O Papa Francisco convocou para este domingo, 8, o 1º Dia de Oração contra o Tráfico Humano; Saiba qual a realidade deste problema no Brasil
Kelen Galvan
Da redação
O tráfico humano é uma das atividades criminosas mais lucrativas do mundo, que vitima aproximadamente 2,5 milhões de pessoas, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
O problema é acompanhado de perto pelo Papa Francisco que, desde o início do seu Pontificado, chama a atenção para a causa. Exemplo disso, é a recente mensagem para o Dia Mundial da Paz, na qual o Santo Padre pede um esforço comum e leis mais justas para acabar com as formas de escravidão modernas.
E também a convocação do 1º Dia internacional de Oração contra o Tráfico de Seres Humanos, que será realizado neste domingo, 8. Data em que a Igreja Católica recorda Santa Josefina Bakhita, uma escrava que viveu na pele essa realidade.
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No Brasil, segundo dados oficiais do Ministério da Justiça de 2013, mais de 25 mil pessoas são vítimas desse crime. A grande maioria na região norte do país.
Mas, segundo a coordenadora da Rede Um Grito pela Vida, Irmã Eurides Alves de Oliveira, os números mostram apenas uma parte da realidade.
A rede, criada há oito anos, é formada por religiosas e trabalha diretamente com o enfrentamento do tráfico humano. Atualmente conta com mais de 250 representantes, de diversas congregações, em 22 estados do país.
Em entrevista ao noticias.cancaonova.com, a responsável fala sobre a realidade do tráfico humano no país e as ações de prevenção e assistência às vítimas deste crime.
Leia, abaixo, a entrevista na íntegra:
noticias.cancaonova.com: Diante do cenário atual brasileiro, quais os dados mais recentes sobre os casos de tráfico humano no Brasil?
Irmã Eurides Alves: Quando a gente fala de dados, estamos sempre falando de estatísticas oficiais que correspondem a uma parte da realidade. E a gente convive no Brasil com uma certa dificuldade de um banco de dados mais atualizado. Mas, o que nós temos recentemente do país são os dados do Ministério da Justiça, de 2013, que eles se baseiam nas fontes dos organismos internacionais e de pesquisas precárias que o país tem realizado.
Nós temos dados bem defasados. No Brasil hoje falam-se de mais de 25 mil pessoas em situação de tráfico humano para o trabalho escravo, mais ou menos 700 mulheres que atravessam anualmente as fronteiras internacionais do tráfico para fins de exploração sexual e falam-se de mais de 240 rotas de tráfico no país, das quais, mais de 60% corresponde ao tráfico interno (das cidades menores para as maiores, das regiões menos favorecidas para as de maior porte) focado sobretudo na exploração sexual de mulheres e crianças.
Falam-se também de um grande fluxo de tráfico nas fronteiras do país. Nós temos um diagnóstico de 2013, mas que não traz números exatos, mas aponta o país como o responsável por 15% do tráfico humano – ou seja, daquilo que a OIT fala de mais de 20 milhões de pessoas ao ano, somos responsáveis por 15% desse tráfico de fronteira dentro da América Latina.
noticias.cancaonova.com: Quais são as regiões mais afetadas no país?
Irmã Eurides Alves: Segundo os dados estatísticos oficiais, o Norte, seguido pelo Nordeste, Sudeste, Centro-oeste e Sul. Nessa escala.
Uma pesquisa bem defasada, porque a gente quase não tem como mensurar, até porque o conceito de rotas hoje migra muito. Sobretudo agora com esse fluxo migratório que estamos tendo, que é assustador. Não no sentido que é ruim, porque as pessoas têm o direito de ir e vir e correr atrás dos seus sonhos, mas a gente está tendo uma migração forçada muito grande nas fronteiras. Então as rotas migram muito, porque as pessoas tentam entrar onde conseguem maior facilidade, mas o mapa das rotas que nós temos (de 2002 a 2005) destaca a região norte com 76 rotas.
As estatísticas são importantes, quero afirmar isso, mas elas não são exatas. Porque na verdade há um estereótipo de que tráfico é coisa, normalmente, de pessoas mais vulneráveis, da miséria absoluta, e se criou um estereótipo de que isso está na região norte e nordeste do país, então o foco de pesquisa acaba sendo maior nessa região.
No sudeste há um grande número de vítimas do tráfico. Se pegamos os dados da Casa do Migrante de São Paulo, teremos, dentro do percentual que eles falam da migração, quase 70% de pessoas com histórias de vida que evidenciam tráfico humano. Mas elas não estão nas estatísticas de tráfico humano, estão nas estatísticas da migração.
