Na íntegra

Discurso do Papa na oração ecumênica em Juba, no Sudão do Sul

VIAGEM DO PAPA FRANCISCO À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E AO SUDÃO DO SUL
31 de janeiro a 5 de fevereiro de 2022
Oração Ecumênica
Mausoléu “John Garang” – Juba – Sudão do Sul
Sábado, 4 de fevereiro de 2023

Boletim da Santa Sé

Senhor Presidente da República,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Queridos irmãos e irmãs!

 

Acabam de se elevar, desta amada e atribulada terra, para o Céu tantas orações: vozes diferentes uniram-se, formando uma só voz. Juntos, como Povo santo de Deus, rezamos por este povo ferido. Como cristãos, a primeira coisa – e a mais importante – que somos chamados a fazer é rezar, para podermos trabalhar bem e termos a força de caminhar. Rezar, trabalhar e caminhar: três verbos sobre os quais precisamos de refletir.

Rezar, antes de tudo. Sem a oração, seria vão o notável empenho das comunidades cristãs na promoção humana, na solidariedade e na paz. De facto, não podemos promover a paz sem antes invocar Jesus, «Príncipe da paz» (Is 9, 5). Aquilo que fazemos pelos outros e partilhamos com os outros é, primariamente, dom gratuito que as nossas mãos vazias recebem d’Ele: é graça, pura graça. Somos cristãos, porque gratuitamente amados por Cristo.

Esta manhã inspirei-me na figura de Moisés e agora, a propósito precisamente da oração, quero recordar um episódio decisivo para ele e para o seu povo, ocorrido precisamente no início do caminho rumo à liberdade. Tendo chegado às margens do Mar Vermelho, uma cena dramática se apresenta aos olhos de Moisés e de todos os israelitas: à sua frente, aparece a barreira intransponível das águas; pela retaguarda, está a chegar o exército inimigo, com carros e cavalos. Porventura isto não nos recorda os primeiros passos deste país, acometido não só pelas águas funestas das desastrosas inundações que o atingiram, mas também por uma brutal violência bélica? Então Moisés, naquela situação desesperada, diz ao povo: «Não tenhais medo. Permanecei firmes e vede a salvação que o Senhor fará» (Ex 14, 13). Eu pergunto-me: a Moisés donde lhe vinha semelhante certeza, enquanto o seu povo continuava a lamentar-se apavorado? Aquela força vinha-lhe da escuta do Senhor (cf. 14, 2-4), que lhe prometera manifestar a sua glória. A união com Deus, a confiança n’Ele cultivada na oração, foi o segredo que permitiu a Moisés acompanhar o povo da opressão à liberdade.

Dá-se o mesmo conosco: rezar dá a força para seguir em frente, superar os medos, vislumbrar, mesmo na escuridão, a salvação que Deus prepara. Além disso, a oração atrai sobre o povo a salvação de Deus. A esta oração de intercessão, que caracterizou a vida de Moisés (cf. Ex 32, 11-14), estamos obrigados sobretudo nós, Pastores do Povo santo de Deus. Para que o Senhor da paz intervenha onde os homens não conseguem construí-la, é precisa a oração: uma oração tenaz e constante de intercessão. Irmãos, irmãs, apoiemo-nos nisto: nas nossas várias Confissões, sintamo-nos unidos entre nós, como uma só família; e sintamo-nos encarregados de rezar por todos. Nas nossas paróquias, igrejas, assembleias de culto e louvor, rezemos assíduos e concordes (cf. At 1, 14) para que o Sudão do Sul, como o povo de Deus na Escritura, «alcance a terra prometida»: disponha serena e equitativamente da terra fértil e rica que possui e seja cumulado daquela paz prometida, mas que, infelizmente, ainda não chegou.

E, em segundo lugar, somos chamados a trabalhar precisamente pela causa da paz. Pois Jesus quer-nos «pacificadores» (Mt 5, 9), quer que a sua Igreja seja não só sinal e instrumento da íntima união com Deus, mas também da unidade de todo o género humano (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1). Com efeito, como recorda o Apóstolo Paulo, Cristo «é a nossa paz» justamente no sentido do restabelecimento da unidade: foi Ele quem, «dos dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade» (Ef 2, 14). Aqui está a paz de Deus: não apenas uma trégua entre os conflitos, mas uma comunhão fraterna, que brota de congregar, não de absorver; de perdoar, não de suplantar; de reconciliar-se, não de impor-se. Tão grande é o desejo de paz do Céu que foi anunciada logo no momento do nascimento de Cristo: «…paz na terra aos homens do seu agrado» (Lc 2, 14). E tão grande foi a angústia de Jesus pela rejeição deste dom, que Ele vinha trazer, que chorou sobre Jerusalém, dizendo: «Se neste dia também tu tivesses conhecido o que te pode trazer a paz!» (Lc 19, 42).

