Na tarde desta quarta-feira, 16, após ter discursado aos bispos americanos, no Santuário da Imaculada, em Washington, o Papa Bento XVI, respondeu a três questões do episcopado.
1. Foi pedido ao Santo Padre que desse sua opinião sobre o desafio do secularismo, em aumento na vida pública, e sobre o relativismo na vida intelectual, como também Suas sugestões sobre como enfrentar tais desafios do ponto de vista pastoral, para realizar uma obra de evangelização mais eficaz.
Abordei brevemente este tema em meu discurso. Acho significativo o fato de que aqui nos Estados Unidos, ao contrário de muitos países europeus, a mentalidade secular não foi colocada como intrinsecamente oposta à religião. Dentro do contexto da separação entre Igreja e Estado, a sociedade estadunidense sempre foi marcada por um respeito fundamental pela religião e de seu papel público e, se quisermos acreditar nas sondagens, o povo estadunidense é profundamente religioso. Mas não é suficiente contar com essa religiosidade tradicional e comportar-se como se tudo fosse normal, enquanto suas bases estão lentamente se corroendo. Um sério compromisso no campo da evangelização não pode prescindir de um diagnóstico profundo dos desafios reais que o Evangelho encontra diante da cultura contemporânea estadunidense.
Naturalmente, é fundamental uma correta compreensão da justa autonomia da ordem secular, uma autonomia que não pode ser separada de Deus Criador e de seu plano de salvação (cfr. Gaudium et Spes, 36). Talvez o tipo de secularismo dos Estados Unidos apresente um problema particular: enquanto permite crer em Deus e respeita o papel público da religião e das Igrejas, sutilmente reduz a crença religiosa ao mínimo denominador comum. A fé se torna aceitação passiva de que certas coisas “lá fora” são verdadeiras, mas sem alguma relevância prática na vida cotidiana. O resultado é uma separação crescente entre fé e vida: viver “como se Deus não existisse”. Isso se agrava por causa de uma visão individualista e eclética da fé e da religião, distante da visão católica, do modo de pensar da Igreja, toda pessoa acredita ter o direito de identificar e escolher, mantendo os vínculos sociais, mas sem uma conversão integral, interior à lei de Cristo. Conseqüentemente, ao invés de ser transformados e renovados no ânimo, os cristãos são facilmente tentados em se conformar ao espírito do século (cfr. Rm 12, 3). É o que constatamos no escândalo dos católicos que promovem o presumível direito ao aborto.
Em nível mais profundo, o secularismo desafia a Igreja a se reafirmar e prosseguir com determinação em sua missão no e para o mundo. Como esclarecido no Concílio Vaticano II, os leigos têm, a esse respeito, uma responsabilidade particular. Tenho a convicção de que é necessário um maior significado da relação intrínseca entre o Evangelho e a lei natural de um lado, de outro, da busca do autêntico bem humano, conforme encarnado na lei civil e nas decisões morais pessoais. Uma sociedade que tem grande consideração pela liberdade pessoal, a Igreja deve promover os seus ensinamentos em todos os níveis – na catequese, na pregação, na educação nos seminários e na universidade – uma apologética que afirme a verdade da revelação cristã, a harmonia entre fé e razão, e uma saudável compreensão da liberdade, vista em termos positivos, como libertação tanto das limitações do pecado como por uma vida autêntica e plena. Enfim, o Evangelho deve ser pregado e ensinado como uma maneira de vida integral, que oferece uma resposta atraente e verdadeira, intelectual e prática, aos problemas reais.
A “ditadura do relativismo”, em poucas palavras, é simplesmente uma ameaça à liberdade humana, que amadurece somente na generosidade e na fidelidade à verdade. Pode-se dizer muito mais, naturalmente, sobre este tema: mas deixem-me concluir, todavia, dizendo que eu acredito que a Igreja, na América, neste preciso momento de sua história, tem diante de si o desafio de reencontrar a visão católica da realidade, e de apresentá-la de modo envolvente, e com criatividade, a uma sociedade que oferece todo tipo de receitas para a auto-realização humana. Penso de modo particular em nossa necessidade de falar ao coração dos jovens, os quais, apesar da constante exposição a mensagens contrárias ao Evangelho, continuam a ter sede de autenticidade, de bondade, de verdade. Ainda resta muito a fazer em nível de pregação e de catequese nas paróquias e nas escolas, se quisermos que a evangelização produza frutos para a renovação da vida eclesial na América.