Não estou dizendo que todo imigrante é [vítima do] tráfico, mas muitos dos indícios de migração, das pessoas que vêm, o tipo de trabalho que fazem, eles acabam tendo na sua história de vida, ouvida pelos agentes da Pastoral do Migrante e por nós também da Rede, na escuta, a história é “ipsis litteris” do tráfico de pessoas, mas como não tem uma estatística, não foi registrado. Como eles também têm dificuldade de se identificarem como vítimas, isso não entra nos órgãos oficiais.
Por isso, eu costumo dizer para o pessoal, esses são os números oficiais; na vida real você pode dobrar e triplicar, sem medo de errar.
Nossa briga com o Ministério da Justiça tem sido essa, para poder ultrapassar a estatística só com os números de inquéritos. Porque as pesquisas são feitas a partir das denúncias, e a gente tem no país uma cultura difícil, com pessoas que têm dificuldade de fazer as denúncias, até porque precisam se expor, lidar com questões de estereótipo, questões morais e uma burocracia imensa.
Nós divulgamos sempre os números de denúncia (100 e 180) e os números locais de cada estado. As denúncias cresceram de 2005 para cá, mas elas ainda são precárias.
noticias.cancaonova.com: A Campanha da Fraternidade do ano passado deu bastante visibilidade a essa questão do tráfico humano aqui no país. Na sua concepção, como a campanha contribuiu para mobilizar as consciências das pessoas com relação a essa problemática?
Irmã Eurides Alves: A Campanha da Fraternidade foi um ápice, porque é uma iniciativa da CNBB que tem muita credibilidade. Então ela foi um ápice no sentido que, o primeiro ganho foi dar visibilidade à questão e ajudar as pessoas a identificar as situações que configuram tráfico.
Ela provocou muita sensibilização e muitas organizações passaram a pautar o tema nas suas bandeiras de luta a partir da campanha.
Nós, como a Rede Um grito pela Vida, trabalhamos de manhã, tarde e noite, circulamos esse país de norte a sul. Nossa rede cresceu muito com a adesão de professores, pessoas do direito, assistentes sociais… fizemos um trabalho de capacitação dos agentes públicos, com conselheiros tutelares.
A Campanha da Fraternidade, do ponto de vista de chamar a atenção da sociedade, ajudar a superar a indiferença e a conscientizar sobre o problema, teve um salto muito grande. E provocou a adesão de muita gente para este trabalho, despertou muito na juventude a consciência de que o tráfico humano não é algo distante ou de alguns.
Muitas sugestões foram dadas pelas comunidades, sobretudo com linhas de fortalecer as políticas públicas de atendimento às mulheres e jovens, de fazer com que o governo estadual e federal consolide a criação dos núcleos de enfrentamento.
Inclusive, neste ano de 2015, numa avaliação que fizemos como rede, fechamos a campanha da fraternidade, a campanha da copa, e foi um “boom” de formação de consciência.
Agora a tentativa é sistematizar essas informações todas e fazer de 2015 um ano de pressão política, fazer chegar esse clamor, em forma de propostas e sugestões aos governos, para fortalecer a política pública de enfrentamento ao tráfico no país.
noticias.cancaonova.com: Quais as ações realizadas para buscar solucionar essa problemática no país, tanto em âmbito preventivo quanto de apoio às vítimas?
Irmã Eurides Alves: Vou falar a partir do poder público e depois da sociedade civil. A partir do poder público, há uma lentidão muito grande nas ações. O temos de conquista? De 2005 pra cá, já temos uma política de enfrentamento ao tráfico de pessoas e dois planos, um que foi de 2008 a 2012, que visava uma atuação mais efetiva do estado, sobretudo a implantação dos núcleos de enfrentamento nos estados e dos comitês de atenção às vítimas.
No período de 2008 a 2010 foi feita pouca coisa. Teoricamente, foram instalados 11 núcleos de enfrentamento, mas terminamos fazendo um balanço de funcionamento de dois ou três.
A partir de 2012, nós construímos, com a participação mais efetiva da sociedade civil, a partir de uma avaliação muito séria da morosidade do estado, o segundo plano de enfrentamento ao tráfico. E desde então, houve um pequeno avanço.
