2005

Papa fez um balanço do ano em que foi eleito

Algumas passagens do discurso que o Papa Bento XVI dirigiu, na Sala Clementina, aos cardeais, arcebispos, bispos e membros da Cúria Romana, na tradicional troca de felicitações natalinas. É o balanço do Papa do ano de 2005.

Últimos dias e falecimento de João Paulo II

Voltamos com o pensamento às vicissitudes do ano que chega a seu ocaso. A nossas costas ficam os grandes acontecimentos que marcaram profundamente a vida da Igreja. Penso, antes de tudo, no falecimento de nosso querido Santo Padre João Paulo II, precedido por um longo caminho de sofrimento e de paulatina perda da palavra.

Nenhum Papa nos deixou uma quantidade de textos como ele nos deixou; precedentemente, nenhum Papa pôde visitar, como ele, todo o mundo e falar diretamente aos homens de todos os continentes. Mas, ao final, coube-lhe um caminho de sofrimento e de silêncio.

Para nós, são inesquecíveis as imagens do Domingo de Ramos, quando, com o ramo de oliveira na mão e marcado pela dor, assomava-se à janela e nos dava a benção do Senhor que se dispunha a encaminhar-se para a Cruz. Depois está a imagem de quando, em sua capela privada, tendo na mão o crucifixo, participava da Via Crucis do Coliseu, onde tantas vezes havia guiado a procissão, levando ele mesmo a Cruz.

Por último, fica a benção muda do Domingo de Páscoa, na qual, através de toda a dor, víamos resplandecer a promessa da ressurreição, da vida eterna. O Santo Padre, com suas palavras e obras, deu-nos grandes coisas; mas não é menos importante a lição que nos deu desde a cátedra do sofrimento e do silêncio.

Em seu último livro «Memória e Identidade» (2005), deixou-nos uma interpretação do sofrimento que não é uma teoria teológica ou filosófica, mas um fruto maduro através de seu caminho pessoal de sofrimento, percorrido por ele com o apoio da fé no Senhor crucificado.

Dar sentido ao sofrimento

Esta interpretação, que ele havia elaborado da fé e que dava sentido a seu sofrimento, vivido em comunhão com o do Senhor, falava através de sua dor muda, transformando-a em uma grande mensagem. Tanto ao início, como no final do livro mencionado, o Papa reconhece que se sente profundamente impressionado pelo espetáculo do poder do mal que, no século que acaba de concluir, experimentamos de maneira dramática.

Ao final do livro, ao deixar um olhar retrospectivo ao atentado de 13 de maio de 1981, e baseando-se também na experiência de seu caminho com Deus e com o mundo, João Paulo II aprofundou ulteriormente nesta resposta. […] Certamente nós temos de fazer todo o possível para atenuar o sofrimento e impedir a injustiça que provoca o sofrimento dos inocentes.

Contudo, também temos de fazer todo o possível para que os homens possam descobrir o sentido do sofrimento para que deste modo possam aceitar o próprio sofrimento e uni-lo ao sofrimento de Cristo. Desta maneira, este se difunde junto com o amor redentor e se converte em uma força contra o mal no mundo.

A resposta que aconteceu em todo o mundo à morte do Papa foi uma manifestação estremecedora de reconhecimento pelo fato de que ele, em seu ministério, entregou-se totalmente a Deus pelo mundo; uma ação de graças pelo fato de que ele, em um momento cheio de ódio e violência, ensinou-nos de novo o amor e o sofrimento ao serviço dos demais; mostrou-nos, por assim dizer, ao vivo, o Redentor, a redenção, e nos deu a certeza de que o mal não tem a última palavra no mundo […].

Jornada Mundial da Juventude em Colônia

A Jornada Mundial da Juventude ficou na memória de todos os que participaram dela como um grande dom. Mais de um milhão de jovens reuniram-se na cidade de Colônia, situada às margens do Rio Reno, e nas cidades próximas para escutar juntos a Palavra de Deus, para rezar juntos para receber os sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia, para cantar e fazer festa juntos, para desfrutar da existência e para adorar e receber o Senhor eucarístico durante os grandes encontros do sábado pela noite e do domingo.

