Entrevista

Ao contar como vive pandemia, Papa alerta contra hipocrisia e incoerência

“É o momento de nos convertermos desta hipocrisia em ação; este é um tempo de coerência. Ou sejamos coerentes ou perderemos tudo”, afirmou Francisco ao jornalista Austen Ivereig

Da redação, com Vatican News

Papa Francisco /Foto: Daniel Ibanez – CNA

Como o Papa Francisco está vivendo a crise causada pelo Covid-19? E como se prepara para viver depois? Ao responder a essas e a outras perguntas do jornalista e escritor britânico Austen Ivereig, o Pontífice relatou: “A Cúria busca trabalhar em continuação, viver normalmente, organizando-se em turnos para que nunca tenha muitas pessoas juntas. Muito bem pensado. Mantemos as medidas estabelecidas pelas autoridades sanitárias. Aqui na Casa Santa Marta temos dois horários para o almoço, para atenuar o afluxo dos residentes. Cada um trabalha no seu escritório ou em casa com instrumentos digitais. Todos trabalham, ninguém fica no ócio”.

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Sobre a vivência espiritual, o Santo Padre afirmou que tem rezando ainda mais. “Rezo mais ainda porque acredito que devo fazer assim e penso nas pessoas. Preocupa-me isso: as pessoas. Pensar nas pessoas me ajuda, me faz bem, me subtrai ao egoísmo. Obviamente tenho meus egoísmos: na terça-feira recebo meu confessor, é então que coloco no lugar esse tipo de coisa. Penso nas minhas responsabilidades atuais e no que acontecerá depois. Qual será, nesse depois, o meu serviço como bispo de Roma, como chefe da Igreja? Aquele depois já começou a se mostrar trágico, doloroso, por isso, convém começar a pensar desde agora”. O Papa contou que foi criado juntamente com o dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral uma comissão que trabalha sobre este tema.

Proximidade com o povo

Neste período de pandemia, Francisco relata que sua maior preocupação é como acompanhar o povo de Deus e estar mais próximo dele. “Este é o significado da Missa das sete da manhã ao vivo em streaming, seguida por muitas pessoas que se sentem acompanhadas, assim como de algumas minhas intervenções e do rito de 27 de março na Praça São Pedro. Também de um trabalho bastante intenso de presença, por meio da Esmolaria Apostólica, para acompanhar as situações de fome e de doenças. Estou vivendo este momento com muita incerteza. É um momento de muita inventiva, de criatividade”.

Na segundo pergunta, Austen Ivereigt fala sobre a obra literária “Os Noivos” de Alessandro Manzoni, ambientado no tempo da peste de 1630 em Milão. O livro descreve o comportamento de vários eclesiásticos. E perguntou como o Papa vê a missão da Igreja neste momento. Ao responder ao jornalista, o Pontífice recordou o cardeal Federico como um verdadeiro herói da peste em Milão. “Todavia, há um capítulo que diz que passava saudando as pessoas, porém, fechado em uma liteira, talvez, por trás da janelinha, para se proteger. O povo não gostou daquilo. O povo de Deus precisa do pastor ao seu lado, que não se proteja demais. Hoje, o povo de Deus precisa do pastor muito próximo dele, com a abnegação daqueles capuchinhos, que faziam assim”.

Criatividade cristã

A criatividade do cristão deve se manifestar em abrir novos horizontes, abrir novas janelas, abrir transcendência para com Deus e os homens, e deve se redimensionar em casa, defendeu Francisco. O Santo padre observou que não é fácil ficar fechado em casa e lembrou de um verso da “Eneida” que, no contexto de uma derrota, dá o conselho de não desistir. “Preparem-se para tempos melhores, porque naquele momento isso nos ajudará a recordar as coisas que aconteceram agora”, pontuou.

“Cuidem-se bem para um futuro que virá. E quando ele chegar, fará muito bem recordar o que aconteceu agora. Cuidar do agora, mas para o amanhã. Tudo isso com criatividade. Uma criatividade simples, que todos os dias inventa alguma coisa. Em família não é fácil descobri-la. Mas não se pode fugir, buscar evasões alienantes, que neste momento não são úteis”.

Valor da vida

Ivereig perguntou também sobre as políticas dos Governos em resposta à crise. Em sua resposta, o Papa afirmou que alguns governos tomaram medidas exemplares, com prioridades bem definidas, para defender a população. Mas, ponderou que todos estão se dando conta que as preocupações, queira ou não, estão ligadas à economia. “Dir-se-ia que no mundo financeiro sacrificar seja uma coisa normal. Uma política da cultura do descarte. Do início ao fim. Penso, por exemplo, na seletividade pré-natal. Hoje, é muito difícil encontrar pela rua pessoas com a síndrome de Down. Quando são detectados nos exames de ultrassom, são renegados. Uma cultura da eutanásia, legalizada ou oculta, na qual são dados remédios ao idoso até um certo ponto”.

Francisco citou a encíclica do Papa Paulo VI, a Humanae vitae. Segundo o Pontífice, a grande problemática da época que os pastoralistas se concentravam era a pílula. “Não se deram conta da força profética daquela encíclica que antecipava o neomalthusianismo que estava sendo preparando em todo o mundo. É uma advertência de Paulo VI sobre a onda de neomalthusianismo que hoje vemos na seleção das pessoas segundo a possibilidade de produzir, de ser útil: a cultura do descarte. (…) Os sem-teto, continuam sem-teto. Alguns dias atrás vimos uma fotografia de Las Vegas, na qual eles tinham sido colocados em quarentena em um estacionamento aberto. E os hotéis estavam vazios. Mas um sem-teto não pode ir a um hotel. Aqui pode-se ver a prática da teoria do descarte”.

