Entrevista

Comissão para Proteção de Menores: Giovanelli frisa missão e perspectivas

Único brasileiro da Comissão para Proteção de Menores, Nelson Giovanelli foi confirmado pelo Papa nos trabalhos; ele comenta a missão e os projetos em andamento

Thiago Coutinho
Da redação

proteção de menores é compromisso assumido pela Igreja

Comissão para Proteção de Menores foi instituída pelo Papa Francisco em março de 2014 / Foto: Wesley Almeida

Pensar e implementar medidas, em auxílio ao Papa Francisco, para a proteção de menores e pessoas vulneráveis. Assim é o trabalho da Comissão para a Proteção dos Menores, instituída pelo próprio Pontífice em março de 2014.

O único brasileiro neste grupo é o co-fundador da Fazenda da Esperança, Nelson Giovanelli Rosendo dos Santos, que na semana passada foi confirmado, junto aos outros membros, para mais um ano de trabalho na comissão. 

Giovanelli está na comissão há três anos, após nomeação feita pelo Pontífice. Nesta entrevista concedida ao noticias.cancaonova.com, ele conta como recebeu a confirmação na continuidade dos trabalhos, destacando o reconhecimento de Francisco neste empenho do grupo. Ele também comenta os projetos que estão sendo engendrados e as dificuldades enfrentadas durante estes dias de pandemia, entre outros temas.

noticias.cancaonova.com O senhor é o único brasileiro a integrar a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores nomeado pelo Papa Francisco. Como se sentiu quando seu nome foi confirmado pelo Santo Padre?

integrante brasileiro comenta trabalhos sobre proteção de menores

Nelson Giovanelli / Foto: Júlia Beck

Nelson Giovanelli A confirmação do meu nome e de todos os outros conselheiros e membros da Comissão Pontifícia, de certa forma, não foi uma grande surpresa, em virtude da situação que vivemos no ano passado por conta da pandemia e dos muitos projetos que estavam em andamento, sentimos que deveríamos ter um tempo a mais para executar tudo aquilo que havia sido planejado. O Papa acolheu esta proposta e, por isso, confirmou para mais um ano o nosso mandato. De qualquer maneira, sentimos da parte do Santo Padre um reconhecimento por tudo aquilo que os membros de todo o mundo estão realizando para auxiliá-lo nesta luta pela proteção da criança e do adolescente dentro da Igreja. Foi, para nós, um momento de gratidão e reconhecimento.

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noticias.cancaonova.com — A Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores tem como objetivo auxiliar no trabalho de cuidado dos mais vulneráveis e dos menores, combatendo abusos. Em situações ditas “normais”, este já é um trabalho árduo. Quais têm sido as dificuldades enfrentadas nestes dias pandêmicos?

Giovanelli O objetivo desta Comissão é ajudar o Papa no enfrentamento desta crise dos escândalos sexuais dentro da Igreja. O foco, então, não é esta realidade no mundo inteiro, em todos os segmentos sociais, mas principalmente para que este tipo de delito nunca mais seja cometido por parte de membros da Igreja.

“Sentimos da parte do Santo Padre um reconhecimento por tudo aquilo que os membros de todo o mundo estão realizando para auxiliá-lo nesta luta pela proteção da criança e do adolescente dentro da Igreja”

A Comissão trabalha ouvindo essas vítimas, trabalha também no sentido de se criar uma cultura de proteção e também na questão de que diretrizes sejam feitas em todas as realidades eclesiais — dioceses, congregações, comunidades eclesiais etc. E nestes três segmentos existem muitos projetos. O desafio, como já disse, é que muita coisa estava programada, muitos encontros que foram cancelados pela evidente questão da pandemia. Por isso, tivemos que reinventar a forma de nos encontrarmos. Tudo isso agora é feito on-line. Isto diminui as despesas, mas a necessidade do encontro pessoal para entender o que podemos fazer para ajudar o Santo Padre para enfrentarmos esta questão, pessoalmente é muito melhor. Por isto, estamos reaprendendo a enfrentar este desafio por meio da tecnologia virtual.

noticias.cancaonova.com — Existem muitas diferenças entre os menores e vulneráveis brasileiros e aqueles encontrados em outros países? O senhor nota estas nuances distintas quando conversa com os outros integrantes da Comissão?

