Professor de Teologia Moral Fundamental e Ética das políticas de imigração do Departamento de Teologia Moral na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, padre René Micallef, fala sobre raiz do problema e a responsabilidade dos governos e de cada ser humano diante da questão
Kelen Galvan e Danusa Rego
Da redação, com colaboração de Cícero Lemes
O drama vivido pelos refugiados tem despertado comoção mundial nos últimos dias, especialmente diante das recentes tragédias, como a morte do menino Aylan, 3 anos, encontrado em uma praia da Turquia, e antes disso, a morte de mais de 70 pessoas encontradas em um caminhão frigorífico na Áustria.
Desde a Segunda Guerra Mundial não havia um número tão grande de refugiados no mundo. Estes são obrigados a deixar sua pátria para fugir da guerra, terrorismo ou em busca de melhores condições, para recomeçar sua vida em outros países.
Entretanto, muitos países europeus não abrem suas fronteiras para acolher esses imigrantes e, quando o fazem, não acolhem estas pessoas como deveriam.
O jesuíta, padre René Micallef, professor de Teologia Moral Fundamental e Ética das políticas de imigração do Departamento de Teologia Moral na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, afirma que a acolhida adequada dos refugiados pode gerar, até mesmo, benefícios econômicos notáveis para o país e que isso é comprovado por pesquisas.
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Nesse sentido, padre Micallef alerta que o verdadeiro problema é cultural e social. “Vivemos na época da demagogia na qual os políticos não tem uma grande visão a propor, não são capazes de sonhar por uma sociedade mais justa, não tem coragem de reconhecer os verdadeiros problemas e não se animam em fazer sacrifícios necessários para resolver os problemas pelo bem das gerações futuras e das pessoas mais frágeis. Existem políticos inteligentes, que sabem que é necessário um novo discurso político que ajude a ver o estrangeiro como uma oportunidade e um recurso, como riqueza e não como peso, políticos que saibam que abrir um pouco mais as fronteiras faz bem a economia”.
Confira a entrevista (parte 1)
Qual é a raiz do problema vivido pelos refugiados?
A raiz última é sempre a injustiça, em âmbito mundial e local – o que cria uma grande desigualdade, miséria e portanto, conflitos. Os refugiados e imigrantes procuram um lugar seguro onde possam viver tranquilos com seus filhos, um lugar onde com seu trabalho duro, possam oferecer aos seus familiares um futuro digno. Obviamente, o ser humano não é um animal amarrado à sua terra. Sempre quer viajar, descobrir, encontrar novas culturas, sonha com paraísos terrestres e provar novas emoções, mas são poucos aqueles que viajam de forma radical sem se sentirem de alguma forma forçados por condições de vida inaceitáveis.
Alguns são conduzidos pela ameaça de perseguição mortal até chegar a um lugar relativamente seguro, mas depois querem ir mais longe, para um país mais próspero, onde eles podem reconstruir suas vidas. Outros se dão conta da miséria na qual se encontram e se colocam a caminho, em busca de uma vida melhor.
Certamente, para poderem dar-se conta de que as condições de vida na qual estão vivendo são deploráveis, e para se porem a caminho de algo melhor, você tem que ter um certo nível de educação e acesso a fontes de informação que permitam que você compare sua vida com a dos outros que vivem em países distantes. Portanto, eles não são os mais pobres entre os pobres aqueles que se mudam, mas aqueles munidos de conhecimentos, saúde física, contatos e alguma economia para pagarem a viagem. Mas isso não quer dizer que todos os requerentes de asilo e imigrantes são “pessoas de classe média que vão passear por capricho, como alguns políticos xenofóbicos querem fazer acreditar.
Tantos podem pensar que para resolver o problema bastaria que os países envolvidos abrissem suas fronteiras. Porque a questão é tão complexa? O senhor poderia explicar por que para os países é difícil acolher os refugiados?
