VIAGEM DO PAPA FRANCISCO AO CAZAQUISTÃO
13 a 15 de setembro de 2022
Oração em silêncio com os líderes religiosos, abertura e sessão plenária do VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais
Palácio da Independência – Nursultan
Quarta-feira, 14 de setembro de 2022
Boletim da Santa Sé
Irmãos e irmãs!
Permiti que vos trate assim com estas palavras diretas e familiares: «irmãos e irmãs». É deste modo que vos desejo saudar, Líderes religiosos e Autoridades, membros do Corpo Diplomático e das Organizações Internacionais, Representantes de instituições académicas e culturais, da sociedade civil e de várias organizações não-governamentais, em nome daquela fraternidade que a todos nos une enquanto filhos e filhas do mesmo Céu.
Frente ao mistério do infinito que nos sobrepuja e atrai, as religiões lembram-nos que somos criaturas: não somos omnipotentes, mas mulheres e homens em caminho para a mesma meta celeste. Assim a dimensão de criatura que partilhamos estabelece uma comunhão, uma real fraternidade. Recorda-nos que o sentido da vida não se pode reduzir aos nossos interesses pessoais, mas inscreve-se na fraternidade que nos carateriza. Só crescemos com os outros e graças aos outros. Amados Líderes e Representantes das religiões mundiais e tradicionais, encontramo-nos numa terra que, ao longo dos séculos, foi percorrida por grandes caravanas: nestes lugares, incluindo através da antiga rota da seda, entrelaçaram-se tantas histórias, ideias, crenças e esperanças. Possa o Cazaquistão continuar a ser uma terra de encontro entre quem está distante. Possa abrir uma nova rota de encontro, centrada sobre as relações humanas: no respeito, na honestidade do diálogo, no valor imprescindível de cada um, na colaboração; uma rota fraterna para caminhar juntos rumo à paz.
Ontem tomei, emprestada, a imagem da dombra; hoje, quero associar ao instrumento musical uma voz, a do poeta mais famoso do país, pai da sua literatura moderna, o educador e compositor muitas vezes representado precisamente junto com a dombra. Abai (1845-1904) – como é conhecido popularmente – deixou-nos escritos impregnados de religiosidade, nos quais transparece a alma melhor deste povo: uma sabedoria harmoniosa, que deseja a paz e procura-a interrogando-se com humildade, anelando por uma sabedoria digna do homem, nunca fechada em visões restritas e apertadas, mas pronta a deixar-se inspirar pelas mais variadas experiências. Abai provoca-nos com um interrogativo atemporal: «Que beleza pode ter a vida, se não se vai em profundidade?» (Poesia, 1898). Outro poeta interrogava-se sobre o sentido da existência, colocando nos lábios dum pastor destas terras infindas da Ásia uma pergunta igualmente essencial: «Para onde tende este meu breve vagar?» (G. Leopardi, Canto noturno dum pastor errante da Ásia). São questões como estas que suscitam a necessidade da religião, que nos lembram que nós, seres humanos, não existimos tanto para satisfazer interesses terrenos e tecer relações apenas de natureza económica, como sobretudo para caminhar juntos como viandantes com o olhar voltado para o Céu. Precisamos de encontrar um sentido para as questões últimas, cultivar a espiritualidade; temos necessidade – dizia Abai – de manter «desperta a alma e límpida a mente» (Palavra 6).
Irmãos e irmãs, o mundo espera de nós o exemplo de almas despertas e mentes límpidas, espera uma religiosidade autêntica. Chegou a hora de despertar daquele fundamentalismo que polui e corrói toda a crença, chegou a hora de tornar límpido e compassivo o coração. Mas é hora também de deixar apenas aos livros de história os discursos que por demasiado tempo, aqui e noutras partes, inculcaram suspeitas e desprezo a respeito da religião, como se esta fosse um fator desestabilizador da sociedade moderna. Nestes lugares, é bem conhecida a herança do ateísmo de Estado, imposto durante decénios, aquela mentalidade opressiva e sufocante para a qual o mero uso da palavra «religião» já gerava embaraço. Na realidade, as religiões não são problema, mas parte da solução para uma convivência mais harmoniosa. Com efeito a busca da transcendência e o valor sagrado da fraternidade podem inspirar e iluminar as opções a tomar no contexto das crises geopolíticas, sociais, económicas, ecológicas, mas – na sua raiz – espirituais, que atravessam muitas instituições de hoje, incluindo as democracias, comprometendo a segurança e a concórdia entre os povos. Portanto precisamos de religião para responder à sede de paz do mundo e à sede de infinito que habita o coração de cada homem.
Por isso, condição essencial para um desenvolvimento verdadeiramente humano e integral é a liberdade religiosa. Irmãos, irmãs, somos criaturas livres. O nosso Criador «pôs-Se de lado por nós», «limitou» por assim dizer a sua liberdade absoluta para fazer também de nós criaturas livres. Então como podemos coagir irmãos em nome d’Ele? «Enquanto acreditamos e adoramos – ensinava Abai –, não devemos dizer que podemos constranger os outros a crer e a adorar» (Palavra 45). A liberdade religiosa constitui um direito fundamental, primário e inalienável, que é preciso promover em todos os lugares e que não se pode limitar apenas à liberdade de culto. De facto, é direito de cada pessoa prestar testemunho público da sua própria crença: propô-lo, sem nunca o impor. É a prática correta do anúncio, diferente daquele proselitismo e doutrinamento de que todos são chamados a manter-se distantes. Relegar para a esfera privada a crença mais importante da vida privaria a sociedade duma riqueza imensa; ao contrário, favorecer contextos onde se respira uma convivência respeitosa das diversidades religiosas, étnicas e culturais é a forma melhor de valorizar os traços específicos de cada um, de unir os seres humanos sem os uniformizar, de promover as suas aspirações mais altas sem cortar as asas ao seu impulso.