Durante todos aqueles dias simplesmente reinava a alegria. Prescindindo dos serviços de ordem, a polícia não teve nada que fazer: o Senhor havia reunido sua família, superando visivelmente toda fronteira e barreira e, na grande comunhão entre nós, havia-nos feito experimentar sua presença.

O lema escolhido para aquelas jornadas –«Viemos adorá-lo»– continha duas grandes imagens que, desde o início, favoreceram a atitude adequada […]. Todos os que estiveram presentes não poderão esquecer do intenso silêncio daquele milhão de jovens, um silêncio que nos unia e alentava a todos, quando o Senhor no Sacramento era colocado sobre o altar. Conservemos no coração as imagens de Colônia […].

Sínodo dos bispos sobre a Eucaristia

A palavra «adoração» leva-nos a recordar o segundo grande acontecimento do qual queria falar: o Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia. O Papa João Paulo II, com a encíclica «Ecclesia de Eucharistia» e com carta apostólica «Mane nobiscum Domine» já nos havia dado as indicações essenciais e ao mesmo tempo, com sua experiência pessoal de fé eucarística, havia concretizado o ensinamento da Igreja.

Também, a Congregação para o Culto Divino, em íntima relação com a Eucaristia, havia publicado a instrução «Redemptionis Sacramentum» como ajuda prática para a justa realização da constituição conciliar sobre a liturgia e da reforma litúrgica. Além de tudo isto, era verdadeiramente possível dizer algo novo, desenvolver ulteriormente o conjunto da doutrina?

Esta foi precisamente a grande experiência do Sínodo, quando nas contribuições dos padres, pôde-se ver o reflexo da riqueza da vida eucarística da Igreja de hoje e se manifestou o caráter inesgotável de sua fé eucarística.

O que os padres pensaram e expressaram terá de se apresentar, em estreita realização com as «Proposições» do Sínodo, em um documento pós-sinodal, Só quero sublinhar uma vez mais o ponto que há pouco havíamos constatado no contexto da Jornada Mundial da Juventude: a adoração do Senhor ressuscitado, presente na Eucaristia com sua carne e seu sangue, em corpo e alma, com sua divindade e humanidade.

Para mim é comovedor ver como por toda parte, na Igreja, está despertando a alegria da adoração eucarística e como se manifestam seus frutos.

Adoração

No período da reforma litúrgica, com freqüência a missa e a adoração fora da primeira eram vistas como em contraposição: o Pão eucarístico não se nos haveria dado para ser contemplado, senão para ser comido, segundo uma objeção difundida então.

Mas na experiência de oração da Igreja já se manifestou a falta de sentido desta contraposição. Já havia dito Santo Agostinho: «…nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit; … peccemus non adorando» — «Ninguém come esta carne sem antes adorá-la… pecaremos se não a adorarmos» (cf. Enarr. In Os 98, 9 CCL XXXIX 1385).

De fato, não é que simplesmente recebamos algo na Eucaristia; é um encontro e uma unificação entre pessoas. Agora, a pessoa que nos sai ao passo e que quer unir-se conosco é o Filho de Deus. Uma unificação assim só pode realizar-se na adoração. Receber a Eucaristia significa adorar a quem recebemos.

Precisamos deste modo e só deste modo converter-nos em uma só coisa com ele. E precisamente neste ato pessoal de encontro com o Senhor amadurece depois também a missão social que está encerrada na Eucaristia e que quer romper as barreiras não só entre o Senhor e nós, mas também e sobretudo as barreiras que não separam uns aos outros.

Refletir sobre a fé…Viver a fé

Por outro lado, a reflexão sobre a fé exige também que se viva esta fé. Neste sentido, o programa proposto por João XXIII era sumamente exigente, como é exigente a síntese de fidelidade e dinâmica. Mas ali onde esta interpretação foi a orientação a guiar a recepção do Concílio, cresceu uma vida nova e amadureceram novos frutos. 40 anos depois do Concílio podemos constatar que o positivo é maior e está mais vivo do que parecia na agitação dos anos ao redor de 1968.

