Igreja celebra neste sábado, 8, o Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas; socióloga comenta situação deste crime no Brasil e no mundo
Julia Beck
Da redação
O Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas é celebrado neste sábado, 8. A data, foi instituída pelo Papa Francisco em novembro de 2014 e será celebrada pela sexta vez. Apesar da instituição da data ser recente, os esforços da Igreja contra este crime é antigo.
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Mestre em sociologia e professora de sociologia da Universidade de Taubaté (Unitau), Nilde Ferreira Balcão, conta que há 20 anos trabalhou em campo pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no estado do Mato Grosso do Sul, após denúncia de trabalho análogo ao de escravo na região.
“Na época, quem me alojou, deu os dados, participou da pesquisa foi a Pastoral do Migrante. Desde então testemunho a importância do trabalho dessa Pastoral. Aquele pessoal das carvoarias só tinha as irmãs e os padres para ouvi-los”, recorda a professora.
A socióloga afirma que o tráfico de pessoas é uma prática antiga no Brasil, já que deriva da escravidão, mas nem sempre foi considerada criminosa. “O tráfico de escravos está na constituição do nosso povo. Foram 400 anos de uma prática legalizada e costumeira. A abolição da escravatura tem pouco mais de 100 anos e até hoje sofremos suas consequências (…) É um avanço civilizacional tal prática ser considerada criminosa porque ela é horrenda”, afirma a professora.
O presidente da Comissão Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Evaristo Spengler, reforça que o dia de oração desse ano, quer despertar a consciência das pessoas para esse crime ainda invisível na sociedade.
“Queremos reafirmar o profundo compromisso da Igreja no enfrentamento ao tráfico de pessoas e na solidariedade e assistência às vítimas”, frisou o bispo. “Necessitamos em primeiro lugar que todos tomem consciência da dignidade do ser humano que não pode ser mercantilizado como instrumento de lucro”.
Realidade no Brasil e no mundo
Segundo o “Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas”, de 2018, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a nível global, os países estão detectando e reportando mais vítimas, bem como condenando mais traficantes de pessoas nos últimos anos.
O documento afirma que isso pode ser o resultado de uma maior capacidade para identificar as vítimas e/ou um aumento no número de vítimas de tráfico. “De uma perspectiva regional, o aumento do número de vítimas detectadas tem sido mais acentuado nas Américas e na Ásia”, aponta o texto.
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Dentro desta realidade, a socióloga destacou que são vários os objetivos do tráfico de pessoas, sendo que, a maioria das vítimas são para exploração sexual. “Mulheres e meninas tendem a ser maioria”, constata Nilde. De acordo com o “Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas”, mulheres e meninas somam 71% das vítimas de tráfico de pessoas no mundo. As crianças contabilizam 28% do total. Sobre as vítimas, a socióloga comenta:
“De modo geral, o tráfico de pessoas atinge aquelas que estão em situação de desespero. Em países em guerra interna, o fator de migração será uma dessas situações. O tráfico aí inclui o de seres humanos para o trabalho braçal, a escravidão sexual das mulheres ou para os jovens serem soldados. Em outros países, e esse é o caso do Brasil e de boa parte da América Latina, o fator preponderante é a situação de pobreza o que torna as pessoas vítimas dessa prática”.
No Brasil, o relatório destaca um número alto de vítimas por ano: em torno de três mil, para delitos como trabalho análogo à escravidão e servidão forçada. “Nesses casos, trata-se de uma migração interna de pessoas que são ‘arregimentadas’ para trabalhar em outro lugar do qual, depois, não conseguem mais sair. Suas condições de trabalho e de vida são degradantes. É o ‘trabalho análogo ao do escravo’”.
Nilde Ferreira Balcão
As organizações criminosas que atuam no tráfico de pessoas no Brasil dispõem de estruturas sofisticadas e estão ramificadas desde os centros urbanos até as mais longínquas regiões de fronteiras, afirma Dom Evaristo. Segundo constatado pela Comissão Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB, o interesse dessas organizações é sempre o lucro.
“Essas organizações não manipulam apenas vidas e subjugam seus corpos. Manipulam também sonhos, ideais, e a busca justa por trabalho e uma vida mais digna e segura. Muitas são as seduções, as armadilhas, as falsas promessas, os aliciamentos que se transformam num caminho de terror, e tantas vezes sem volta”.
