Coluna - padre Anderson

O sagrado e o profano - valores e significados

O homem religioso, para entrar em contato com o divino, retalha a vida no mundo profano – gestos, pessoas, espaços e tempos –, os carrega de validade simbólica e os considera o lugar privilegiado do encontro com o divino. Forma-se, assim, o ambiente do sagrado que encontramos em todas as religiões.

O sagrado, de fato, é uma estrutura essencial da religiosidade, do momento em que a experiência humana de Deus é necessariamente mediada, ou seja, forçada a passar por qualquer coisa que não seja de Deus. Assim, essa “qualquer coisa” torna-se, por isso, invocador do divino; torna-se, portanto, sagrado, diverso, separado do uso profano, objeto de respeito, veneração e temor.

Nesse propósito, é emblemática a história do sonho de Jacó em Betel: o episódio quer, certamente, significar que o Deus de Israel não é prisioneiro de um lugar sagrado específico, pois pode encontrar o homem onde quer que ele esteja. Porém, a mesma história explica também por que um lugar se torna sagrado. O homem considera sagrado o lugar onde teve sua experiência com o divino. “Certo, o Senhor está neste lugar e eu não sabia”.  E tomado de temor Jacó acrescenta: “Como é digno de veneração este lugar! É a casa de Deus e a porta do céu”.

O sagrado pode incorrer em um gravíssimo perigo (que a Bíblia conhece), aquele de separar o culto da vida, introduzindo na relação com Deus e com o mundo uma espécie de dualismo: o espaço sagrado a Deus, o profano, o homem. Todavia, independente do risco evidente, o sagrado é necessário ao homem como o ar que respira. Sem espaços sagrados, tempos festivos e gestos simbólicos faltaria ao homem os sinais que Deus está na vida, que esta vida vai além das suas perdas e que um mundo novo é em gestação.

O sagrado deixa transparecer um novo horizonte de valores e significados, sem os quais seria impossível viver e esperar. O sagrado retamente entendido não funda alguma coisa de diverso do profano, alguma coisa de diverso da vida, mas funda o próprio sentido do profano e revela o fundamento da vida.

É próprio sobre este essencial e delicado relacionamento entre sagrado e vida que o discurso bíblico se compromete a fundo, mostrando toda a sua originalidade. A tradição bíblica dá amplo espaço ao sagrado; para nos convencer basta um olhar aos blocos de legislação sagrada contadas em Êxodo 25,31e 35-40 ou em Levítico 1-7. Mas, paralelamente a esta cordial e constante aceitação do sagrado, encontramos um esforço muito mais constante no superar a tentação de entendê-lo como uma zona separada, subtraída ao profano.

O dinamismo de fundo que conduziu Israel a intuir e a defender a estreita ligação entre o culto e a vida é a fé em IAHWEH, como Deus da história. O senhorio de Deus abraça todo o homem e a vida. Não é pensável, por isso, o sagrado como lugar separado e exclusivo do divino, e não existe profano como lugar no qual Deus é ausente e ao qual é desinteressado. Templo, sábado e culto permanecem, mas são endereçados à vida: são sinais que recordam o sentido que a vida e a história contém.

O culto bíblico se realiza no quadro da aliança. Está aqui a sua novidade essencial, não nas formas e nos ritos como tais, não raramente tomada emprestadas dos povos vizinhos. A aliança é, contemporaneamente, aliança do povo com Deus e das tribos entre elas: há uma dimensão religiosa e uma dimensão política. Por isso, também o culto, do lado ao aspecto fundamental da adoração, realiza um papel de conversão e missão.

Elemento sempre presente no culto bíblico é a escuta da Palavra de Deus: uma palavra que essencialmente compromete a vida. Enquanto no culto pagãos eram os ciclos da natureza que vinham representados, na liturgia bíblica são os eventos históricos – os gestos de Deus – que vêm evocados e atualizados: a liturgia impõe uma direção à história do homem. É interessante um confronto entre o profetismo bíblico e o profetismo, por exemplo, de Mari. Nos profetas de Mari os mandamentos que estes apresentam em força da revelação interessam sempre, ou quase, o setor cultual. Os profetas bíblicos ao contrário proclamam e exigem em primeiro lugar a soberania divina sobre toda a vida e a prática do direito e da justiça.


 

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