LIVRO

"Não percamos o fogo do encontro com Jesus", afirma Papa em prefácio

Francisco assina o prefácio do volume publicado por Marsilio ‘Uma trama divina. Jesus em contracampo’, do padre Antonio Spadaro, diretor de La Civiltà Cattolica

Da redação, com Vatican News

Capa do livro ‘Uma trama divina. Jesus em contracampo’, do padre Antonio Spadaro / Foto: Reprodução

Para seus contemporâneos, Jesus poderia ter entrado no paradigma de um inadaptado, de uma pessoa que não se adapta, um desadaptado, que não se conforma com o que é óbvio. Mas, bastaria ver as reações provocadas por seus gestos nos Evangelhos. Em Marcos lemos: “Partiram para forçá-lo a voltar, pois comentavam: “Ele perdeu o juízo!” Depois, alguns declararam abertamente, como diz Mateus: ”Por que o Mestre de vocês come com publicanos e pecadores?” Às vezes, Jesus tem reações duras, a ponto de causar indignação, como, por exemplo, derrubar as mesas dos mercantes no Templo. Ele não se adapta; não se conforma.

Seguindo o caminho de Jesus, vemos que ele deixa Nazaré, sua “pátria”; protesta contra aqueles que se sentem incluídos o suficiente, mas excluem os outros; contra aqueles que pensam que veem claramente as coisas, mas são cegos; contra os que se sentem autossuficientes na administração da lei, mas são perversos.

Padre Antonio Spadaro / Foto: Reprodução Youtube

Uma trama divina acompanha-nos à busca de Jesus que caminha, que encontra as pessoas pelo caminho, mas seu semblante muda diante da sua meta: Jerusalém.

Quem é? O que quer? Jesus percorre as cidades ensinando, curando os enfermos, consolando os aflitos. As pessoas ficam maravilhadas e se perguntam quem era, como fizeram seus discípulos. Então ele fixa seus olhos e lhes pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. Sinto que ele pergunta a mim. Diante da história de Jesus, esta continua sendo a questão fundamental, que vejo ecoar, sobretudo, nas páginas deste livro.

Às vezes, ficamos opressos ao ver as imagens de Jesus, que, na realidade, são como santinhos, ao invés de retratos eficazes. A nossa tendência é refrear Jesus, torná-lo mais amável, de modo a tornar a sua mensagem inutilmente amena. Ele proporciona paz, consola, traz uma “luz tênue”, como escreveu São João Henry Newman, mas não faz adormecer com cantigas e, sobretudo, não anestesia. Uma saudável inquietação insatisfeita, além de um estupor pela novidade, abre o caminho para a ousadia. Logo, não precisamos de narrações edificantes, sobretudo, nos tempos difíceis em que vivemos. Este livro as exclui, colocando em evidência, muitas vezes, o claro-escuro, a rigidez das narrações evangélicas. Jesus veio trazer fogo à terra. Ele irradia luz e não teme as trevas. Por outro lado, que quem cresce em um mundo de cinzas, não mantém, facilmente, o fogo dos grandes desejos.

Não devemos perder o fogo do encontro com Jesus. Olhemos para o Mestre, sigamo-lo em seu caminho sem perdê-lo de vista. Todos nós podemos fazer isso, embora nem sempre consigamos compreender Deus ou prever seu caminho. É tão bom ser compreendidos por Ele e deixar-nos guiar.

Aprendamos a tirar o pó, que se acumulou nas páginas do Evangelho; descubramos o gosto intenso por ele. Eis o caminho que somos chamados a percorrer: ouvir o tom de voz de quem pronunciou as Bem-aventuranças, repartiu os pães para a multidão, sarou os enfermos, perdoou os pecadores, sentou-se à mesa com os publicanos.

A história de Jesus une-se à dos homens e mulheres, desperta e fortalece as energias ocultas, a paixão entusiasta pela verdade e a justiça, as centelhas de plenitude, que o amor suscita em nosso caminho; mas, também, a capacidade de enfrentar as falências e sofrimentos, para exorcizar os demônios da amargura e do ressentimento.