Colocando fim ao silêncio
O “silêncio” é cúmplice do tráfico de pessoas, aponta Nilde. Para a socióloga a prática é ainda pouco reconhecida e detectada: “As vítimas são vistas como elas mesmas tendo adotado a ‘opção’ de serem traficadas. O fato é que elas pouco sabem de que estão sendo vítimas do tráfico, a não ser quando chegam ao seu destino. Dar a conhecer que essa é uma prática criminosa, esclarecer as possíveis vítimas e punir os culpados faz parte das campanhas internacionais para o fim do tráfico”, constata.
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Com as ações da Igreja em prol desta causa, a diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Irmã Rosita Milesi acredita que é possível sensibilizar e tornar as pessoas mais atentas para esta situação de exploração, sofrimento e escravização do ser humano. A religiosa ressalta que, com o grande aumento das migrações e situações de refúgio, muitos homens, mulheres, adultos, jovens e crianças correm o risco de serem vítimas do tráfico de pessoas.
“No contexto brasileiro atual, observa-se não só um aumento numérico dos fluxos migratórios; mas também uma elevada proporção de pessoas em situação de vulnerabilidade; e uma crescente dispersão geográfica das demandas da população migrante e refugiada, que reside ou transita por um número cada vez maior de municípios, em todas as regiões do Brasil. Como consequência, observa-se uma exposição elevada dessas pessoas”, sublinha Irmã Rosita.
Igreja em atenção e ação
O Papa Francisco classificou o tráfico de pessoas como “uma atividade ignóbil, uma vergonha para as sociedades que se dizem civilizadas”, recordou Dom Evaristo. O bispo explica que o enfrentamento desta realidade é um dever para a Igreja.
“Não é papel da Igreja combater o tráfico. Isso pertence aos órgãos de segurança do Estado. Cabe à Igreja o enfrentamento, desenvolvendo ações preventivas”.
Dom Evaristo Spengler
Dom Evaristo afirma que a Igreja está presente em todo o território nacional, por isso tem um potencial poderosíssimo de conscientização e prevenção ao tráfico.
Em 2019 o Vaticano lançou as “Orientações Pastorais sobre o Tráfico de Pessoas”. O bispo observa que este é um material riquíssimo para ser utilizado na conscientização. Dom Evaristo destaca que desde 2008 os bispos do Brasil realizam atividades de conscientização a nível nacional sobre este problema.
As ações da Comissão Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB são realizadas em parceria com a Comissão Justiça e Paz da CNBB, a Pastoral da Mulher Marginalizada, a Caritas Brasileira, a Rede um Grito pela Vida, Pastoral do Menor e a Comissão Pastoral da Terra. “Todas as pessoas as entidades que queiram somar-se nesse enfrentamento serão bem-vindos. É preciso unir forças e envolvendo a todos numa sólida rede de enfrentamento ao tráfico”, frisou.
O Instituto Migrações e Direitos Humanos também desenvolve e apoia projetos e ações de conscientização, sendo um deles o projeto “ATENÇÃO Brasil”. A iniciativa, implementada pelo Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas Migratórias (ICMPD), teve início no mês de fevereiro de 2018 e tem conclusão prevista para junho de 2020.
Irmã Rosita, diretora do IMDH, explica que o projeto visa fortalecer as capacidades de autoridades e instituições relevantes, aumentar a capacidade para investigações, acusações e condenações, com foco nas vítimas de tráfico; e aprimorar o serviço prestado às vítimas de tráfico de pessoas.
“Para alcançar tais objetivos, as atividades do projeto envolvem o oferecimento de capacitações (oficinas) para operadores jurídicos envolvidos na aplicação da nova lei de enfrentamento ao tráfico de pessoas (Lei 13.344/2016) e também a agentes da rede de atendimento e assistência às vítimas de tráfico”, revela a religiosa. Para Irmã Rosita, atuar na capacitação de operadores do direito e de agentes que atuam na atenção às vítimas é uma contribuição valiosa que fortalece o serviço de proteção e reinserção social de pessoas que foram vítimas.
Dom Evaristo Spengler acredita que, nos últimos tempos, muito mais pessoas se envolveram na prevenção e sensibilização através de campanhas contra o tráfico. “Muito mais pessoas estão envolvidas na assistência às vítimas. Mais pessoas conscientizam vítimas para a formulação de denúncias. Mais pessoas trabalham na incidência política contra esse hediondo crime”, completou.
O bispo reconhece que as ações da Igreja e da sociedade foram muitas, mas adverte que caminho a ser percorrido é ainda longo e difícil. “Não é tempo de comemorar avanços. Mais do que nunca é tempo de evangelizar. De recuperar o projeto que Deus tem para o nosso mundo, de somar na construção do Reino. É tempo de trabalhar incansavelmente para fortalecermos as redes de enfrentamento ao tráfico humano”.