Trabalhemos incansavelmente, queridos irmãos e irmãs, por esta paz que o Espírito de Jesus e do Pai nos convida a construir: uma paz que integra as diversidades, que promove a unidade na pluralidade. Esta é a paz do Espírito Santo, que harmoniza as diferenças, ao passo que o espírito inimigo de Deus e do homem aproveita as diversidades para dividir. A propósito diz a Escritura: «Nisto é que se distinguem os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele que não ama o seu irmão» (1 Jo 3, 10). Amigos caríssimos, quem se diz cristão deve escolher de que parte estar. Quem segue Cristo escolhe a paz, sempre; quem desencadeia guerra e violência atraiçoa o Senhor e renega o seu Evangelho. O estilo que Jesus nos ensina é claro: amar a todos, uma vez que todos são amados como filhos pelo Pai comum que está nos céus. O amor do cristão não é só para os vizinhos, mas para cada um, porque cada um em Jesus é nosso próximo, irmão e irmã – até mesmo o inimigo (cf. Mt 5, 38-48) – e, com maior força de razão, aqueles que pertencem ao nosso próprio povo, embora de etnia diferente. «Que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12): este é o mandamento de Jesus, que contradiz toda a visão tribal da religião. «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21): esta é a ardente oração de Jesus ao Pai por todos nós, crentes.

Trabalhemos, irmãos e irmãs, por esta unidade fraterna entre nós, cristãos, e ajudemo-nos a fazer passar a mensagem da paz na sociedade, a difundir o estilo de não-violência de Jesus, para que, na pessoa que se professa crente, já não haja espaço para uma cultura baseada no espírito de vingança; para que o Evangelho não seja apenas um belo discurso religioso, mas uma profecia que se torna realidade na história. Trabalhemos por isto: trabalhemos pela paz tecendo e remendando, nunca cortando ou rasgando. Sigamos Jesus e, atrás d’Ele, demos passos comuns no caminho da paz (cf. Lc 1, 79).

E chegamos assim ao terceiro verbo: depois de rezar e trabalhar, caminhar. Aqui, ao longo dos decénios, as comunidades cristãs empenharam-se fortemente na promoção de percursos de reconciliação. Quero agradecer-vos por este luminoso testemunho de fé, nascido do facto de reconhecer, não só nas palavras mas também nas obras, que, antes das divisões históricas, existe uma realidade imutável: somos cristãos, somos de Cristo. É maravilhoso que, no meio de tanto conflito, a pertença cristã nunca tenha desagregado a população, mas foi, e é ainda, fator de unidade. A herança ecuménica do Sudão do Sul é um tesouro precioso, um louvor ao nome de Jesus, um ato de amor à Igreja sua esposa, um exemplo universal para o caminho de unidade dos cristãos. É uma herança que deve ser guardada com o mesmo espírito: as divisões eclesiais dos séculos passados não se repercutam sobre quem é evangelizado, mas possa a sementeira do Evangelho contribuir para gerar maior unidade. O tribalismo e o faciosismo que alimentam as violências no país não afetem as relações interconfessionais; pelo contrário, derrame-se sobre o povo o testemunho de unidade dos crentes.

Neste sentido e para concluir, quero sugerir duas palavras-chave para a continuação do nosso caminho: memória e compromisso. Memória: os passos que dais recalcam as pegadas dos predecessores. Não tenhais medo de não estar à altura, mas senti-vos impelidos por quem vos preparou a estrada: como numa corrida com estafetas, recolhei o testemunho para apressar a conquista da meta duma comunhão plena e visível. E depois o compromisso: caminha-se para a unidade, quando o amor é concreto, quando nos damos as mãos para socorrer quem está na margem da estrada, quem é ferido e descartado. Já o fazeis em muitos campos; penso em particular nos campos da saúde, da instrução, da caridade. Como é urgente e indispensável a ajuda que levais à população! Obrigado! Continuai assim: nunca concorrentes, mas familiares; irmãos e irmãs que, através da compaixão pelos que sofrem, os prediletos de Jesus, dão glória a Deus e testemunham a comunhão que Ele ama.

Queridos amigos, os meus irmãos e eu viemos como peregrinos até junto de vós, Povo santo de Deus em caminho. Mesmo distantes fisicamente, continuaremos sempre a estar próximos de vós. Recomecemos cada dia a partir da oração de uns pelos outros e com os outros, do trabalhar juntos como testemunhas e mediadores da paz de Jesus, do caminhar pela mesma estrada, dando passos concretos de caridade e unidade. Em tudo, amemo-nos intensamente e de coração sincero (cf. 1 Ped 1, 22).

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