Giovanelli — As diferenças que existem entre as crianças e adolescentes, nome que aqui no Brasil se dá por conta de uma insistência do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] é mais uma questão cultural. A essência do problema a ser enfrentado, que é a violência sexual nas comunidades, em todo mundo tem uma mesma característica. Quando a há uma denúncia, deve-se trabalhar a questão da vítima em primeiro lugar, depois o agressor. O que difere é a maneira como cada país enfrenta o problema. Os países anglo-saxônicos, por exemplo, têm uma facilidade maior de fazer com que esta denúncia chegue. Mas a cultura do silêncio, do que chamo de “tirânia do silêncio”, estava na mentalidade de todos há vinte, trinta anos. E agora, o Papa Francisco, mesmo na época de João Paulo II, foi-se criando uma mudança de mentalidade para não se esconder estes delitos.

Esta questão da violência e do abuso sexual, dependendo da cultura, seja na família ou perpetrada por membros da Igreja, às vezes tem a ver com a cultura local. Mas o problema, a resposta, deve ser a mesma em todos os lugares. Precisa-se criar um ambiente favorável para se escutar as vítimas, para que sejam acreditadas, que não se tenha medo de denunciar, para que, como o Papa deseja, este tipo de crime, que compromete a credibilidade da evangelização da Igreja, não se repita.

“Quando a há uma denúncia, deve-se trabalhar a questão da vítima em primeiro lugar, depois o agressor. O que difere é a maneira como cada país enfrenta o problema”.

noticias.cancaonova.com — Como um dos fundadores da Fazenda da Esperança, o senhor tem uma experiência considerável em se tratando de jovens e adolescentes que passaram pela dependência química. Quais são os principais desafios para se salvar um jovem deste mundo da dependência tóxica?

Giovanelli Desde o início, 38 anos atrás quando começamos este trabalho, mais do que tirá-los das drogas era dar a eles um sentido de vida. O desafio maior é permanecer fiel a Deus como amor, porque Ele com amor quer cuidar de Seus filhos. E por meio da Palavra, tem o maior instrumento de libertação, que é o Evangelho. Por isso, não só aqui no Brasil, mas em outros países, o desafio maior é diante de uma sociedade que caminha para um processo de secularização.

Somos muito questionados por esta nossa abordagem bem clara de espiritualidade. Não abrimos mão do fato de que existe real e concreta verdade quando o homem se encontra com sua origem, que é Deus. E revelado por Jesus Cristo, que deixou Sua palavra, Seu alimento, o caminho e a vida para que estes dependentes químicos se recuperem. Não se trata de proselitismo para que estas pessoas se tornem católicas, porque recebemos pessoas de todas as denominações cristãs, e como acontece em Fazendas Esperança de outros países, recebemos pessoas de outras convicções religiosas e até ateus. Mas oferecemos a todos que chegam esta proposta evangélica de encontro com o amor, com Deus.

A dimensão que a obra tomou, com 153 comunidades espalhadas em 24 países, dá a nós uma certa força e credibilidade com as autoridades em cada país, que é um caminho que tem dado um resultado enorme, com 80% das pessoas recuperadas. Faz com quem sejamos acreditados.

“Precisa-se criar um ambiente favorável para escutar as vítimas, para que sejam acreditadas, que não se tenha medo de denunciar”

noticias.cancaonova.com O pontificado de Francisco é marcado, entre outros, por um embate claro e amplo contra o abuso de menores dentro e fora da Igreja. Como o senhor vê esta questão? 