Hoje vemos que a semente boa, apesar de que se desenvolva lentamente, no entanto cresce, e cresce assim também nossa profunda gratidão pela obra desenvolvida pelo Concílio. Paulo VI, no discurso de encerramento do Concílio, indicou depois uma motivação específica pela qual uma hermenêutica da descontinuidade poderia parecer convincente.

Na grande discussão sobre o ser humano que caracteriza o tempo moderno, o Concílio devia dedicar-se de forma particular ao tema da antropologia. Tinha que se interrogar sobre a relação entre a Igreja e a fé por um lado, e o ser humano e o mundo de hoje por outro (ibid., p 1066 s.).

O Concílio Vaticano II, ao reconhecer e assumir com o decreto sobre a liberdade religiosa um princípio essencial do Estado moderno, retomou de novo o patrimônio mais profundo da Igreja. Esta pode ter consciência de estar deste modo em plena sintonia com o ensinamento de Jesus (cf. Mateus 22, 21), assim como com a Igreja dos mártires, com os mártires de todos os tempos.

A Igreja antiga, com naturalidade, rezava pelos imperadores e responsáveis políticos, considerando que era seu dever (cf 1 Timoteo 2, 2), mas, ao rezar pelos imperadores, recusava adorá-los, e dessa forma se opunha claramente à religião de Estado.

Os mártires da Igreja primitiva morreram por sua fé nesse Deus que se havia revelado em Jesus Cristo, e precisamente por isso morreram também pela liberdade de consciência e pela liberdade de profissão de sua própria fé, uma profissão que não pode ser imposta por ninguém, mas que somente pode ser assumida com a graça de Deus, na liberdade da consciência.

Igreja Missionária

Uma Igreja missionária, que sabe que tem de anunciar sua mensagem a todos os povos, deve comprometer-se pela liberdade da fé. Esta quer transmitir o dom da verdade que existe para todos e assegura ao mesmo tempo aos povos e a seus governos que com isso não quer destruir sua identidade e suas culturas, mas que lhes leva uma resposta que no fundo de sua intimidade buscam, uma resposta com a que não se perde a multiplicidade de culturas, mas que pelo contrário faz crescer a unidade entre os homens, assim como a paz entre os povos.

O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e alguns elementos essenciais do pensamento moderno, analisou e inclusive corrigiu algumas distorções históricas, mas nesta descontinuidade aparente manteve e fez mais profunda sua natureza íntima e sua verdadeira identidade. A Igreja, tanto antes como depois do Concílio, é a mesma Igreja uma, santa, católica e apostólica, em caminho através dos tempos […].

Quem esperava que com este «sim» fundamental à idade moderna todas as tensões enfraqueceriam e a «abertura ao mundo» transformaria tudo em harmonia pura, havia dado pouca importância às tensões interiores e às contradições da própria idade moderna; havia menosprezado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em toda constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem.

Estes perigos, com as novas possibilidades e com o novo poder do homem sobre a matéria e sobre si mesmo não desapareceram, mas que assumem pelo contrário novas dimensões […]. O passo dado pelo Concílio para a idade moderna, que de maneira bastante imprecisa se apresentou como «abertura ao mundo», pertence em definitivo ao problema perene da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre com novas formas […].

Por isso, hoje podemos volver nossos olhos com gratidão ao Concílio Vaticano II: se o lemos e recebemos guiados por uma hermenêutica adequada, pode ser e será cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja.

Eleição de Bento XVI

Por último, tenho que recordar aquele 19 de abril deste ano, em que o Colégio Cardinalício, ante meu pequeno susto, elegeu-me sucessor do Papa João Paulo II, sucessor de São Pedro na cátedra do bispo de Roma.

Uma tarefa assim estava muito além de tudo o que poderia imaginar como vocação minha. Por isso, somente graças a um ato de confiança em Deus, pude pronunciar em obediência meu «sim» a esta eleição.

Como naquele momento, peço também hoje a todos vós oração, pois conto com seu esforço e apoio. Ao mesmo tempo desejo dar graças de coração nestes momentos aos que me acolheram e me seguem acolhendo com tanta confiança, bondade e compreensão, acompanhando-me dia após dia com sua oração.

Com informações da Agência Zenit

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