Recuperar a memória

Ao falar sobre o impacto da crise, como pode levar a uma revisão do modo de viver, a uma conversão ecológica e a uma sociedade e economia mais humanas, o Santo Padre recordou um provérbio espanhol que diz: “Deus perdoa sempre, nós, algumas vezes, a natureza nunca”. “Não demos ouvido às catástrofes parciais. Quem é que fala dos incêndios na Austrália? E do fato que um ano e meio atrás um navio atravessou o Polo Norte, que tinha se tornado navegável por causa do derretimento das geleiras? Quem fala das inundações? Não sei se é uma vingança da natureza, mas certamente é a sua resposta”.

“Temos uma memória seletiva. Gostaria de insistir nisso. Impressionou-me a celebração do 70º aniversário do desembarque na Normandia. Com a presença de personagens da política e da cultura internacional. E festejavam. Certamente foi o início do fim da ditadura, mas ninguém recordava dos 10 mil jovens que morreram naquela praia”. Quando foi à cidade de Redipuglia, no centenário do fim da I Guerra Mundial, o Papa contou ter visto um belo monumento e nomes gravados em uma pedra, e nada mais. “Pensei em Bento XV (ao “inútil massacre”), o mesmo ocorreu em Anzio, no dia de finados, pensando em todos os soldados norte-americanos sepultados ali. Cada um tinha uma família”.

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O Pontífice citou que atualmente, na Europa, quando se começam a ouvir discursos populistas ou decisões políticas de tipo seletivo não é difícil recordar dos discursos de Hitler em 1933. “Mais ou menos os mesmos que alguns políticos fazem hoje”, sublinhou. Francisco comentou um verso de Virgílio: Meminisce iuvabit. “Fará bem recuperar a memória, porque a memória nos ajudará. Hoje é tempo de recuperar a memória. Não é a primeira pestilência da humanidade. As outras já se reduziram a casos sem importância. Devemos recuperar a memória das raízes, da tradição, que é ‘memoriosa’. Nos Exercícios de Santo Inácio, toda a primeira semana e a contemplação para alcançar o amor na quarta semana, seguem inteiramente o sinal da memória. É uma conversão com a memória”.

“Esta crise nos toca a todos: ricos e pobres. É um apelo à atenção contra a hipocrisia. Preocupa-me a hipocrisia de alguns políticos que dizem que querem enfrentar a crise, que falam da fome no mundo, enquanto fabricam armas. É o momento de nos convertermos desta hipocrisia em ação. Este é um tempo de coerência. Ou sejamos coerentes ou perdemos tudo”.

Conversão

Sobre a conversão, o Santo Padre comentou que toda a crise é um perigo, mas também uma oportunidade. “E é a oportunidade de sair do perigo. Hoje, acreditamos que devemos diminuir o ritmo de consumo e de produção (Laudato si’, 191) e aprender a compreender e a contemplar a natureza. Também a entrar novamente em contato com o nosso ambiente real, essa é uma oportunidade de conversão”, pontuou. 

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O Papa afirmou ver sinais iniciais de conversão a uma economia menos líquida, mais humana. Mas alertou: “Não devemos perder a memória depois que passar a situação presente, não devemos arquivá-la e voltar ao ponto anterior. É o momento de dar o passo. De passar do uso e abuso da natureza à contemplação. Nós homens perdemos a dimensão da contemplação, chegou a hora de recuperá-la”.

Devemos, disse ainda Francisco citando o célebre romance de Dostoievski, descer no subsolo e passar da sociedade hipervirtualiada, desencarnada à carne sofredora do povo, é uma conversão obrigatória. “Se não começarmos por ali, a conversão não terá futuro”, frisou. O Pontífice afirmou pensar nos santos do dia a dia nestes momentos difíceis. “São heróis! Médicos, voluntários, religiosas, sacerdotes, profissionais da saúde que fazem seu serviço para que esta sociedade funcione”.

Igreja do pós-crise

A propósito da Igreja do pós-crise Francisco disse: “Algumas semanas atrás me telefonou um bispo italiano. Aflito, dizia-me que ia de um hospital a outro para dar a absolvição a todos os que estavam internados, ficando na entrada do hospital. Mas que alguns canonistas tinham chamado a sua atenção dizendo que não podia fazer assim, a absolvição é permitida apenas com um contato direto. ‘Padre, o que o senhor pode me dizer?’, perguntou-me o bispo. Disse-lhe: ‘O senhor faça o seu dever sacerdotal’. E o bispo me respondeu: ‘Obrigado, entendi’. Depois soube que dava absolvições em vários lugares”.

Em outras palavras, neste momento, diante de uma crise, o Pontífice afirmou que a Igreja é a liberdade do Espírito, e não uma Igreja fechada nas instituições. “O último cânon diz que todo o Direito canônico tem sentido para a salvação das almas, e é aqui que nos é aberta a porta para levarmos a consolação de Deus nos momentos de dificuldade”.

Por fim, o Papa observou que as pessoas que ficaram pobres por causa da crise são os despojados de hoje que se somam aos despojados de sempre, homens e mulheres que carregam “despojado” como estado civil. “Perderam tudo ou estão perdendo tudo. Qual é sentido para mim, hoje, perder tudo à luz do Evangelho? Entrar no mundo dos ‘despojados’, entender que os que antes tinham agora não têm mais. O que peço às pessoas é para que cuidem dos idosos e dos jovens. Cuidem da história. Cuidem destes despojados”.

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