Povos indígenas

Papa no Canadá: padre explica contexto histórico e caráter penitencial

Em resposta ao pedido das diversas comunidades indígenas do país, Papa fará a viagem para contribuir com o caminho de reconciliação diante de abusos no processo colonial e educativo dos povos originários

Ronnaldh Oliveira
Da Redação

Papa no encontro, no Vaticano, com delegações indígenas do Canadá / Foto: Vatican Media via Reuters

De 24 a 30 de julho, o Papa Francisco fará uma Viagem Apostólica ao Canadá. Garantindo ser uma peregrinação penitencial, acredita que “possa contribuir para o caminho de cura e reconciliação” diante das práticas políticas de assimilação cultural que, no passado, prejudicaram gravemente as comunidades indígenas na América do Norte.

As motivações da Viagem

As motivações são cada vez mais evidentes nas últimas décadas em nível nacional e internacional. Datam-se da época do descobrimento do continente americano e do processo colonial pelos países potentes da época: Espanha, Portugal, França e Inglaterra.

Somados à forte posição crítica da Igreja Católica a todas as formas de colonialismo, estão, no magistério da Igreja, atestados antigos e oficiais sobre a dignidade dos povos indígenas. Um exemplo é a famosa Bula Sublimis Deus, de Paulo III em 1537: “Definimos e declaramos que os mencionados índios e todos os outros povos que posteriormente venham a ser descobertos pelos cristãos, de modo algum devem ser privados de sua liberdade e posse de seus bens, mesmo que não tenham a fé em Jesus Cristo; e que podem e devem gozar livre e legitimamente de sua liberdade e posse de seus bens; não devem de forma alguma serem reduzidos à escravidão”.

A Doutrina foi assumida fortemente por todos os Papas. Entretanto, antes do documento, havia declarações e debates nas quais se fazia referência sobretudo à apropriação de terras, em particular pelos poderes “católicos”, sob a luz do entrelaçamento entre os interesses da evangelização e os da colonização.

Com o passar do tempo, falou-se de uma “doutrina do descobrimento” como um conceito de direito internacional, que, no século XIX, se afirmava nos casos entre os novos estados da federação americana e os povos indígenas.

Em contraposição, sob a ótica indígena, pediu-se insistentemente a rejeição da “doutrina do descobrimento”. Várias denominações cristãs não católicas se pronunciaram nesse sentido entre 2009 e 2013. Por isso, a necessidade da reafirmação do caráter histórico, espiritual e a própria distância conceitual percorrida pela Igreja Católica, a fim de alcançar uma visão mais clara e decisiva, para realçar a dignidade e os direitos dos povos indígenas, com o intuito de esclarecer as diferenças entre evangelização e colonialismo.

O contexto histórico e as escolas residenciais

O padre Ronaldo Mazula, missionário claretiano, há tempos tem acompanhado o drama enfrentado pela população indígena canadense. “A história diz muito e vai além daquilo que a Igreja teve como rédeas na época”.

Assista também ao comentário da vaticanista e historiadora da Igreja, Mirticeli Medeiros, sobre o contexto que marca essa viagem:

O padre missionário e historiador afirma que, na época da colonização, os povos indígenas eram considerados inferiores aos seus colonizadores. “Não só em relação aos costumes, mas na etnia e religiosidade. Havia ali uma pressão pela assimilação daquele povo para uma conversão a uma sociedade europeia, como a única perspectiva realista de futuro para eles”.

Mazula conta ainda que, com as leis da época, os povos originários foram encaminhados a “reservas territoriais” onde foram confinados. “Crianças e jovens indígenas foram, de certa forma, empurrados e muitas vezes forçados a serem educados pelas escolas residenciais. O regime era realizado a partir da separação de suas famílias, comunidades e culturas. As escolas possuíam métodos de disciplina rígida, com imposição do uso exclusivo da língua inglesa, de atividades de aprendizado e profissões adequadas à assimilação na sociedade de estilo europeu e de práticas religiosas cristãs”, explica.

O missionário claretiano, olhando para a história, explicou que a gestão das escolas foi confiada a diversas entidades das Igrejas cristãs que se ocupavam tradicionalmente de atividades educativas. Assim, se envolviam diretamente na responsabilidade da implementação da política canadense para os povos indígenas. “Tudo isso aconteceu por mais de um século. A grande questão é que testemunhos decisivos e fidedignos denunciaram as condições de vida que levavam esses alunos nas escolas. Havia deficiências na saúde, na alimentação e na própria rigidez dos métodos aplicados. Morriam muitos alunos pela tuberculose e outras doenças”, disse.

