drogas, no Hospital São Francisco de Assis na Providência de Deus.
“No Hospital São Francisco ele deixou um legado”, comenta Dom Orani. O cardeal lembra que foi ali, depois do Papa perguntar se o hospital desenvolvia algum trabalho na Amazônia, que foi iniciado o projeto do Barco Hospital Papa Francisco – que hoje conta com três barcos. “Foi no Rio de Janeiro que esse trabalho na Amazônia se desenvolveu, então há uma ligação muito forte com a visita de Francisco”, disse.
Dor do mundo
O arcebispo do Rio destaca que o Santo Padre aproveitou a visita para ressaltar, nas várias atividades que realizou, as dores do mundo, ou seja, as muitas periferias existenciais.
“A Igreja é especialista em humanidade e preocupada com o bem das pessoas”, lembra o purpurado. “A familiaridade, proximidade e abertura de Francisco com o povo marca não somente a mim, mas a todos que veem esse belo exemplo do Papa”, pontua.