SESSÃO INAUGURAL DOS TRABALHOS DA V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE
DISCURSO DO PAPA BENTO XVI
Sala das Conferências – Santuário de Aparecida
Domingo, 13 de maio de 2007
Queridos Irmãos no Episcopado,
amados sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos
Queridos observadores de outras confissões religiosas
É motivo de grande alegria estar hoje aqui convosco, para inaugurar a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que se celebra junto ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Quero que as minhas primeiras palavras sejam de ação de graças e de louvor a Deus pelo grande dom da fé cristã às populações deste Continente.
Desejo agradecer igualmente as amáveis palavras do Senhor Cardeal Francisco Javier Errázuriz Ossa, Arcebispo de Santiago do Chile e Presidente do CELAM, pronunciadas também em nome dos outros dois Presidentes desta Conferência Geral e dos participantes na mesma.
1. A fé cristã na América Latina
A fé em Deus animou a vida e a cultura destes povos durante cinco séculos. Do encontro desta fé com as etnias originárias nasceu a rica cultura cristã deste Continente, manifestada na arte, na música, na literatura e sobretudo nas tradições religiosas e na idiossincrasia das suas populações, unidas por uma única história e por um mesmo credo, e formando uma grande sintonia na diversidade das culturas e das línguas. Na atualidade, esta mesma fé tem que enfrentar sérios desafios, pois estão em jogo o desenvolvimento harmônico da sociedade e a identidade católica dos seus povos. A este respeito, a V Conferência Geral vai refletir sobre esta situação para ajudar os fiéis cristãos a viver a sua fé com alegria e coerência, a tomar consciência de que são discípulos e missionários de Cristo, enviados por Ele ao mundo para anunciar e dar testemunho da nossa fé e amor.
Porém, o que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que fez deles filhos de Deus por adoção; ter recebido, outrossim, o Espírito Santo que veio fecundar as suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germes e sementes que o Verbo encarnado tinha lançado nelas, orientando-as assim pelos caminhos do Evangelho. Com efeito, o anúncio de Jesus e do seu Evangelho não supôs, em qualquer momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura alheia. As culturas autênticas não estão encerradas em si mesmas, nem petrificadas num determinado ponto da história, mas estão abertas, mais ainda, buscam o encontro com outras culturas, esperam alcançar a universalidade no encontro e o diálogo com outras formas de vida e com os elementos que possam levar a uma nova síntese, em que se respeite sempre a diversidade das expressões e da sua realização cultural concreta.
Em última instância, somente a verdade unifica, e a sua prova é o amor. Por isso Cristo, dado que é realmente o Logos encarnado, "o amor até ao extremo", não é alheio a qualquer cultura, nem a qualquer pessoa; pelo contrário, a resposta desejada no coração das culturas é o que lhes dá a sua identidade última, unindo a humanidade e respeitando, ao mesmo tempo, a riqueza das diversidades, abrindo todos ao crescimento na verdadeira humanização, no progresso autêntico. O Verbo de Deus, tornando-se carne em Jesus Cristo, fez-se também história e cultura.
A utopia de voltar a dar vida às religiões pré-colombianas, separando-as de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas um regresso. Na realidade, seria uma involução para um momento histórico ancorado no passado.
A sabedoria dos povos originários levou-os felizmente a formar uma síntese entre as suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam. Daqui nasceu a rica e profunda religiosidade popular, em que aparece a alma dos povos latino-americanos:
– o amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e da reconciliação; o Deus que nos amou a ponto de se entregar por nós;
– o amor ao Senhor presente na Eucaristia, o Deus encarnado, morto e ressuscitado para ser Pão de Vida;
– o Deus próximo dos pobres e daqueles que sofrem;
a profunda devoção à Santíssima Virgem de Guadalupe, de Aparecida ou das diversas invocações nacionais e locais. Quando a Virgem de Guadalupe apareceu ao índio São João Diogo, disse-lhe estas palavras significativas: "Não estou aqui, eu que sou a tua Mãe? Não te encontras sob a minha sombra e a minha proteção? Não sou eu a fonte da tua alegria? Não te encontras debaixo do meu manto, no cruzamento dos meus braços?" (Nican Mopohua, nn. 118-119).