A trama pertence à história. Não há história sem tramas. Deus entrou na trama das vicissitudes humanas com uma história, que hoje pode ser narrada. A trama é um entrelaçamento de fios, onde Jesus entrou. Um fio não é igual ao outro, mas, às vezes, os fios se atam. Na trama dos acontecimentos humanos, podemos reconhece-los “em ação”, como escrevia Santo Inácio: “Jesus comove-se, aproxima-se, toca com mão o sofrimento e a morte e os transforma em vida”. A leitura da história de Jesus não nos distancia da trama da nossa existência. Pelo contrário, convida-nos a encarar a nossa história, a voltar a encontrá-la sem fugir.

Devemos “ver” este Jesus, sentir o seu toque na nossa pele, senão o Filho de Deus, o Mestre, se tornará algo abstrato, uma ideia, utopia, ideologia. Nele há um intercâmbio de olhares, mas não só, são envolvidos todos os sentidos. Jesus foi ungido pelo perfume de uma mulher, comeu e repartiu pães e peixes, tocou e sarou, ouviu e respondeu aos seus interlocutores.

Abrir os Evangelhos é como ver, através de uma câmera, Jesus em ação. O olhar, com o qual “uma trama divina” nos ajuda a lê-los, se parece como o do cinema. Santo Inácio de Loyola, nos seus Exercícios Espirituais, convida-nos a contemplar os Evangelhos com os olhos da imaginação, com os olhos, não com a abstração mental. Assim sendo, a história de Jesus entra na nossa. À luz da nossa vida, podemos vê-la, mas vemos também os rostos, os acontecimentos, os personagens… Podemos imaginar que até nós entramos na história de Jesus, vendo sua pessoa, os lugares, seus movimentos e até ouvir as palavras que ele pronuncia. Deste modo, o Evangelho nos toca profundamente.

Os gestos de Jesus são inclusivos: aproxima os mais pobres, os oprimidos, os cegos, tornando-os partícipes da sua nova visão das coisas. Seu olhar não é assistencialista. Ele cura os cegos, não para que apreciem um espetáculo midiático neste mundo, mas para que possam ver a ação de Deus na história. O Senhor não vem libertar os oprimidos, só para que se sintam bem, mas para se que coloquem em ação.

Jesus confia no melhor espírito humano. Encontrá-lo significa recuperar as energias, as força, a coragem. Diante da realidade, o Mestre não se deixa levar por reclamações, não faz um julgamento paralisante. Pelo contrário, convida-nos a um compromisso apaixonado.

A vulnerabilidade das pessoas, pelas quais o Senhor se compadece, não o leva a fazer uma avaliação prudente sobre as nossas limitações, como os Apóstolos lhe sugerem, mas exorta à superabundância transbordante do Evangelho, como aconteceu com a “Multiplicação dos pães”.

Neste sentido, uma trama divina coloca claramente em evidência a capacidade de julgamento diferente de Jesus e de seus discípulos. Não devemos temer se, muitas vezes, vemos Jesus incompreendido até pelos seus, tendo que agir sozinho, mas, questionar a nossa capacidade de julgar e entender o Evangelho.

Enfim, como podemos falar de Jesus? Qual a linguagem que devemos usar? Como apresentar este “personagem”, que mudou a história do mundo? Eis alguns desafios deste livro. Certamente, não devemos apresentá-lo com uma linguagem costumeira. A linguagem da verdadeira tradição é viva, vital, capaz de um futuro e poesia, porque a linguagem costumeira é obsoleta, enfadonha, cerimoniosa, óbvia. A Igreja deve fazer atenção para não cair na armadilha de uma linguagem banal, de frases repetidas de modo mecânico e cansativo.

O Evangelho deve ser fonte de genialidade e surpresa, capaz de abalar nosso interior. A pior coisa é transformar o poder da linguagem evangélica em algodão-doce: amenizar o impacto das palavras, suavizar certos aspectos das frases, domesticar o sentido do discurso. Quanto são importantes as palavras! Artistas e escritores, pela natureza própria da sua inspiração, conseguem preservar a força do discurso evangélico.

Hoje, no mundo, ressoa um “eco atômico”, segundo a expressão do poeta jesuíta, Gerard Manley Hopkins. Faço um apelo: “Neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e grandes polarizações, paradigmas rígidos, graves desafios climáticos e econômicos, devemos sentir a necessidade da genialidade de uma nova linguagem, histórias e imagens poderosas, escritores, poetas e artistas capazes de gritar ao mundo a mensagem do Evangelho e nos mostrar Jesus.

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