Rabino-chefe da comunidade judaica de Roma, Riccardo Di Segni, comenta sobre o evento que mudou as relações entre católicos e judeus
Da redação, com Vatican News
O abraço entre São João Paulo II e o rabino-chefe de Roma, Elio Toaff, selou uma visita que permanece e ficará gravada no coração e na memória de muitas pessoas. Naquele dia de abril de 1986, pela primeira vez, um Papa cruzou o limiar da Sinagoga fazendo um gesto que depois os seus sucessores teriam repetido. Uma etapa, portanto, de um caminho importante composto também de orações dos Papas escritas num bilhete e inserido nas fendas do Muro das Lamentações em Jerusalém, assim como de visitas a Auschwitz e outros gestos. Um caminho cujas raízes sem dúvida estão na Nostra Aetate. É interessante notar, relendo os discursos dos protagonistas daquele dia de 35 anos atrás, as referências a este documento conciliar, assim como à figura de São João XXIII.
Nostra aetate e João XIII
Na riqueza do discurso que proferiu naquela ocasião, o Papa Wojtyla destacou a ligação entre cristianismo e judaísmo e, referindo-se à declaração do Concílio sobre “As relações da Igreja com as religiões não-cristãs”, lembrou como a Igreja “deplora o ódio, a perseguição e todas as manifestações de antissemitismo dirigidas contra os judeus em todos os tempos por qualquer pessoa”. Ele também quis enfatizar que a “herança” que ele pretendia colher era a do “Papa João” que, evidenciou, “uma vez passando por aqui – como o rabino-chefe agora lembrou – fez parar o carro para abençoar a multidão de judeus que saiam deste mesmo Templo”. Eu gostaria de retomar o seu legado neste momento, encontrando-me não mais fora, mas, graças a sua generosa hospitalidade, dentro da Sinagoga de Roma”.
Toaff: o gesto destinado a entrar para a história
De fato, em suas palavras comoventes foi o próprio rabino Toaff quem se referiu tanto ao documento conciliar quanto ao gesto de João XXIII, expressando “profunda satisfação” pela visita de João Paulo II e definindo-a como um “gesto destinado a entrar para a história”. Ele o vinculou, de fato, “ao ensinamento iluminado” de seu predecessor, João XXIII, “o primeiro Papa”, enfatizou, “que numa manhã de sábado parou para abençoar os judeus de Roma que saíam deste Templo depois da oração”. “Um gesto que se insere na esteira do Concílio Vaticano II” que, precisamente, com a Nostra Aetate “produziu, nas relações da Igreja com o judaísmo, aquela revolução que tornou possível sua visita hoje”.
O Papa Roncalli e o Concílio Vaticano II foram então lembrados também pelo presidente da comunidade israelita de Roma, professor Giacomo Saban, que lembrou como a Nostra Aetate “introduz uma relação diferente entre a fé de Israel e a do mundo que nos circunda, restituindo-nos não só o que nos foi negado durante séculos, mas também a dignidade que sempre foi nosso direito de ver reconhecida”. O eco dessa visita permaneceu. Então João Paulo II falou de “nossos irmãos prediletos” e “de certa forma, pode-se dizer nossos irmãos mais velhos”.
Perguntamos ao rabino-chefe da comunidade judaica de Roma, Riccardo Di Segni, com que emoções ele se lembra daquele momento e que importância teve para a comunidade judaica?
Di Segni: Havia certamente a consciência de que se tratava de um acontecimento histórico de grande valor simbólico que marcava uma mudança nas relações entre os dois mundos. Foi um evento que teve significado sobretudo do ponto de vista midiático, pois a imagem do abraço entre os dois representantes religiosos superou sozinha as dificuldades teológicas. Ninguém lê, a não ser poucos especialistas, os documentos das comissões e todos veem as imagens. As palavras também tiveram seu significado e em particular a definição de “irmãos mais velhos”, embora não nos entusiasme do ponto de vista teológico, porque na Bíblia os irmãos mais velhos são maus e perdentes.
Cinco anos atrás, em janeiro, o Papa Francisco também visitou o Templo Maior em Roma. E antes disso, em janeiro de 2010, Bento XVI. Estes Pontífices enfatizaram o impulso ao compromisso de percorrer um caminho irrevogável de diálogo, fraternidade e amizade com os judeus, dado também pelo documento conciliar Nostra Aetate. Como se procede este diálogo?
Di Segni: As visitas dos dois Pontífices foram muito importantes porque marcaram a vontade dos mais altos representantes da Igreja de continuar no caminho aberto pelo Papa João Paulo II. E não foi apenas continuidade, mas também progresso, porque na época de João Paulo II havia muitos problemas e agora não é que os problemas não existam, mas para muitas coisas existem maneiras e meios de resolvê-los. Portanto, é um percurso, digamos, de crescimento positivo.
“Numa sociedade muitas vezes perdida no agnosticismo e no individualismo e que sofre as amargas consequências do egoísmo e da violência, judeus e cristãos são os depositários e testemunhas de uma ética marcada pelos Dez Mandamentos, em cuja observância o homem encontra sua verdade e liberdade. Promover uma reflexão e uma colaboração comum sobre este ponto é um dos grandes deveres”, disse João Paulo II em seu discurso na Sinagoga.
Quais são os pontos concretos sobre os quais judeus e cristãos hoje, num momento histórico tão difícil para toda a humanidade por causa da pandemia, podem colaborar?
Di Segni: A pandemia nos colocou diante de desafios aos quais as estruturas portadoras de valores devem dar respostas: respostas que foram dadas no sentido da organização, da solidariedade, do apelo aos valores morais a serem compartilhados, das escolhas a serem feitas para o bem coletivo. Haverá ainda mais desafios na medida em que sairmos desta pandemia e nos depararmos com uma sociedade que inevitavelmente mudou, na qual nossos hábitos mais simples serão diferentes. Então, em relação a isso, o apelo a sistemas religiosos e de valores como os nossos, nos quais o imperativo moral e a solidariedade têm um valor essencial, será absolutamente útil e necessário.