Esta religiosidade expressa-se também na devoção aos Santos com as suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais Pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode, nem deve, deixar abandonados ou na miséria os seus próprios filhos. Tudo isto forma o grande mosaico da religiosidade popular que é o precioso tesouro da Igreja Católica na América Latina, e que ela deve proteger, promover e, naquilo que for necessário, também purificar.
2. Continuidade com as outras Conferências
Esta V Conferência Geral celebra-se em continuidade com as outras quatro que a precederam no Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. Com o mesmo espírito que as animou, os Pastores querem dar agora um renovado impulso à evangelização, a fim de que estes povos continuem a crescer e a amadurecer na sua fé, para ser luz do mundo e testemunhas de Jesus Cristo com a sua própria vida.
Depois da IV Conferência Geral, em Santo Domingo, muitas coisas mudaram na sociedade. A Igreja, que participa nas alegrias e esperanças, nas penas e nos júbilos dos seus filhos, quer caminhar ao seu lado neste período de tantos desafios, para lhes infundir sempre esperança e consolação (cf. Gaudium et spes, 1).
No mundo de hoje verifica-se o fenômeno da globalização como um entrelaçamento de relações a nível planetário. Embora sob certos aspectos seja uma conquista da grande família humana e um sinal da sua profunda aspiração à unidade, contudo comporta também o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo. Como em todos os campos da atividade humana, a globalização deve reger-se também na ética, colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.
Na América Latina e no Caribe, assim como em outras regiões, caminhou-se rumo à democracia, embora haja motivos de preocupação diante de formas de governo autoritárias ou sujeitas a certas ideologias que se julgavam ultrapassadas, e que não correspondem à visão cristã do homem e da sociedade, como nos ensina a Doutrina Social da Igreja. Por outro lado, a economia liberal de alguns países latino-americanos deve ter presente a equidade, pois continuam a aumentar os setores sociais que se vêem provados cada vez mais por uma pobreza enorme ou mesmo despojados dos seus próprios bens naturais.
Nas Comunidades eclesiais da América Latina é notável a maturidade na fé de muitos leigos e leigas ativos e dedicados ao Senhor, além da presença de muitos catequistas abnegados, de muitos jovens, de novos movimentos eclesiais e de recentes Institutos de vida consagrada. Demonstram-se muitas obras católicas educativas, assistenciais e hospitalares. Observa-se, contudo, uma certa debilitação da vida cristã no conjunto da sociedade e da própria pertença à Igreja Católica devido ao secularismo, hedonismo, indiferentismo e proselitismo de numerosas seitas, de religiões animistas e de novas expressões pseudo-religiosas.
Tudo isto configura uma situação nova que será analisada aqui, em Aparecida. Diante da nova encruzilhada, os fiéis esperam desta V Conferência uma renovação e revitalização da sua fé em Cristo, nosso único Mestre e Salvador, que nos revelou a experiência singular do Amor infinito de Deus Pai aos homens. Desta fonte poderão nascer novos caminhos e programas pastorais criativos, que infundam uma esperança firme para viver de maneira responsável e alegre a fé e para irradiá-la assim no próprio ambiente.
3. Discípulos e missionários
Esta Conferência Geral tem como tema: "Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida" (Jo 14, 6).
A Igreja tem a grande tarefa de conservar e alimentar a fé do Povo de Deus, e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude do seu batismo, são chamados a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo. Isto requer segui-lo, viver em intimidade com Ele, imitar o seu exemplo e dar testemunho. Cada batizado recebe de Cristo, como os Apóstolos, o mandato da missão: "Ide pelo mundo inteiro e proclamai a Boa Nova a toda a criação. Quem crer e for batizado, será salvo" (Mc 16, 15). Pois ser discípulo e missionário de Jesus Cristo e buscar a vida "nele" supõe estar profundamente enraizado nele.