Do ponto de vista técnico, os países ricos podem acolher tantas pessoas. A grande maioria dos refugiados no mundo não se encontram nos países ricos, mas são acolhidos por países como o Líbano, a Jordânia, o Paquistão: se estes países conseguem acolher tantos, nós podemos certamente acolher ainda mais, além dos poucos que já acolhemos.
Além disso, se se acolhe bem, existem benefícios econômicos notáveis que são percebidos depois de alguns anos. Muitos dos argumentos econômicos dos quais querem nos convencer, de que os refugiados e imigrantes são um peso econômico e que a acolhida destas pessoas é um grande ato de filantropia, não tem fundamento. Não posso citar aqui todos os estudos científicos feitos sobre este fenômeno, mas basta ler as revistas econômicas de evidência – e não estudos maquiados, usados por alguns políticos – para aprender que a imigração prejudica a economia somente quando as pessoas são acolhidas muito mal e tratadas como animais.
Quem acolhe bem, oferecendo ajuda psicológica às pessoas traumatizadas e violentadas, sustentando as crianças refugiadas, dando escola, lutando contra a exploração e a discriminação, reconhecendo as qualidades e as capacidades dos refugiados e oferecendo saídas no mundo do trabalho para poder usufruir de seus talentos… os países que fazem isso – como o Canadá e os países escandinavos – ganham tanto do ponto de vista econômico.
O verdadeiro problema, porém, é cultural e social. Vivemos na época da demagogia na qual os políticos não tem uma grande visão a propor, não são capazes de sonhar por uma sociedade mais justa, não tem coragem de reconhecer os verdadeiros problemas e não se animam em fazer sacrifícios necessários para resolver os problemas pelo bem das gerações futuras e das pessoas mais frágeis. Existem políticos inteligentes, que sabem que é necessário um novo discurso político que ajude a ver o estrangeiro como uma oportunidade e um recurso, como riqueza e não como peso, políticos que saibam que abrir um pouco mais as fronteiras faz bem à economia, mas que não ousam dizer: poucos são os que ousam desmascarar as mentiras dos xenófobos.
Do ponto de vista cultural e social, inclusive, existe um sério problema. No mundo pós moderno onde as pessoas se agrupam às identidades para ter alguma âncora no fluxo da vida, o desencontro entre nós e os outros se torna quase inevitável. A identidade do outro é construída também por nós com os estereótipos, limitando as pessoas a se comportarem de um certo modo e fechando diante delas outras portas.
E, portanto, nos Estados Unidos, os italianos são artistas, os asiáticos são engenheiros e os mexicanos jardineiros. Ai de uma criança que ouse desafiar os estereótipos. Depois, existem os estereótipos para os desvios sociais. Algumas minorias cristãs veem nos muçulmanos organizações criminais, especialmente quando estas pessoas são vistas sistematicamente como suspeitas e em guetos.
De fato, quando você se vê obrigado a viver em um bairro onde os serviços públicos são quase inexistentes, onde a droga e a violência estão por toda parte e onde a polícia te trata mal, é fácil ser sugado por grupos com comportamentos desviados e antissociais, às vezes travestidos de movimentos religiosos ou ideológicos.
Os refugiados têm que viver nestes lugares escuros, nas periferias que são o descarte de nossa sociedade, porque falta vontade política de acolhê-los em outro lugar, nos bairros com menos problemas, nas pequenas cidades e/ou nos países com um tecido social sadio.
Obviamente, a situação atual causa medo a algumas pessoas, especialmente naquelas frágeis que vivem nestes bairros pobres e não funcionais de nossas grandes cidades. Nestes lugares escuros de nossa sociedade onde os pobres e as famílias necessitadas são amontoados, a chegada do refugiado ou do imigrante é vista justamente como ameaça, como a chegada de um competidor.
Portanto, tem sentido dizer até mesmo que quando não se tem a coragem política para resolver os problemas destes bairros, e até quando não conseguimos convencer os bairros e as cidades mais prósperas a acolher o estrangeiro, existirão limites culturais e sociais importantes que farão obstáculos para a acolhida do outro, além das possibilidades e benefícios econômicos. Eis porque não se pode simplesmente dizer que basta abrir as fronteiras.
