Pregação da Quaresma

O Espírito Santo convida a renovar a novidade, diz Cardeal Cantalamessa

Nesta primeira pregação da Quaresma 2023, o pregador da Casa Pontifícia refletiu sobre como o Espírito Santo guiou os apóstolos e a comunidade cristã a dar os primeiros passos na história da Igreja

Julia Beck
Da redação, com Vatican News

Cardeal Raniero Cantalamessa /Foto: IPA/ABACA via Reuters

O pregador da Casa Pontifícia, Cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana, nesta sexta-feira, 3, a primeira pregação da Quaresma intitulada “Renovar a novidade”.

A história da Igreja do final do século XIX e início do século XX, foi citada pelo purpurado como um período que deixou “uma amarga lição”. “Falo do atraso (antes, da recusa) em se dar conta das mudanças ocorridas na sociedade, e da crise do Modernismo, que foi a sua consequência”, disse.

Segundo o cardeal, a falta de diálogo, por um lado, levou alguns dos mais conhecidos modernistas a posições sempre mais extremas e por terminar claramente hereticais; por outro, privou a Igreja de enormes energias, provocando lacerações e sofrimentos em seu interior, fazendo-a debruçar sempre mais sobre si mesma e perder o passo com os tempos.

Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II foi a iniciativa profética para recuperar o tempo perdido, indica o pregador da Casa Pontifícia.

“Ele realizou uma renovação, que, certamente, não é o caso de ilustrar novamente nesta sede. Mais do que seus conteúdos, interessa-nos, neste momento, o método inaugurado por ele, que é o de caminhar na história, ao lado da humanidade, buscando discernir os sinais dos tempos”, frisa.

O purpurado afirma que história e a vida da Igreja não se detiveram com o Vaticano II. É preciso ter “cuidado para não se fazer dele uma linha de chegada e uma meta imóvel”, reforça.  “É preciso renovar a própria novidade”.

Aceleração da sociedade

Dom Cantalamessa ressalta que não apenas a sociedade não se deteve ao tempo do Vaticano II, mas sofre uma aceleração vertiginosa.

“As mudanças que um tempo ocorriam em um ou dois séculos, hoje ocorrem em uma década. Esta necessidade de contínua renovação não é outra coisa senão a necessidade de contínua conversão, estendida desde o fiel, individualmente, até Igreja inteira, em sua componente humana e histórica”.

O verdadeiro problema, de acordo com o pregador da Casa Pontifícia, não está na novidade; está mais no modo de encará-la.

“Toda novidade e toda mudança se encontram diante de uma encruzilhada; pode levar a duas estradas opostas: ou a do mundo, ou a de Deus; ou o caminho da morte ou caminho da vida”, alerta.

Espírito Santo

Segundo o cardeal, o Espírito Santo é um meio infalível para tomar sempre o caminho da vida e da luz: “O Espírito da Verdade, então ele vos guiará a toda a Verdade” (Jo 16,13). O purpurado frisa que o Espírito Santo não fará tudo de uma vez, ou de uma vez por todas, mas à medida que as situações se apresentarem.

O intuito das cinco pregações da Quaresma, revela o pregador da Casa Pontifícia, é justamente: encorajar todos a colocarem o Espírito Santo no coração de toda a vida da Igreja, e, em particular, neste momento, no coração dos trabalhos sinodais.

Guia dos primeiros passos dos apóstolos

Nesta primeira pregação, o purpurado sublinha que deseja refletir como o Espírito Santo guiou os apóstolos e a comunidade cristã a dar os primeiros passos na história.

“Os Atos dos Apóstolos nos mostram uma Igreja que é, passo a passo, ‘conduzida pelo Espírito’. A sua guia se exerce não apenas nas grandes decisões, mas também nas coisas de menor importância”, relembra.

O pregador da Casa Pontifícia recorda que o caminho da Igreja nascente não é retilíneo e sem obstáculos. A primeira grande crise é aquela relativa à admissão dos gentios na Igreja. O Espírito conduz os apóstolos a acolherem os pagãos na comunidade.

“Não se trata de fazer arqueologia da Igreja, mas de trazer à luz, sempre de novo, o paradigma de toda escolha eclesial. Não é preciso muito esforço, de fato, para perceber a analogia que há entre a abertura que então se realizou em relação aos gentios, com aquela que hoje se impões em relação aos leigos, em particular, às mulheres, e de outras categorias de pessoas”.

Espírito Santo e o Povo de Deus

A ação do Espírito Santo na condução de Pedro é comparada ao que aconteceu com os padres do Concílio Vaticano II a redefinir o papel dos leigos na Igreja.

“Este mesmo Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas, distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja”, reflete.