O que nos dá Cristo realmente? Por que queremos ser discípulos de Cristo? Porque esperamos encontrar na comunhão com Ele a vida, a verdadeira vida digna deste nome, e por isso queremos dá-lo a conhecer aos demais, comunicando-lhes o dom que dele recebemos? Mas é mesmo assim? Estamos realmente convencidos de que Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida?
Diante da prioridade da fé em Cristo e da vida "nele", formulada no título desta V Conferência, poderia surgir também outra questão: esta prioridade, não poderia por acaso ser uma fuga no intimismo, no individualismo religioso, um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo, e uma fuga da realidade para um mundo espiritual?
Como primeiro passo, podemos responder a esta pergunta com outra: O que é esta "realidade"?
O que é o real? São "realidades" somente os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências predominantes no último século, erro destruidor, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como também dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a deturpação da realidade fundante e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus do seu horizonte falsifica o conceito de "realidade" e, por conseguinte, só pode terminar por caminhos equivocados e com receitas destruidoras.
A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: somente quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode corresponder-lhe de modo adequado e realmente humano. A verdade desta tese resulta evidente diante do fracasso de todos os sistemas que põem Deus entre parênteses.
Contudo, surge imediatamente outra pergunta: Quem conhece Deus? Como podemos conhecê-lo? Não podemos entrar aqui num debate complexo sobre esta questão fundamental. Para o cristão, o núcleo da resposta é simples: somente Deus conhece Deus, somente o seu Filho, que é Deus de Deus verdadeiro, O conhece. E Ele, "que está no seio do Pai, O deu a conhecer" (Jo 1, 18). Daqui a importância singular e insubstituível de Cristo para nós, para a humanidade. Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se transforma num enigma indecifrável; não há caminho e, não havendo caminho, não há vida nem verdade.
Deus é a realidade instituinte, não um Deus apenas pensado ou hipotético, mas o Deus com um rosto humano; é o Deus-conosco, o Deus do amor até à cruz. Quando o discípulo chega à compreensão deste amor de Cristo "até ao extremo", não pode deixar de responder a este amor, a não ser com um amor semelhante: "Seguir-te-ei para onde quer que fores" (Lc 9, 57).
Podemos formular ainda outra interrogação: O que nos dá a fé neste Deus? A primeira resposta é: dá-nos uma família, a família universal de Deus na Igreja Católica. A fé liberta-nos, de igual modo, do isolamento do eu, porque nos leva à comunhão: o encontro com Deus é, em si mesmo e como tal, encontro com os irmãos, um acto de convocação, de unificação e de responsabilidade pelo outro e pelos demais. Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8,9).
Porém, antes de enfrentar aquilo que comporta o realismo da fé no Deus que se fez homem, temos que aprofundar esta pergunta: Como conhecer realmente Cristo, para poder segui-lo e viver com Ele, para nele encontrar a vida e para comunicar esta vida ao próximo, à sociedade e ao mundo? Antes de tudo, Cristo dá-se-nos a conhecer na sua pessoa, na sua vida e na sua doutrina, através da Palavra de Deus. Começando a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência Geral em Aparecida, é condição indispensável o profundo conhecimento da Palavra de Deus.
Por isso, é necessário educar o povo para a leitura e a meditação da Palavra de Deus: que ela se transforme no seu alimento para que, pela sua própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6, 63). Caso contrário, como poderão anunciar uma mensagem, cujo conteúdo e espírito não conhecem profundamente? Temos que fundamentar o nosso compromisso missionário e toda a nossa vida na rocha da Palavra de Deus. Por isso, animo os Pastores a esforçar-se em vista de a dar a conhecer.
