Artigo - Doutrina Social

Não perder a utopia

No âmbito da Doutrina social da Igreja existe uma relação de complementaridade entre Fé e Utopia

Padre Antônio Aparecido Alves*

Na linguagem popular, utopia designa o irrealizável e se refere a um quadro ideal, a um estado perfeito, a uma sociedade puramente imaginária. No entanto, não é bem assim. A utopia é realidade ainda não concretizada, mas que pode ser alcançada. É realidade germinal, projeto pensado e desejado, que ainda não compareceu ao mundo existente, mas pode se converter em fenômeno histórico. É realidade que ainda não ocupa seu espaço, mas poderá ocupá-lo ao tornar-se topia através da práxis¹.

Etimologicamente, a expressão criada por Thomas More, em 1516, através de uma obra que leva este título, significa o “não-lugar” (Ou-topos, em grego), isto é, o modelo de sociedade imaginada por ele não tinha lugar na realidade em que vivia.

A sociedade boa, de justiça, de paz e prosperidade não existe ainda, mas pode ser implementada. Assim, a expressão vem carregada de uma carga de factibilidade, isto é, um projeto que deve acontecer no aqui e agora da história.

Utopia e Doutrina social da Igreja

O Beato Paulo VI, na Carta Apostólica Octogesima Adveniens (n. 37) fez uma apreciação positiva da função social das utopias, pois elas respondiam melhor que as ideologias aos anseios por uma nova ordem social. O perigo seria vivê-las no sentido popular, isto é, como algo impossível de ser realizado e assim cair no comodismo.

Por isso, afirma o Pontífice: “Entretanto, é necessário reconhecê-lo, que esta forma de crítica da sociedade existente provoca muitas vezes a imaginação prospectiva para, ao mesmo tempo, perceber, no presente, o possível ignorado, que aí se acha inscrito, e para orientar no sentido de um futuro novo; ela apoia, deste modo, a dinâmica social pela confiança que ela dá às forças inventivas do espírito e do coração humano; e, se ela não rejeita nenhuma abertura, ela pode encontrar também o apelo cristão”.

Note-se que o Pontífice aponta para o sentido original da utopia, isto é, uma crítica construtiva à ordem social existente. Esta estimula a capacidade criadora do espírito humano para construir o novo.

Existe, portanto, no âmbito da Doutrina social da Igreja, uma relação de complementaridade entre Fé e Utopia. Pode-se dizer que a fé está mais próxima da utopia do que das ideologias e que a utopia pode fazer parte da vivência cristã, desde que não rejeite nenhuma abertura ao outro e a Deus.

O homem novo, que é o cristão, encontra a novidade e a impossibilidade de fechamento em si mesmo nos limites do estabelecido, pois é a força do Espírito que o move, impulsiona e sustenta, inclusive, contra o que seria sua tranquilidade e segurança. A inquietude agostiniana vem colocada, nesta dimensão, não somente em sentido psicológico ou ontológico, mas sobretudo sociológico e político.

A utopia não morreu

Nós, cristão, somos aqueles que não se conformam com as estruturas deste mundo (Rm 12,2). O que nos move é a utopia do Reino de Deus, com seus grandes valores: vida, justiça, paz e verdade.

Avancemos para águas mais profundas (Lc 5,6). Não podemos perder o trem da história. É hora de dar nossa parcela de contribuição para a concretização de um projeto de sociedade longamente sonhado e ardorosamente buscado. Como cidadãos, não podemos ficar fora dessa luta. O tempo é agora. O tempo se chama hoje (Hb 3,13).

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1 ARDUNI, Juvenal. Utopia e Esperança. In: VIDA PASTORAL, Maio-Junho de 1991 (pp. 19-24).

*Padre Antonio Aparecido Alves é Mestre em Ciências Sociais com especialização em Doutrina Social da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e Doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor na Faculdade Católica de São José dos Campos e Pároco na Paróquia São Benedito do Alto da Ponte em São José dos Campos (SP). Para conhecer mais sobre Doutrina Social visite o Blog: www.caminhosevidas.com.br

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