Carta do Papa Emérito Bento XVI sobre o relatório sobre abusos na arquidiocese de München e Freising foi divulgada hoje pela Santa Sé
Da Redação, com Boletim da Santa Sé
A sala de imprensa da Santa Sé divulgou nesta terça-feira, 8, a carta do Papa Emérito Bento XVI a propósito do relatório sobre os abusos na Arquidiocese de München e Freising. O relatório publicado em 20 de janeiro passado – realizado por uma empresa especializada e a pedido da Igreja Católica no país – teria identificado quatro casos que ocorreram durante o ministério do então Cardeal Ratzinger. A carta de hoje traz uma explicação do Papa Emérito a respeito e o reforço da sua dor e pedido de perdão a todas as vítimas de abusos sexuais.
Na carta, Bento XVI agradece ao grupo daqueles que cuidam dele, que o encorajaram e manifestaram confiança nele e que o ajudaram na leitura e estudo do relatório de quase duas mil páginas. Ele escreve que, na análise desses dias, verificou-se um lapso a propósito da sua participação na reunião do Ordinariato de 15 de janeiro de 1980. “Este erro, que infelizmente ocorreu, não foi intencional e espero seja desculpável. Já providenciei para que o arcebispo Gänswein informasse disso mesmo no comunicado à imprensa de 24 de janeiro de 2022”, escreve.
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O Papa Emérito recorda também os encontros que pôde ter, sobretudo nas viagens apostólicas que fez, com as vítimas de abusos sexuais por parte de sacerdotes. “Observei nos olhos as consequências de uma tão grande culpa e aprendi a compreender que nós mesmos somos arrastados por esta tão grande culpa quando a negligenciamos ou não a enfrentamos com a necessária decisão e responsabilidade, como aconteceu e acontece com muita frequência”.
Bento XVI renova sua vergonha diante dos casos e o pedido de perdão a todas as vítimas. Leia, a seguir, a íntegra da carta:
Carta do Papa Emérito Bento XVI
a propósito do relatório sobre os abusos
na Arquidiocese de München e Freising
Cidade do Vaticano, 6 de fevereiro de 2022
Prezadas irmãs e prezados irmãos!
Na sequência da apresentação do relatório sobre os abusos na arquidiocese de München e Freising em 20 de janeiro de 2022, sinto necessidade de dirigir a todos vós uma palavra pessoal. De facto, embora me tenha sido concedido ser arcebispo de München e Freising pouco menos de cinco anos, perdura no meu íntimo a profunda pertença à arquidiocese de München como minha pátria.
Quero, antes de mais nada, expressar uma palavra de cordial agradecimento. Nestes dias de exame de consciência e reflexão, pude experimentar tanto encorajamento, tanta amizade e tantos sinais de confiança como nunca teria podido imaginar. De modo particular, quero agradecer ao pequeno grupo de amigos que abnegadamente compilou por mim o Pró-memória pessoal de 82 páginas para o escritório de advocacia de München, que eu não poderia ter escrito sozinho. Além das respostas às perguntas que me foram colocadas pelo escritório de advocacia, havia ainda a leitura e análise de quase 8.000 páginas de Atos em formato digital. Depois estes colaboradores ajudaram-me a estudar e analisar a perícia de quase 2.000 páginas. O resultado será publicado sucessivamente em apêndice à minha carta.