Essa foi então a redescoberta da natureza não só hierárquica, mas também carismática da Igreja, segundo o Cardeal Cantalamessa. Isto é, o princípio selado pelo Concílio passou a ser aplicado em um setor particular da Igreja, que é o seu governo, e a um maior envolvimento dos leigos e das mulheres.

Praxe eclesial

“O exemplo da Igreja apostólica não nos ilumina apenas sobre os princípios inspiradores, isto é, sobre a doutrina, mas também sobre a praxe eclesial. Diz-nos que nem tudo se resolve com as decisões tomadas em um sínodo, ou com um decreto. Há a necessidade de traduzir na prática tais decisões, a chamada “recepção” dos dogmas. E, para isso, são necessários tempo, paciência, diálogo, tolerância; às vezes, também o compromisso”, indica o pregador da Casa Pontifícia.

O purpurado destaca que quando é feito no Espírito Santo, o compromisso não é uma cessão, ou um desconto dado sobre a verdade, mas é caridade e obediência às situações.

Ao retomar o tema da admissão dos gentios na Igreja, o cardeal observa que Pedro é claramente um mediador entre Tiago e Paulo, ou seja, entre a preocupação da continuidade e aquela da novidade.

“Os ‘conservadores’ do tempo censuravam Pedro por ter ido muito além, indo ao encontro do pagão Cornélio; Paulo lhe censura por não ter ido bem mais além. Paulo é o santo que mais admiro e amo. Mas, neste caso, estou convencido de que se deixou levar (não é a única vez!) pelo seu caráter de fogo”, sublinha.

Dom Cantalamessa prossegue afirmando que o papel de mediador que Pedro exerceu entre as tendências opostas de Tiago e de Paulo continua nos seus sucessores. “Não certamente (e isso é um bem para a Igreja) de modo uniforme em cada um deles, mas segundo o carisma próprio de cada um que o Espírito Santo (e, presume-se, os cardeais abaixo dele) têm considerado o mais necessário em um dado momento da história da Igreja”.

Discernimento

Diante dos acontecimentos e realidades políticas, sociais e eclesiais, o pregador da Casa Pontifícia comenta que muitos são levados a se colocar imediatamente de um lado e a demonizar aquele adverso, a desejar o triunfo da sua própria escolha sobre a dos adversários.

“Começa-se uma guerra, cada um reza ao mesmo Deus para dar a vitória aos próprios exércitos e aniquilar os do inimigo! Não digo que seja proibido ter preferências: em campo político, social, teológico e assim por diante, ou que seja possível não as ter. Jamais deveríamos, contudo, pretender que Deus se coloque do nosso lado contra o adversário. E nem mesmo pedir isso a quem nos governa. É como pedir a um pai para escolher entre dois filhos”, adverte.

Benignidade

Cardeal Cantalamessa ressalta que o agir de Pedro não era hipocrisia, mas adaptação às situações, ou seja, a escolha do que, em uma certa situação, favorece o bem superior da comunhão.

A benignidade é uma característica destacada pelo purpurado e uma virtude de um santo evidenciado pelo mesmo: São Francisco de Sales. A partir dele, o pregador da Casa Pontifícia aconselha os fiéis:

“Todos deveríamos nos tornar, na Igreja, um pouco mais condescendentes e tolerantes, menos arraigados em nossas certezas pessoais, conscientes de quantas vezes tivemos que reconhecer dentro de nós que estávamos errados a respeito de uma pessoa ou de uma situação, e de quantas vezes tivemos que nos adaptar também nós às situações. Em nossas relações eclesiais, não há, por sorte – e jamais deveria haver –, aquela propensão ao insulto e ao vilipêndio do adversário, que se nota em certos debates políticos e que tanto dano acarreta à convivência civil pacífica”.

“Tirar o veneno” de todo e qualquer juízo

O purpurado aponta que muitos são intransigentes com os outros e indulgentes consigo. “Deveríamos nos propor em fazer justamente o contrário: severos conosco mesmos, bondosos com os demais. Este propósito, levado a sério, bastaria sozinho para santificar a nossa Quaresma. Dispensar-nos-ia de qualquer outro tipo de jejum e nos disporia a trabalhar com mais fruto e mais serenidade em cada âmbito da vida da Igreja”.

Um ótimo exercício nesse sentido, propõe o Cardeal Cantalamessa, é compreender as razões do próximo e “tirar o veneno” de todo e qualquer juízo. “Este exercício não deve ser feito somente em relação à pessoa individualmente, mas também em relação à corrente de pensamento com a qual estou em desacordo e à solução por ela proposta a um certo problema em discussão (no Sínodo ou em outro âmbito)”, aconselha.

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