Um grande instrumento para introduzir o Povo de Deus no mistério de Cristo é a catequese. Nela, transmite-se de forma simples e substancial a mensagem de Cristo. Portanto, convirá intensificar a catequese e a formação na fé, tanto das crianças como dos jovens e dos adultos. A reflexão madura da fé é luz para o caminho da vida e força para sermos testemunhas de Cristo. Para isto, dispõe-se de instrumentos realmente preciosos, como o Catecismo da Igreja Católica e a sua versão mais breve, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica.
Neste campo não nos podemos limitar unicamente às homilias, conferências, cursos bíblicos ou teológicos, mas é necessário recorrer também aos meios de comunicação: imprensa, rádio e televisão, sites da internet, foros e muitos outros sistemas para transmitir eficazmente a mensagem de Cristo a um vasto número de pessoas.
Neste esforço em vista de conhecer a mensagem de Cristo e de a transformar na guia da própria vida, é preciso recordar que a evangelização sempre esteve unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã. "Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus" (Deus caritas est, 15). Por este mesmo motivo, será inclusive necessária uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isto o "Compêndio da Doutrina Social da Igreja". A vida cristã não se expressa unicamente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas.
O discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, sente-se impelido a anunciar a Boa Nova da salvação aos seus irmãos. Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma medalha: quando o discípulo está apaixonado por Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que somente Ele nos salva (cf. At 4, 12). Efetivamente, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não existe esperança, não há amor e não existe futuro.
4. "Para que nele tenham vida"
Os povos latino-americanos e caribenhos têm direito a uma vida plena, própria dos filhos de Deus, com condições mais humanas: livres das ameaças da fome e de todas as formas de violência. Para estes povos, os seus Pastores têm que fomentar uma cultura da vida que permita, como dizia o meu Predecessor Paulo VI, "passar da miséria à posse do necessário, à aquisição da cultura, à cooperação no bem comum… até chegar ao reconhecimento, por parte do homem, dos valores supremos e de Deus, que é a origem e o termo deles" (cf. Populorum progressio, 21).
Neste contexto, é-me grato recordar a Encíclica "Populorum progressio", cujo 40º aniversário recordamos no corrente ano. Este documento pontifício põe em evidência o fato de que o desenvolvimento deve ser integral, isto é, orientado rumo à promoção de todo o homem e de todos os homens (cf. n. 14), e convida todos a eliminar as graves desigualdades sociais e as enormes diferenças no acesso aos bens. Estes povos aspiram, sobretudo, à plenitude de vida que Cristo nos trouxe: "Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância" (Jo 10, 10). Com esta vida divina desenvolve-se também plenamente a existência humana, nas suas dimensões pessoal, familiar, social e cultural.
Para formar o discípulo e ajudar o missionário na sua grande tarefa, a Igreja oferece-lhes, além do Pão da Palavra, também o Pão da Eucaristia. A este respeito, inspira-nos e ilumina-nos a página do Evangelho sobre os discípulos de Emaús. Quando eles se sentam à mesa e recebem de Jesus Cristo o pão abençoado e partido, se lhes abrem os olhos, descobrem o rosto do Ressuscitado, sentem no seu coração que é verdade tudo o que Ele disse e fez, e que já começou a redenção do mundo. Cada domingo e cada Eucaristia é um encontro pessoal com Cristo. Ouvindo a Palavra divina, o coração arde porque é Ele que a explica e proclama. Quando na Eucaristia se parte o pão, é a Ele que se recebe pessoalmente. A Eucaristia é o alimento indispensável para a vida do discípulo e missionário de Cristo.
A Missa dominical, centro da vida cristã
Eis por que a necessidade de dar prioridade, nos programas pastorais, à valorização da Missa dominical. Temos de motivar os cristãos para que participem nela ativamente e, se possível, melhor com a família. A participação dos pais com seus filhos na celebração eucaristia dominical é uma pedagogia eficaz para comunicar a fé e um estreito vínculo que mantém a unidade entre eles. O domingo significa ao longo da vida da Igreja, o momento privilegiado do encontro das comunidades com o Senhor ressuscitado.