Hoje temos 17 núcleos de enfrentamento nos estados do país, destes, 60% funcionam razoavelmente do ponto de vista de acolher as denúncias, da confecção de material e de realização de alguns seminários em pontos estratégicos, sobretudo nessa linha das fronteiras, tem feito algumas capacitações de agentes públicos, mas é muito moroso.
O grande limite do estado é o atendimento às vítimas. Hoje o estado praticamente não tem casas-abrigo para vítimas de tráfico. O que se divulga é que só tem três abrigos em nível de Brasil. Na maioria das vezes, as vítimas são colocadas nos espaços da ONGs ou recorre-se à secretaria das mulheres, e elas são acolhidas nos mesmos abrigos das mulheres que sofrem de violência doméstica.
Do ponto de vista da sociedade civil, nós temos poucas organizações que trabalham a questão do tráfico, mas podemos citar, do ponto de vista mais eclesial, a Rede um Grito pela vida, a pastoral da mulher marginalizada, temos uma parceria grande com o pessoal da mobilidade humana – que não tem como foco específico o tráfico humano, mas tem um vínculo muito grande.
O trabalho que é realizado é praticamente em três viés. Um trabalho intenso de prevenção, e isso se dá muito através da capacitação, com cursos, seminários e oficinas com todo tipo de público. Temos investido grande força na questão da educação, ido nas escolas, trabalhado com a juventude e com as comunidades. Temos feito um trabalho enorme de mediação dos casos, ouvido as histórias, incentivado e acompanhado as pessoas, ido junto para fazer os registros, e tentado tornar o trabalho intersetorial, buscando envolver várias secretarias nesse atendimento, como é o caso dos conselhos tutelares, buscamos trabalhar em conjunto com eles, a secretaria de assistência social e também as universidades, para ampliar a formação da consciência dos profissionais que estão saindo para trabalhar na sociedade.
E a outra luta grande é no sentido de ocupar os espaços nesses comitês de enfrentamento que existem no estado e de participar ativamente com sugestões, com cobranças e com mobilizações para que o governo avance na questão sobretudo do atendimento às vítimas e um maior rigor na punição dos culpados.
Como rede não temos nenhuma casa abrigo, o que fazemos é quando aparece o caso fazer a mediação para conseguir onde colocar essa pessoa. Às vezes num espaço público ou se tiver uma congregação que atua mais diretamente com essa realidade.
noticias.cancaonova.com: O Papa Francisco tem manifestado sua preocupação constante com o tema. Tendo em vista a importância da figura do Papa, que diferença esses apelos constantes têm feito para a mobilização no combate ao tráfico humano?
Irmã Eurides Alves: O Papa Francisco tem sido um grande aliado, primeiro do ponto de vista de sua sensibilidade às questões sociais, que tem encantado o mundo e levado o recado contra essa lógica que coloca as pessoas em segundo plano, e o dinheiro, o interesse e o poder acima de tudo.
O grande legado do Papa é a volta que a gente tem que fazer para colocar as pessoas no centro da vida, e cuidar e defender essa vida com rigor.
E a sua consciência de que o tráfico humano, dentre os grandes problemas da humanidade, é hoje um dos mais urgentes, que está tomando proporção muito grande, porque existe em todos os continentes. É um problema do mundo.
Então, a sua convocação chega para nós como uma interpelação de Deus, de justiça social, como uma interpelação à nossa pessoa, enquanto humano e cidadão.
Ele tem sido um grande parceiro, suas frases têm sido usada por nós no trabalho de sensibilização, e têm sido inovadoras suas iniciativas. Ele tem marcado presença em todos os locais onde se discute a questão. Junto ao conselho dos migrantes, à vida religiosa consagrada, e agora, o primeiro ano em que a gente celebra o Dia Internacional de oração e reflexão sobre o tráfico humano, no dia em que a Igreja celebra Santa Bakhita, que foi uma escrava vítima do trafico humano.
Sem dúvida, a mensagem do Papa Francisco é convocatória, que confirma nossa luta, que nos desafia a avançar, e traz para o mundo a seriedade desse problema. E como diz ele, é um compromisso de fé, porque a chaga do tráfico humano no corpo da humanidade é a chaga do tráfico humano no corpo de Cristo, e porque é também um grande crime, que precisa ser combatido por todos.
Eu costumo dizer que uma sociedade sem tráfico humano é de fato um apelo e só será possível erradicá-la se for assumida por todos, pela Igreja, pela vida religiosa, pela sociedade e pelo estado.
E isso é feito através de uma ação planejada e articulada com todos esses serviços. E acho que o Papa Francisco tem nos apoiado nesta perspectiva.