Obviamente, é possível sonhar com um mundo ideal, onde a pessoa não se sinta obrigada a sair de onde está para viver com dignidade. Podemos sonhar com um mundo onde não existam os desastres naturais, onde não existam mudanças climáticas, onde se possam resolver rápido os grandes problemas políticos e econômicos dos países pobres, onde se possa encontrar uma solução simples e definitiva para todos os conflitos estridentes, onde se possa criar um crescimento econômico grandioso em países como a Nigéria, para poder dar trabalho rápido a todos os seus habitantes, e onde exista uma solidariedade verdadeira e eficaz entre países ricos e pobres.
Eu porém, prefiro permanecer com os pés na terra e reconhecer que as imigrações de massa farão parte da realidade mundial para os próximos dez anos e que as causas destas imigrações são muito complexas e dificílimas para resolver num futuro próximo. Os slogans fáceis como “ajudemos a dar casa à eles”, propostos por pessoas que não são nem mesmo capazes de acolher o outro quando se encontra próximo se tornam para mim expressões de um cinismo descarado. ,
Talvez depois de ter conhecido qualquer somálio na rua, terei a coragem e a vontade de pedir ao meu governo para encontrar soluções reais para ajudar os somálios que estão na Somália. Mas, se eu meu governo consegue prevenir o desembarque de refugiados somálios na Europa, se consegue se afastar do sofrimento destas pessoas, os grandes problemas destes países correm os risco, infelizmente, de permanecerem somente no nível dos discursos abstratos e de bons propósitos.
De acordo com o Senhor, o que poderia ser feito em caráter de urgência para atenuar o problema?
Se pode, talvez, começar por parar de falar “caráter de urgência”. A crise é uma invenção midiática e política: estes fluxos podem ser calculados e eram perfeitamente previsíveis já há muitos anos. O único elemento desconhecido era onde seria aberta a brecha na muralha da Europa. O jogo político até agora foi o de fechar os olhos diante de uma situação política inoportuna, de não preparação às chegadas [dos imigrantes] e de não preparação dos cidadãos para acolher estas pessoas… esperando que o fluxo mudasse para um outro país europeu e que este país se fizesse cheio de todo o problema, de acordo com a Lógica do Sistema de Dublin… ou esperando que fosse o governo sucessivo a ter que afrontar o problema depois das eleições.
O que pode ser feito agora? Abrir as casas, os apartamentos vazios para acolher as pessoas, como há anos é feito no Líbano e na Jordânia e nos países mais pobres da África e da Ásia. Colocar-se de acordo para distribuir com equilíbrio as pessoas em toda Europa. Abrir as portas diplomáticas às fronteiras dos países em conflito para identificar os solicitantes de asilo e dar a eles os vistos para viajar de modo normal para países seguros em vez de forçá-los a arriscar a vida e a colocar-se nas mãos dos traficantes. Precisa também usar a diplomacia para forçar os países de maioria muçulmana, como a Arábia Saudita e os Emirados a abrir suas portas e também ao BRICS. Colaborar com os Estados Unidos e o Canadá para acolher mais pessoas e a desmascarar a política de repelir praticada pelos países prósperos do Leste Asiático e a Austrália.
E depois, rapidamente, ajudar estas pessoas a encontrarem trabalho e a tratar os casos da síndrome pós-traumática do stress: evitar que estas pessoas caiam em depressão ou que a relação com as comunidades locais se tornem tensas e negativas. As integrações no mundo do trabalho é muito importante, mas este é um desafio enorme na atual situação econômica europeia. É preciso entender que onde reina a legalidade e se combate os abusos de maneira eficaz, os refugiados e os imigrantes não façam concorrência desleal e não peguem o lugar de trabalho dos locais, mas criem um novo dinamismo e flexibilidade econômica com os quais façam nascer postos de trabalho profissionais na administração em benefício dos locais.