É necessário que os cristãos sintam que não seguem um personagem da história passada, mas Cristo vivo, presente no hoje e no agora de suas vidas. Ele é o Vivente que caminha ao nosso lado, mostrando-nos o sentido dos acontecimentos, da dor e da morte, da alegria e da festa, entrando nas nossas casas e permanecendo nelas, alimentando-nos com o Pão que dá a vida. Por isso a celebração dominical da Eucaristia tem que ser o centro da vida cristã.
O encontro com Cristo na Eucaristia suscita o compromisso da evangelização e o impulso à solidariedade; desperta no cristão o forte desejo de anunciar o Evangelho e de o testemunhar na sociedade para que seja mais justa e humana. No decorrer dos séculos da Eucaristia brotou um imenso caudal de caridade, de participação nas dificuldades dos outros, de amor e de justiça.
Somente da Eucaristia brotará a civilização do amor, que transformará a América Latina e o Caribe para que, além de ser o Continente da Esperança, seja também o Continente do Amor! Os problemas sociais e políticos
Ao chegar a este ponto podemos perguntarmo-nos: como pode a Igreja contribuir para a solução dos urgentes problemas sociais e políticos, e responder ao grande desafio da pobreza e da miséria?
Os problemas da América Latina e do Caribe, assim como do mundo de hoje, são múltiplos e complexos, e não podem ser enfrentados com programas generalizados. Todavia, a questão fundamental sobre o modo como a Igreja, iluminada pela fé em Cristo, deva agir diante desses desafios, são concernentes a todos nós. Neste contexto, é inevitável falar do problema das estruturas, sobretudo das que criam injustiças. Na realidade, as estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Porém, como nascem? Como funcionam? Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas, funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não teriam tido necessidade de uma precedente moralidade individual, mas também que fomentariam a moralidade comum. E esta promessa ideológica demonstrou-se falsa.
Os fatos o comprovam. O sistema marxista, onde governou, deixou não só uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, mas também uma dolorosa opressão das almas. E o mesmo vemos também no ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietadora degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis ilusões de felicidade.
As estruturas justas são, como já disse, uma condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal. Onde Deus está ausente o Deus do rosto humano de Jesus Cristo estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não podem viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, também contra os próprios interesses.
Por outro lado, as estruturas justas têm que ser procuradas e elaboradas à luz dos valores fundamentais, com todo o empenho da razão política, econômica e social. São uma questão da recta ratio e não provêm de ideologias nem das suas promessas. Certamente há um tesouro de experiências políticas e de conhecimentos sobre os problemas sociais e econômicos, que evidenciam elementos fundamentais de um Estado justo e os caminhos que devem ser evitados.
Contudo, em situações culturais e políticas diversas, e as mudanças progressivas das tecnologias e da realidade histórica mundial, devem ser procuradas de maneira racional as respostas adequadas e se deve criar com os compromissos indispensáveis o consenso sobre as estruturas que devem ser estabelecidas.
Este trabalho político não é competência imediata da Igreja. O respeito de uma sadia laicidade junto com a pluralidade das posições políticas é essencial na tradição cristã. Se a Igreja começar a se transformar diretamente em sujeito político, não faria mais pelos pobres e pela justiça, ao contrário, faria menos porque perderia a sua independência e a sua autoridade moral, identificando-se com uma única via política e com posições parciais opináveis. A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, exatamente por não se identificar com os políticos nem com os interesses de partido.
Somente sendo independente pode ensinar os grandes critérios e os valores inderrogáveis, orientar as consciências e oferecer uma opção de vida que vai mais além do âmbito político. Formar as consciências, ser advogada da justiça e da verdade, educar nas virtudes individuais e políticas, é a vocação fundamental da Igreja neste setor. E os leigos católicos devem ser conscientes da sua responsabilidade na vida pública; devem estar presentes na formação dos consensos necessários e na oposição contra as injustiças.