Reconhecimento dos erros

Padre Ronaldo declarou que, já nos anos 90, surgiram importantes declarações sobre a questão dos internatos indígenas, com o reconhecimento explícito de erros e deficiências. “Com essa base, firmou-se o compromisso de solidariedade com os povos indígenas e sua busca por dignidade e justiça. O processo de debate, reflexão e diálogo com os indígenas e sobre as escolas residenciais continua, e podemos dizer que se acentua e se intensifica, até por questões judiciais complexas.”

“Um dos pedidos feitos pela Comissão da Verdade e Reconciliação, instaurada pelos Indígenas para apurar o caso das Escolas, em relação à Igreja Católica, em seu relatório final de 2015, envolveu diretamente o Pontífice e foi descrito: ‘Pedimos que o Papa apresente um pedido de perdão às vítimas (uma apologia aos sobreviventes) e às suas famílias e comunidades pelo papel da Igreja Católica Romana no abuso espiritual, cultural, emocional, físico e sexual de crianças das primeiras nações, inuit e métis em escolas residenciais administradas por católicos. Pedimos que este pedido de perdão seja semelhante ao apresentado em 2010 às vítimas de abusos irlandeses e que ocorra dentro de um ano da publicação deste relatório e seja realizado pelo Papa no Canadá’, recordou Mazula.

O compromisso dos bispos canadenses

Os bispos do Canadá, desde que o assunto veio à tona, publicaram um forte pedido de perdão por todas as denúncias. “Como entidade católica que estiveram diretamente envolvidas na gestão das escolas e que já apresentaram seus próprios pedidos sinceros de perdão, nós, bispos canadenses, expressamos nosso profundo remorso e pedimos perdão”.

Os bispos do Canadá continuaram afirmando que estavam “totalmente comprometidos com o processo de cura e reconciliação”. Em resposta ao pedido de envolver pessoalmente o Papa Francisco nesse processo, convidaram uma representação dos indígenas – sobreviventes da escola, idosos e sábios – para ir com eles a Roma para encontrar-se com o Papa. Concluíram se comprometendo a trabalhar com a Santa Sé e parceiros indígenas em vista de uma visita pastoral do Papa ao Canadá como parte desta jornada de cura.

O compromisso assumido pelo Papa

No final de março e início de abril deste ano, Francisco recebeu no Vaticano uma delegação com a representação dos povos indígenas do Canadá, acompanhados por bispos canadenses. Na ocasião, as três culturas populacionais distintas estiveram presentes: as chamadas Primeiras Nações, que incluem os grupos que estavam presentes no território canadense antes da chegada dos europeus; os Métis (“mestiços”), nascidos do encontro entre indígenas e europeus; e os Inuits, que são os povos das terras do norte, ou seja, as terras do Ártico, e que no passado eram frequentemente chamados de “esquimós”.

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Cada um desses três grupos possui suas próprias assembleias ou órgãos representativos, com autoridade própria. Eles afirmam fortemente sua identidade cultural.

O carisma de acolhimento e escuta do Papa e a clareza de suas palavras tocaram seus visitantes. A estima pelas suas culturas e tradições, a condenação da violência da colonização, “a indignação e a vergonha” pelas várias formas de abusos sofridos, particularmente nas escolas residenciais, como contratestemunho do Evangelho foram expressados. Na coletiva de imprensa no final da viagem, os representantes dos três componentes indígenas da delegação e os bispos que os acompanharam expressaram sua plena satisfação e confiança de que a prometida viagem do Papa trará frutos decisivos para encorajar a caminhada dos povos indígenas na afirmação dos seus direitos e na realização das suas aspirações. E que a Igreja Católica os acompanha neste caminho.

O Pontífice encontrou-se com cada grupo separadamente e depois em uma audiência comum, onde afirmou: “Gostaria de lhes dizer que a Igreja está do lado de vocês e quer continuar caminhando com vocês”, renovando seu desejo de visitar o Canadá, mas “não no inverno”, brincou.

O caminho penitencial percorrido pela Igreja

O missionário claretiano, ainda em entrevista, concluiu que os acontecimentos ao longo dos séculos e as inúmeras negligências causaram muito sofrimento, especialmente aos povos indígenas daquela época. “Gostaria de recordar também que muitas pessoas gastaram suas forças com a intenção sincera de servir ao Evangelho e aos povos indígenas, e agora se sentem frustrados por críticas muito duras, nas quais não faltam generalizações, que também não são corretas”.

“Eu penso que este é um preço penitencial que devemos pagar e que nos ajudará no caminho de purificação. Um caminho pelo qual muitos na Igreja trabalham com generosidade, com entusiasmo, perseverança e dedicação, e no qual o caminho do Papa se propõe como uma etapa preciosa e encorajadora”.

 

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