2. O Santo Padre foi questionado sobre “um certo silencioso processo” mediante o qual os católicos abandonam a prática da fé, por vezes mediante uma decisão explícita, mas, muitas vezes, afastando-se da participação na Missa e da identificação com a Igreja gradativamente.
Certamente muito disso tudo depende da redução progressiva da cultura religiosa, por vezes comparada, de modo pejorativo, a um “gueto”, que pode reforçar a participação e a identificação com a Igreja. Como acabo de dizer, um dos maiores desafios que a Igreja tem diante de si neste país é cultivar a identidade católica baseada não apenas em elementos externos, mas também em um modo de pensar e de agir radicado no Evangelho e enriquecido em base na tradição viva da Igreja.
O tema envolve claramente fatores como o individualismo religioso e o escândalo. Mas vamos ao centro da questão: a fé não pode sobreviver se não for nutrida, se não “atuar por meio da caridade”. As pessoas hoje têm dificuldade em encontrar Deus em nossas igrejas? Nossa pregação talvez perdeu o próprio sal? Isso não pode se dever ao fato de que muitos se esqueceram, ou nunca aprenderam, a rezar na e com a Igreja?
Não falo de pessoas que deixam a Igreja na busca de “experiências” religiosas subjetivas; este é um tema pastoral a ser enfrentado em termos próprios. Acho que estamos falando de pessoas que caíram fora da estrada sem ter conscientemente rejeitado a fé em Cristo, mas que, por uma certa razão, não receberam a força vital da liturgia, dos Sacramentos, da pregação. E a fé cristã, como sabemos, é essencialmente eclesial, e sem um vínculo vivo com comunidade, a fé do indivíduo não pode amadurecer. Para voltar ao ponto que acabamos de abordar: o resultado pode ser uma apostasia silenciosa.
Deixem-me agora fazer duas observações sobre o problema do “processo de abandono”, que espero que possam estimular novas reflexões. Em primeiro lugar, como os senhores sabem, torna-se sempre mais difícil, nas sociedades ocidentais, falar de modo sensato de ‘salvação’. E a salvação – a libertação da realidade do mal e o dom de uma vida nova e livre em Cristo – está no próprio coração do Evangelho. Devemos redescobrir, como já disse, modos novos e fascinantes para proclamar esta mensagem e despertar a sede de plenitude que somente Cristo pode dar. É na liturgia da Igreja, e sobretudo, no sacramento da Eucaristia, que estas realidades se manifestam de modo mais forte e são vividas na existência dos fiéis. Talvez tenhamos ainda muito o que fazer para realizar a visão do Concílio sobre a liturgia, como exercício do sacerdócio comum e como impulso para um apostolado frutífero no mundo.
Em segundo lugar, temos que reconhecer com preocupação a quase completa eclipse do sentido escatológico em muitas de nossas sociedades tradicionalmente cristãs. Como sabem, levantei este problema na encíclica Spe salvi. Basta dizer que a fé e a esperança não se limitam a este mundo: como virtudes teologais, elas nos unem ao Senhor e nos levam à realização não apenas de nosso destino, mas ao destino de toda a criação. A fé e a esperança são a inspiração e a base de nossos esforços para nos preparar à vinda do Reino de Deus. No cristianismo, não pode existir lugar para uma religião puramente pessoal: Cristo è o Salvador do mundo, e, como membros de seu Corpo e partícipes de seu múnus (função) profética, sacerdotal e real, não podemos separar o nosso amor por Ele do compromisso da edificação da Igreja e da ampliação do Reino. Na medida em que a religião se torna um assunto puramente pessoal, ela perde a sua própria alma.
Deixem-me concluir afirmando o óbvio. Os campos estão prontos para a semeadura. Deus continua a fazer crescer a messe. Podemos e devemos acreditar, juntos com o Papa João Paulo II, que Deus está preparando uma nova primavera para o cristianismo (cfr Redemptoris missio, 86). O que mais precisamos, neste específico tempo da história da Igreja na América, è a renovação daquele zelo apostólico que inspire seus pastores de modo ativo a procurar os dispersos, a curar as feridas e restabelecer os doentes; (cfr Ez 34,16). E isto, como disse, exige novos métodos de pensar, baseados num sadio diagnóstico dos desafios de hoje e num compromisso pela unidade no serviço à missão da Igreja para com as gerações presentes.