As estruturas justas jamais serão completas de modo definitivo; pela constante evolução da história, hão de ser sempre renovadas e atualizadas; hão de estar animadas sempre por um "ethos" político e humano, por cuja presença e eficiência se trabalhará cada vez mais. Em outras palavras, a presença de Deus, a amizade com o Filho de Deus encarnado, a luz da sua Palavra, são sempre condições fundamentais para a presença e eficiência da justiça e do amor nas nossas sociedades.
Por se tratar de um Continente de batizados, convém preencher a notável ausência no âmbito político, comunicativo e universitário, de vozes e iniciativas de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada, que sejam coerentes com as suas convicções éticas e religiosas. Os movimentos eclesiais têm aqui um amplo campo para recordar aos leigos a sua responsabilidade e a sua missão de levar a luz do Evangelho para a vida pública, cultural, económica e política.
5. Outros aspectos prioritários
Para levar a cabo a renovação da Igreja a vós confiada nestas terras, quis fixar a atenção juntamente convosco sobre alguns aspectos que considero prioritários nesta nova etapa.
A família
A família, "patrimônio da humanidade", constitui um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos. Ela foi e é a escola de fé, palestra de valores humanos e cívicos, lar em que a vida humana nasce e é acolhida generosa e responsavelmente. Todavia, na atualidade sofre situações adversas provocadas pelo secularismo e pelo relativismo ético, pelos diversos fluxos migratórios internos e externos, pela pobreza, pela instabilidade social e pelas legislações civis contrárias ao matrimônio que, ao favorecer os anticoncepcionais e o aborto, ameaçam o futuro dos povos.
Em algumas famílias da América Latina persiste infelizmente ainda uma mentalidade machista, ignorando a novidade do cristianismo que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem.
A família é insubstituível para a tranquilidade pessoal e para a educação dos filhos. As mães que desejam dedicar-se plenamente à educação dos seus filhos e ao serviço da família devem gozar das condições necessárias para o poder fazer, e por isso têm direito de contar com o apoio do Estado. De fato, o papel da mãe é fundamental para o futuro da sociedade.
O pai, por seu lado, tem o dever de ser verdadeiramente pai que exerce a sua indispensável responsabilidade e colaboração na educação dos seus filhos. Os filhos, para o seu crescimento integral, têm o direito de poder contar com o pai e com a mãe, que se ocupem deles e os acompanhem rumo à plenitude da sua vida. Portanto, é necessária uma pastoral familiar intensa e vigorosa. É indispensável de igual modo promover políticas familiares autênticas que respondam aos direitos da família como sujeito social imprescindível. A família faz parte do bem dos povos e da humanidade inteira.
Os sacerdotes
Os primeiros promotores do discipulado e da missão são aqueles que foram chamados "para estar com Jesus e ser enviados a pregar" (cf. Mc 3, 14), ou seja, os sacerdotes. Eles devem receber de modo preferencial a atenção e o cuidado paterno dos seus Bispos, pois são os primeiros agentes de uma autêntica renovação da vida cristã no povo de Deus. A eles quero dirigir uma palavra de afeto paterno desejando "que o Senhor seja parte da sua herança e do seu cálice" (cf. Sl 16, 5). Se o sacerdote fizer de Deus o fundamento e o centro de sua vida, então experimentará a alegria e a fecundidade da sua vocação. O sacerdote deve ser antes de tudo um "homem de Deus" (1 Tm 6, 11); um homem que conhece a Deus "em primeira mão", que cultiva uma profunda amizade pessoal com Jesus, que compartilha os "sentimentos de Jesus" (cf. Fl 2, 5).