Giovanelli — A atitude do Papa Francisco tem-se revelado, desde o início de seu pontificado, com aquilo que escreveu num de seus primeiros documentos com relação ao enfrentamento destes escândalos sexuais. Ou seja, de que a Igreja é uma mãe. E como mãe, precisa ficar mais perto dos filhos que mais sofrem. E o fato de Francisco seguir aquilo que o Papa Emérito Bento XVI fazia, que é se encontrar com as vítimas de abuso sexual perpetrado por clérigos, testemunhou o que escreveu.

Além disso, ele criou esta Comissão para que possa implementar procedimentos que fossem efetivos por parte dos bispos. Ou mesmo a carta que escreveu, em agosto de 2018, ao Povo de Deus, conclamando todos a lutarem juntos. Depois, o encontro inédito da Igreja quando, em fevereiro de 2019, conclamou todas os presidentes das conferências episcopais, em fevereiro de 2019, para tratar deste assunto. Logo em seguida, fruto deste encontro, ele divulgou o documento ‘Vós sois a luz do mundo’, em que dá diretrizes e tarefas concretas, com serviços para escuta das vítimas e acompanhamento das denúncias. Tudo isso demonstra uma determinação em querer resolver esta questão, que já deveria ter sido tratada na Igreja, mas que agora toma uma forma concreta. Isso já vinha sendo trabalhado desde [o pontificado] de São João Paulo II. Mas foi com Bento e Francisco que esta questão foi retomada e agora querem dar uma resposta a estas questões.

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noticias.cancaonova.com A pandemia trouxe uma realidade mais difícil para o mundo sob diversos aspectos. No que se refere ao trabalho relacionado à ajuda aos jovens, o senhor destacaria algum ponto de vista que se tornou mais complexo durante a pandemia?

Giovanelli Nós, como cristãos, filhos da esperança, acredito que nesta pandemia tivemos muitos desafios. Mas para quem vive inspirado na cultura do Evangelho, sempre encontrará uma resposta. A onda de solidariedade que surgiu no mundo inteiro é muito grande. E posso testemunhar pelo que vivemos na Fazenda. Podemos dizer que, historicamente, mudamos após a pandemia. Em um ano, acolhemos 2500 homens, mulheres e crianças. Foi algo extraordinário. Fez com que nos abríssemos para esta realidade. E acabamos descobrindo, em profundidade, que na raiz de todas as dependências químicas está a falta de amor na família, abusos que acontecem dentro das famílias que precisam ser discutidos e curados.

noticias.cancaonova.com Agora que o nome do senhor já foi confirmado pelo Santo Padre na Comissão, quais são suas expectativas? Quais são os trabalhos pensados para o futuro? Já há algo definido para o próximo ano?

Giovanelli Com esta confirmação do Papa, temos mais confiança para dar continuidade aos projetos que demos início junto à CNBB e a Conferência dos Religiosos do Brasil [CRB]. Para se ter uma ideia, estamos preparando um grande seminário, ‘Sanando as próprias feridas’, entre 9 e 10 de abril, dirigido aos bispos e todos os membros das comissões diocesanas ou serviços diocesanos de escuta das vítimas, como pediu o Santo Padre. Temos quase 300 inscritos, mas gostaríamos de ter mais. E tudo isto é fruto do que foi construído nestes quase três anos.

Conseguimos formar uma força-tarefa, um escritório sediado em Brasília, denominado ‘Núcleo Lux Mundi’, liderado pela dra. Eliana de Carli. Trabalhamos especificamente na ajuda às dioceses para que estas comissões sejam formadas, atendendo ao pedido do Santo Padre na carta ‘Vós sois a luz do mundo’, em que dava um prazo de formação dessas comissões até junho de 2020. Nossa esperança, além destes seminários, é levar adiante muitos outros cursos nos próximos dois anos. Esperamos que ao menos 50% de todas as dioceses tenham esta comissão formada e atuando em até dois anos. Não é só criá-las no papel, mas precisam ser efetivas e que deem resposta todas as vezes que sejam recebidas essas denúncias.

 

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