3. Foi pedido ao Santo Padre para expressar sua opinião em relação à diminuição das vocações, não obstante o aumento da população católica, e sobre as razões da esperança oferecidas pelas qualidades pessoais e pela sede de santidade que caracterizam os candidatos que decidem prosseguir.
Sejamos sinceros: a capacidade de cultivar as vocações ao sacerdócio e à vida religiosa é um sinal da saúde de uma Igreja local. Não há espaço para alguma complacência a este respeito. Deus continua chamando os jovens, mas cabe a nós encorajar uma resposta generosa e livre a esse chamado. Por outro lado, nenhum de nós é capaz de dar esta graça por certa.
No Evangelho, Jesus nos diz para rezar a fim de que o Senhor da messe envie novos operários; Ele diz também que os operários são poucos em relação à messe que é grande (cfr Mt 9,37-38).
Pode parecer estranho, mas eu penso muitas vezes que a oração – l’unum necessarium – é o único aspecto das vocações que é eficaz e nós muitas vezes o esquecemos ou o desvalorizamos!
Não falo somente de oração pelas vocações. A própria oração, que nasce nas famílias católicas, nutrida pelos programas de formação cristã, reforçada pela graça dos Sacramentos, é o meio principal mediante o qual conhecemos a vontade de Deus para a nossa vida. Na medida em que ensinamos os jovens a rezar, e a rezar bem, nós cooperamos ao chamado de Deus. Os programas, os planos e os projetos têm o seu lugar, mas o discernimento de uma vocação é, sobretudo, o fruto do diálogo íntimo entre o Senhor e os seus discípulos. Se souberem rezar, os jovens saberão o que fazer da vontade de Deus. Foi constatado que existe hoje uma grande sede de santidade em muitos jovens e embora em número menor, os que vão em frente demonstram um grande ideal e oferecem muitas promessas. É importante ouví-los, compreender as suas esperanças e encorajá-los a ajudar seus coetâneos a verem a necessidade de sacerdotes e religiosos empenhados, como também a ver a beleza de uma vida de sacrifício e de serviço ao Senhor e à Igreja.
A meu ver, muito se deve pedir aos diretores e formadores das vocações: aos candidatos, hoje, é preciso oferecer uma saudável formação intelectual e humana que os faça capazes não somente de responder às questões reais e às necessidades dos coetâneos, mas também de amadurecer em sua conversão e perseverar na vocação através de um compromisso que dure por toda a vida. Como Bispos, estejam conscientes do sacrifício que lhes é pedido quando solicitados a aliviar dos compromissos um de seus melhores sacerdotes para trabalhar no seminário. Peço a vocês que respondam com generosidade pelo bem de toda a Igreja.
Enfim, acredito que saibam por experiência que muitos de seus irmãos sacerdotes são felizes por sua vocação. Aquilo que disse em meu discurso sobre a importância da unidade e da colaboração com o presbitério se aplica também neste campo. Existe a necessidade para todos nós de deixar as divisões estéreis, os desacordos e os preconceitos e de escutarmos juntos a voz do Espírito que orienta a Igreja rumo a um futuro de esperança. Cada um de nós sabe como é importante a fraternidade sacerdotal na própria vida; ela não é apenas um dom precioso, mas também um recurso imenso para a renovação do sacerdócio e o aumento de novas vocações. Desejo concluir encorajando-os a gerar oportunidades de diálogo ainda maiores e de encontros fraternos entre seus sacerdotes, especialmente os jovens. Estou convencido de que isto produzirá frutos para seu enriquecimento, para o aumento de seu amor ao sacerdócio e à Igreja, assim como na eficácia de seu apostolado. Com estas poucas observações, os encorajo ainda mais uma vez em seu ministério junto aos fiéis confiados a seus cuidados pastorais e lhes confio à intercessão amorosa de Maria Imaculada, Mãe da Igreja.