No trabalho gigantesco destes dias para elaborar a tomada de posição, verificou-se um lapso a propósito da minha participação na reunião do Ordinariato de 15 de janeiro de 1980. Este erro, que infelizmente ocorreu, não foi intencional e espero seja desculpável. Já providenciei para que o arcebispo Gänswein informasse disso mesmo no comunicado à imprensa de 24 de janeiro de 2022. Isto em nada diminui o cuidado e a dedicação que foram e são um imperativo absoluto óbvio para aqueles amigos. Tocou-me profundamente que a distração tivesse sido utilizada para pôr em dúvida a minha veridicidade e até mesmo para me fazer aparecer como mentiroso. Mais ainda, porém, me comoveram as variadas expressões de confiança, os testemunhos cordiais e as calorosas cartas de encorajamento que recebi de tantas pessoas. Sinto-me particularmente agradecido pela confiança, o apoio e a oração que o Papa Francisco me expressou pessoalmente. Por fim quero agradecer à pequena família no Mosteiro Mater Ecclesiae, cuja comunhão de vida tanto nas horas felizes como nas difíceis me dá aquela solidez interior que me sustenta.
Às palavras de gratidão segue-se agora necessariamente também uma confissão. Impressiona-me cada vez mais fortemente que, dia após dia, a Igreja coloque no início da celebração da Santa Missa – na qual o Senhor nos dá a sua Palavra e a Si mesmo – a confissão da nossa culpa e o pedido de perdão. Publicamente suplicamos ao Deus vivo que perdoe a nossa culpa, a nossa tão grande culpa. É claro que a expressão «tão grande» não se refere da mesma forma a todos e cada um dos dias. Mas cada dia me questiona se não devo, também hoje, falar de tão grande culpa. E consoladoramente diz-me que, por maior que possa ser hoje a minha culpa, o Senhor perdoa-me, se me deixo sinceramente perscrutar por Ele e estou realmente disposto à mudança de mim mesmo.
Em todos os meus encontros – sobretudo durante as numerosas Viagens Apostólicas – com as vítimas de abusos sexuais por parte de sacerdotes, observei nos olhos as consequências de uma tão grande culpa e aprendi a compreender que nós mesmos somos arrastados por esta tão grande culpa quando a negligenciamos ou não a enfrentamos com a necessária decisão e responsabilidade, como aconteceu e acontece com muita frequência. Como fiz naqueles encontros, mais uma vez posso apenas expressar a todas as vítimas de abusos sexuais a minha profunda vergonha, a minha grande dor e o meu sincero pedido de perdão. Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica. Tanto maior é a minha dor pelos abusos e os erros que se verificaram durante o tempo do meu mandato nos respetivos lugares. Cada caso de abuso sexual é terrível e irreparável. Para as vítimas de abusos sexuais, vai a minha profunda compaixão e lamento cada um dos casos.
Cada vez mais compreendo os calafrios e o pavor que experimentou Cristo no Jardim das Oliveiras quando viu todas as coisas terríveis que teria de superar interiormente. O facto de naquele momento os discípulos dormirem, representa infelizmente a situação que também hoje de novo se verifica e pela qual me sinto interpelado também eu. E assim posso apenas rezar ao Senhor, pedindo a todos os anjos e santos e a vós, queridas irmãs e irmãos, que rogueis por mim a Deus nosso Senhor.
Em breve me encontrarei perante o último Juiz da minha vida. Embora ao olhar retrospetivamente a minha longa vida possa ter tantos motivos de susto e medo, todavia estou com o coração feliz porque confio firmemente que o Senhor não é só justo juiz, mas simultaneamente é o amigo e o irmão que já padeceu, Ele mesmo, as minhas deficiências e, consequentemente, ao mesmo tempo é juiz e meu advogado (Paráclito). Na perspetiva da hora do juízo, como se me torna clara a graça de ser cristão! O ser cristão dá-me o conhecimento, mais ainda, a amizade com o juiz da minha vida e permite-me atravessar com confiança a porta escura da morte. A propósito, retorna-me sem cessar à mente o que João conta no início do Apocalipse: vê o Filho do Homem em toda a sua grandeza e cai aos seus pés como morto. Mas Ele, pousando a mão direita sobre João, diz-lhe: «Não tenhas medo! Sou eu…» (cf. Ap 1, 12-17).
Prezados amigos, com estes sentimentos a todos vos abençoo.
Bento XVI