Em audiência, Leão XIV enfatizou que as dimensões jurídica, eclesiológica e pastoral devem ser consideradas nestes processos
Da Redação, com Vatican News

Foto: Alessia Giuliani/ Hans Lucas via Reuters
O Papa Leão XIV recebeu em audiência, nesta sexta-feira, 21, na Sala Clementina, no Vaticano, cerca de quatrocentos participantes do Curso Internacional de Formação Jurídica e Pastoral promovido pelo Tribunal da Rota Romana. O Pontífice recordou o décimo aniversário da reforma do processo de nulidade matrimonial, promovida pelo Papa Francisco.
“Em seu último discurso à Rota, em 31 de janeiro, ele [Francisco] falou sobre as intenções e as principais novidades dessa reforma”, disse ainda o Santo Padre, oferecendo algumas reflexões inspiradas pelo título do curso: “Dez anos da reforma do processo matrimonial canônico. Dimensão eclesiológica, jurídica e pastoral”. Leão XIV ressaltou a importância da relação que existe entre estas três abordagens. “Essa relação é frequentemente negligenciada, pois teologia, direito e pastoral tendem a ser vistos como compartimentos estanques”, observou. Segundo ele, emerge uma harmonia quando as três dimensões são consideradas como partes de uma mesma realidade.
De acordo com o Papa, a escassa percepção dessa interligação provém principalmente de uma consideração da realidade jurídica dos processos de nulidade matrimonial como um campo meramente técnico, que interessaria exclusivamente aos especialistas, ou como um meio que visa apenas obter o estado de liberdade das pessoas. “Trata-se de uma visão superficial, que ignora tanto os pressupostos eclesiológicos desses processos quanto sua relevância pastoral”, sublinhou.
Dentre esses pressupostos eclesiológicos, o Pontífice recordou especialmente dois: o primeiro diz respeito ao poder sagrado exercido nos processos judiciais eclesiais a serviço da verdade, e o segundo diz respeito ao objeto do processo para a declaração da nulidade matrimonial, ou seja, o mistério da aliança conjugal.
Poder judicial
“A função judicial, como forma de exercer do poder de governo ou jurisdição, insere-se na realidade global do poder sagrado dos pastores na Igreja. Esta realidade é concebida pelo Concílio Vaticano II como um serviço”, disse ainda o Pontífice, recordando um trecho da Lumen Gentium a esse propósito: «O ofício que o Senhor confiou aos pastores do seu povo é um verdadeiro serviço, que na Sagrada Escritura é chamado significativamente de ‘diaconia’, isto é, ministério».
No poder judicial, o Papa afirmou que existe um aspecto fundamental do serviço pastoral: a diaconia da verdade. Cada fiel, cada família, cada comunidade precisa da verdade sobre sua situação eclesial a fim de percorrer bem o caminho da fé e da caridade, explicou o Santo Padre. Nesse contexto, ele frisou que situa-se a verdade sobre os direitos pessoais e comunitários: a verdade jurídica declarada nos processos eclesiásticos é um aspecto da verdade existencial no âmbito da Igreja.
“O poder sagrado é uma participação no poder de Cristo, e o seu serviço à verdade é um caminho para conhecer e abraçar a Verdade última, que é o próprio Cristo”, disse ainda Leão XIV, lembrando que “não é por acaso que as primeiras palavras dos dois Motu proprio com os quais foi iniciada a reforma dizem respeito a Jesus, Juiz e Pastor: “Mitis Iudex Dominus Iesus, Pastor animarum nostrarum” no Código de Direito Canônico, e “Mitis et Misericors Iesus, Pastor et Iudex animarum nostrarum” no Código dos Cânones das Igrejas Orientais.
Misericórdia
Na sequência, o Papa ressaltou que “o juízo de Deus sobre a salvação sempre envolve o seu perdão ao pecador arrependido”, e que o juízo humano sobre a nulidade matrimonial não deve ser manipulado por uma falsa misericórdia. “Qualquer atividade que conflite com o serviço do processo da verdade deve certamente ser considerada injusta. Contudo, a verdadeira misericórdia deve ser exercida precisamente no exercício adequado do poder judicial”.
Sob essa perspectiva, ele comentou que o processo de nulidade matrimonial pode ser visto como uma contribuição dos profissionais do direito para satisfazer a necessidade de justiça tão profunda na consciência dos fiéis, e assim realizar uma obra justa motivada pela verdadeira misericórdia. Segundo o Papa, o objetivo da reforma, voltado para a acessibilidade e a celeridade processual, sem jamais comprometer a verdade, surge, portanto, como uma manifestação de justiça e misericórdia.
Mediação
O segundo pressuposto eclesiológico, “específico ao processo de nulidade do matrimônio, é o próprio matrimônio, por ser fundado pelo Criador”. Portanto, o Santo Padre indicou ser necessário estruturar um caso assegurando que as partes, incluindo o defensor do vínculo matrimonial, possam apresentar provas e argumentos para sustentar sua posição, e possam compreender e avaliar as mesmas provas apresentadas pela outra parte, em uma audiência conduzida e concluída por um juiz imparcial – um grande benefício para todos os envolvidos e para a própria Igreja.
Especialmente na Igreja, assim como na sociedade civil, o Pontífice assegurou que devem ser feitos esforços para alcançar acordos que, ao mesmo tempo que garantem a justiça, resolvam as disputas por meio da mediação e da conciliação. Os esforços para promover a reconciliação entre os cônjuges são muito importantes nesse sentido, disse o Papa, inclusive, quando possível, por meio da validação do matrimônio. Contudo, ele observou que há casos em que é necessário recorrer a um julgamento porque o material não está disponível para as partes. É o caso da declaração de nulidade matrimonial, que envolve um bem público eclesiástico.
Segundo o Pontífice, “trata-se de uma expressão do serviço da autoridade pastoral à verdade do vínculo matrimonial indissolúvel, fundamento da família, que é a Igreja doméstica. Por trás da técnica processual, com a fiel aplicação da legislação vigente, estão, portanto, os pressupostos eclesiológicos do processo matrimonial: a busca da verdade e a própria salus animarum. A ética forense, centrada na verdade do que é justo, deve inspirar todos os profissionais do direito, cada um em seu papel, a participar da obra de justiça e da verdadeira paz a que se destina o processo”.
Dimensão pastoral
“A dimensão eclesiológica e a jurídica, se realmente vividas, fazem descobrir a dimensão pastoral”, ressaltou o Papa, afirmando que “cresceu nos últimos tempos a consciência sobre a inserção da atividade judicial da Igreja no âmbito matrimonial no conjunto da pastoral familiar”.
Esta pastoral, prosseguiu Leão XIV, não pode ignorar ou subestimar o trabalho dos tribunais eclesiásticos, e estes últimos não devem esquecer que a sua contribuição específica para a justiça é uma peça importante na obra de promoção do bem das famílias, com particular referência às que se encontram em dificuldade.
“Esta obra é de todos na Igreja, tanto dos pastores quanto dos outros fiéis, e é de uma forma peculiar dos operadores do direito. A sinergia entre a atenção pastoral às situações críticas e o âmbito judicial encontrou uma manifestação significativa na implementação da investigação prejudicial destinada também a verificar a existência de motivos para iniciar um processo de nulidade”, disse ainda Leão XIV.
O Santo Padre concluiu, dizendo que as dimensões eclesiológica, jurídica e pastoral “levam a reafirmar a salus animarum (saúde das almas) como lei suprema e finalidade dos processos matrimoniais na Igreja”.