Somente assim o sacerdote será capaz de levar Deus o Deus encarnado em Jesus Cristo aos homens, e de ser representante do seu amor. Para cumprir a sua altíssima missão deve possuir uma sólida estrutura espiritual e viver toda a existência animado pela fé, a esperança e a caridade. Tem de ser, como Jesus, um homem que procure, através da oração, o rosto e a vontade de Deus, cultivando igualmente sua preparação cultural e intelectual.
Queridos sacerdotes deste Continente e quantos que, como missionários, nele viestes a trabalhar: o Papa acompanha vossa atividade pastoral e deseja que estejam repletos de consolações e de esperança, e reza por vocês.
Religiosos, religiosas e consagrados
Quero dirigir-me também aos religiosos, às religiosas e aos leigos e leigas consagrados. A sociedade latino-americana e caribenha tem necessidade do vosso testemunho: em um mundo que tantas vezes busca, sobretudo, o bem-estar, a riqueza e o prazer como finalidade da vida, e que exalta a liberdade prescindindo da verdade do homem criado por Deus, vocês são testemunhas de que existe outra forma de viver com sentido; lembrem aos vossos irmãos e irmãs que o Reino de Deus chegou; que a justiça e a verdade são possíveis se nos abrimos à presença amorosa de Deus nosso Pai, de Cristo nosso irmão e Senhor, do Espírito Santo nosso Consolador. Com generosidade e até ao heroísmo, continuai trabalhando para que na sociedade reine o amor, a justiça, a bondade, o serviço, a solidariedade conforme o carisma dos vossos fundadores. Abraçai com profunda alegria vossa consagração, que é instrumento de santificação para vocês e de redenção para vossos irmãos.
A Igreja da América Latina vos agradece pelo grande trabalho que vindes realizando ao longo dos séculos pelo Evangelho de Cristo a favor de vossos irmãos, principalmente pelos mais pobres e marginalizados. Convido a todos para que colaborem sempre com os Bispos, trabalhando unidos a eles que são os responsáveis pela pastoral. Exorto-vos também a uma obediência sincera à autoridade da Igreja. Não tenham outro ideal que não seja a santidade conforme os ensinamentos de vossos fundadores.
Os leigos
Nesta hora em que a Igreja deste Continente se entrega plenamente à sua vocação missionária, lembro aos leigos que são também Igreja, assembléia convocada por Cristo para levar seu testemunho ao mundo inteiro. Todos os homens e mulheres batizados devem tomar consciência de que foram configurados com Cristo Sacerdote, Profeta e Pastor, através do sacerdócio comum do Povo de Deus. Devem sentir-se co-responsáveis na construção da sociedade segundo os critérios do Evangelho, com entusiasmo e audácia, em comunhão com os seus Pastores.
São muitos os fiéis que pertencem a movimentos eclesiais, nos quais podemos ver os sinais da multiforme presença e ação santificadora do Espírito Santo na Igreja e na sociedade atual. Eles são chamados para levar ao mundo o testemunho de Jesus Cristo e ser fermento do amor de Deus na sociedade.
Os Jovens e a pastoral vocacional
Na América Latina a maioria da população é formada por jovens. A este respeito, devemos recordar-lhes que sua vocação é ser amigos de Cristo, discípulos, sentinelas do amanhã, como costumava dizer o meu Predecessor João Paulo II. Os jovens não temem o sacrifício, mas, sim, uma vida sem sentido. São sensíveis à chamada de Cristo que os convida a segui-Lo. Podem responder a essa chamada como sacerdotes, como consagrados e consagradas, ou ainda como pais e mães de família, dedicados totalmente a servir aos seus irmãos com todo o seu tempo, sua capacidade de entrega e com a vida inteira. Os jovens encaram a existência como uma constante descoberta, não se limitando às modas e tendências comuns, indo mais além com uma curiosidade radical acerca do sentido da vida, e de Deus Pai-Criador e Deus-Filho Redentor no seio da família humana. Eles devem-se comprometer por uma constante renovação do mundo à luz de Deus. Mais ainda: cabe-lhes a tarefa de opor-se às fáceis ilusões da felicidade imediata e dos paraísos enganosos da droga, do prazer, do álcool, junto com todas as formas de violência.
