Francisco responde ao romancista italiano Maurizio Maggiani, que há poucos dias lhe escreveu uma carta aberta no jornal italiano “Secolo XIX”
Da redação, com Vatican News
O romancista Maurizio Maggiani, escritor e jornalista ligurino, escreveu uma carta aberta ao Papa Francisco. O texto foi publicado no jornal italiano “Secolo XIX”, em 1º de agosto. O Pontífice respondeu Maggiani com uma carta – datada de 9 de agosto, dia em que a Igreja celebra Edith Stein, Santa Teresa Benedita da Cruz, co-padroeira da Europa.
Em seu texto, o Santo Padre comenta uma questão levantada publicamente pelo autor. A resposta do Papa será divulgada pelo jornal nesta sexta-feira, 12. Maggiani quis compartilhar diretamente com Francisco a “vergonha” que sentiu ao aprender de uma história de crime que a produção de seus livros e de outros autores também passou por uma empresa no Vêneto, e pelo estabelecimento subcontratado no Trentino, ambos acusados pelo judiciário de terem explorado com métodos criminosos, “ao ponto do indizível” escreve Maggiani, o trabalho dos operários paquistaneses, literalmente brutalizados.
“Senti vergonha de mim mesmo”
Maggiani, que se define como um não crente afirma ter se dirigido a Francisco por uma série de razões, entre as quais a de uma sensibilidade compartilhada. “As histórias que gosto de contar e sinto o dever de fazê-lo”, diz o romancista, “são as histórias dos silenciosos, dos últimos e dos humildes”, mas a indiferença com relação ao porquê encontrada nos colegas, “como se fosse uma pergunta ociosa”, o levou a dirigi-la a “Sua Santidade”.
“Com toda a minha busca, não consigo ver nenhuma outra autoridade moral que além de ter uma voz alta esteja disposta a ouvir, a perguntar antes de julgar”, explicou o romancista ao Papa. Perguntar a si mesmo sobre as implicações do horror que ocorreu naquele campo de concentração moderno, construído às custas de imigrantes pobres com salários de fome, sem horas de trabalho e sem direitos, levados a chutes e pontapés se ousassem pedir respeito: “Senti vergonha de mim mesmo, de ter tanto cuidado para manter minhas mãos limpas e não usar produtos suspeitos de exploração de escravos, e ainda assim”, admite o escritor, “nunca refleti sobre as evidências de que meu trabalho como romancista, tão nobre”, é “parte de uma cadeia do sistema de produção, aquela que modestamente chamamos de cadeia de fornecimento, não diferente de qualquer outra, e portanto passível das mesmas aberrações”.
Ver os invisíveis
Francisco responde destilando um dos pensamentos-chave de seu magistério. “Você não está fazendo uma pergunta ociosa”, reconhece o Papa a Maggiani, “porque o que está em jogo é a dignidade das pessoas, aquela dignidade que hoje é demasiadas vezes e facilmente espezinhada com o ‘trabalho escravo’, no silêncio cúmplice e ensurdecedor de muitos. Vimos isso durante o isolamento social, quando muitos de nós descobrimos que atrás dos alimentos que continuavam a chegar em nossas mesas havia centenas de milhares de trabalhadores braçais sem direitos: invisíveis e últimos – embora os primeiros! – etapas de uma cadeia que, a fim de fornecer alimentos, privou muitos do pão de um trabalho decente”.
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Mas na verdade, continua Francisco, associar este tipo de infâmia à literatura “talvez seja ainda mais chocante” se o que o Papa chama de “pão das almas, expressão que eleva o espírito humano”, é “ferido pela voracidade de uma exploração que age nas sombras, apagando rostos e nomes”. Portanto, se alguém publica algo que é baseado em uma injustiça, é “em si mesmo injusto” e “para um cristão – lembra o Papa – toda forma de exploração é um pecado”.
As duas coisas a fazer
A solução, no entanto, não reside na rendição. “Renunciar à beleza seria um retirada que, por sua vez, é injusta, uma omissão do bem”, diz Francisco, que sugere uma reação baseada em dois verbos. A primeira é “denunciar” os “mecanismos de morte”, as “estruturas de pecado”, chegando ao ponto de escrever “até mesmo coisas desconfortáveis para nos sacudir da indiferença, para estimular as consciências, inquietando-as, para que não se deixem anestesiar pelo “não me interessa, não é da minha conta, o que posso fazer se o mundo está indo assim?”
O segundo verbo é “renunciar”. Ao agradecer a Maggiani por ter escrito o que escreveu sem calcular o “retorno da imagem”, Francisco sustenta que, além da coragem de denunciar, é preciso ter coragem para renunciar. Renúncia “não à literatura e à cultura – afirma -, mas a hábitos e vantagens que, hoje onde tudo está conectado, descobrimos, devido aos mecanismos perversos de exploração, prejudicam a dignidade de nossos irmãos e irmãs”. É um sinal poderoso”, insiste, “renunciar a posições e comodidades a fim de abrir espaço para aqueles que não têm espaço”. Chegar a “dizer não por um sim maior”, fazer “objeção de consciência para promover a dignidade humana”.
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A cultura, voz dos humilhados não do mercado
O Papa reitera que ama Dostoievski “não só por sua leitura profunda da alma humana e seu sentido religioso, mas porque ele escolheu contar vidas pobres, ‘humilhadas e ofendidas'”. Esta é uma consideração que suscita um apelo: diante dos muitos humilhados e ofendidos de hoje, sem praticamente ninguém para fazê-los “protagonistas, enquanto o dinheiro e os interesses dominam”, “a cultura não deve se deixe subjugar pelo mercado”.