Os trabalhos desta V Conferência Geral nos levam a fazer nossa súplica dos discípulos de Emaús:
"Fica conosco, pois a noite vai caindo e o dia está no ocaso" (Lc 24, 29).
Fica conosco, Senhor, acompanha-nos mesmo se nem sempre te soubemos reconhecer. Fica conosco, porque se vão tornando mais densas à nossa volta as sombras, e tu és a Luz; em nossos corações insinua-se o desespero, e tu os fazer arder com a esperança da Páscoa. Estamos cansados do caminho, mas tu nos confortas na fração do pão para anunciar a nossos irmãos que na verdade tu ressuscitaste e que nos deste a missão de ser testemunhas da tua ressurreição.
Fica conosco, Senhor, quando à volta da nossa fé católica surgem as nuvens da dúvida, do cansaço ou da dificuldade: tu, que és a própria Verdade como revelador do Pai, ilumina as nossas mentes com a tua Palavra; ajuda-nos a sentir a beleza de crer em ti.
Fica nas nossas famílias, ilumina-as nas suas dúvidas, ampara-as nas suas dificuldades, conforta-as nos seus sofrimentos e na fadiga quotidiana, quando à sua volta se adensam sombras que ameaçam a sua unidade e a sua natureza. Tu que és a Vida, permanece nos nossos lares, para que continuem a ser berços onde nasce a vida humana abundante e generosamente, onde se acolhe, se ama, se respeite a vida desde a sua concepção até ao seu fim natural.
Permanece, Senhor, com os que nas nossas sociedades são mais vulneráveis; permanece com os pobres e humildes, com os indígenas e afro-americanos, que nem sempre encontraram espaços e apoio para expressar a riqueza da sua cultura e a sabedoria da sua identidade. Permanece, Senhor, com as nossas crianças e com os nossos jovens, que são a esperança e a riqueza do nosso Continente, protege-os das tantas insídias que atentam contra a sua inocência e contra as suas legítimas esperanças. Oh bom Pastor, permanece com os nossos idosos e com os nossos enfermos! Fortalece todos na sua fé para que sejam teus discípulos e missionários!
6. Conclusão
Ao concluir a minha permanência entre vós, desejo invocar a proteção da Mãe de Deus e Mãe da Igreja sobre as vossas pessoas e sobre toda a América Latina e Caribe. Imploro de modo especial a Nossa Senhora com o título de Guadalupe, Padroeira da América, e de Aparecida, Padroeira do Brasil que vos acompanhe no vosso empenhativo e exigente trabalho pastoral. A ela confio o Povo de Deus nesta etapa do terceiro Milênio cristão. A ela peço também que guie os trabalhos e reflexões desta Conferência Geral, e que abençoe com abundantes dons os queridos povos deste Continente
Antes de regressar a Roma, quero deixar à V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe uma recordação que a acompanhe e a inspire. Trata-se deste bonito tríptico proveniente da arte de Cusco no Peru. Nele está representado o Senhor pouco antes de subir ao Céu, dando a quem o seguia a missão de fazer discípulos de todos os povos. As imagens evocam a estreita relação de Jesus Cristo com os seus discípulos e missionários para a vida do mundo. O último quadro representa São João Diogo evangelizando com a imagem da Virgem Maria no seu manto e com a Bíblia na mão. A história da Igreja ensina-nos que a verdade do Evangelho, quando é assumida na sua beleza com os nossos olhos e é acolhida com fé pela inteligência e o coração ajuda-nos a contemplar as dimensões de mistério que suscitam a nossa admiração e adesão.
Despeço-me muito cordiamente de todos vós com esta firme esperança no Senhor. Muito obrigado!