Uma vez afirmado o valor imortal da religião, vejamos na atualidade o seu valor, que o Cazaquistão admiravelmente promove, hospedando há vinte anos este Congresso de relevância mundial. A presente edição leva-nos a refletir sobre o nosso papel no desenvolvimento espiritual e social da humanidade durante este período pós-pandémico.
Por entre vulnerabilidade e tratamento, a pandemia representa o primeiro de quatro desafios globais que quero delinear convocando a todos – mas de modo especial as religiões – para uma maior unidade de intentos. A Covid-19 colocou-nos a todos no mesmo plano. Fez-nos compreender que «não somos demiurgos – como dizia Abai –, mas mortais» (Ibid.): todos nos sentíamos frágeis, todos necessitados de assistência; ninguém plenamente autónomo, ninguém completamente autossuficiente. Mas agora não podemos delapidar aquela necessidade de solidariedade que sentíamos, prosseguindo como se nada tivesse acontecido, sem nos deixarmos interpelar pela exigência de enfrentar juntos as urgências que a todos dizem respeito. A isto, não devem ficar indiferentes as religiões: são chamadas a estar na vanguarda, a ser promotoras de unidade face às provas que arriscam a família humana a dividir-se ainda mais.
Especificamente cabe a nós, que acreditamos no Divino, ajudar os irmãos e irmãs do nosso tempo a não esquecer a vulnerabilidade que nos carateriza para não cair em falsas presunções de omnipotência suscitadas por progressos técnicos e económicos, que por si sós não bastam; não se deixar enrodilhar nos laços do proveito e do lucro, como se fossem remédio para todos os males; não favorecer um progresso insustentável que não respeite os limites impostos pela criação; não se deixar anestesiar pelo consumismo que estonteia, porque os bens são para o homem e não o homem para os bens. Em suma, a nossa vulnerabilidade comum, que veio ao de cima durante a pandemia, deveria estimular-nos a continuar, não como antes, mas com mais humildade e clarividência.
Além de sensibilizar para a nossa fragilidade e responsabilidade, os crentes na pós-pandemia são chamados ao cuidado: a cuidar da humanidade em todas as suas dimensões, tornando-se artesãos de comunhão – repito a expressão: artesãos de comunhão –, testemunhas duma colaboração que supere as barreiras da própria pertença comunitária, étnica, nacional e religiosa. Mas como empreender uma missão tão árdua? Donde começar? Da escuta dos mais vulneráveis, de dar voz aos mais frágeis, de fazer-se eco duma solidariedade global que diga respeito em primeiro lugar a eles, aos pobres, aos necessitados que mais sofreram com a pandemia, tendo esta posto prepotentemente a descoberto a iniquidade das desigualdades no planeta. Quantos não têm, ainda hoje, fácil acesso às vacinas! Tantos… Estejamos da sua parte, e não da parte de quem tem mais e dá menos; tornemo-nos consciências proféticas e corajosas, façamo-nos próximo a todos, mas especialmente aos demasiado esquecidos de hoje, aos marginalizados, às camadas mais vulneráveis e pobres da sociedade, àqueles que sofrem escondidos e em silêncio, longe dos holofotes. Aquilo que vos proponho não é apenas um caminho para ser mais sensíveis e solidários, mas um percurso de cura para as nossas sociedades. Sim, porque é precisamente a indigência que permite a propagação de epidemias e os outros grandes males que prosperam no terreno das contrariedades e desigualdades. O maior fator de risco do nosso tempo continua a ser a pobreza. A propósito e sabiamente, Abai perguntava-se: «Poderão quantos têm fome guardar uma mente límpida (…) e mostrar diligência em aprender? Pobreza e lites (…) geram (…) violência e ganância» (Palavra 25). Enquanto continuarem a assolar disparidades e injustiças, não poderão cessar os vírus piores do que a Covid, ou seja, os do ódio, da violência, do terrorismo.
E isto leva-nos ao segundo desafio planetário, que interpela de maneira particular os crentes: o desafio da paz. Nas últimas décadas, o diálogo entre os responsáveis das religiões incidiu principalmente sobre esta temática. No entanto, vemos os nossos dias ainda marcados pelo flagelo da guerra, por um clima de confrontos exasperados, pela incapacidade de recuar um passo e estender a mão ao outro. É preciso, irmãos e irmãs, um abanão da nossa parte. Se o Criador, a quem dedicamos a existência, deu origem à vida humana, como podemos nós – que nos professamos crentes – consentir que a mesma seja destruída? E como podemos pensar que os homens do nosso tempo – muitos dos quais vivem como se Deus não existisse – estejam motivados para se comprometer num diálogo respeitoso e responsável, se as grandes religiões, que constituem a alma de tantas culturas e tradições, não se empenham ativamente pela paz?
Recordados dos horrores e erros do passado, unamos os esforços para que o Omnipotente nunca mais acabe refém da vontade de potência humana. Abai lembra que «aquele que permite o mal e não se opõe ao mal, não pode ser considerado um verdadeiro crente, mas, no melhor dos casos, um crente tíbio» (cf. Palavra 38). Irmãos e irmãs, há necessidade, para todos e cada um, duma purificação do mal. O grande poeta cazaque insistia neste aspeto, escrevendo que quem «abandona a aprendizagem priva-se duma bênção» e «quem não é severo consigo mesmo e não é capaz de compaixão, não pode ser considerado crente» (Palavra 12). Irmãos e irmãs, purifiquemo-nos, pois, da presunção de nos sentir justos e de não ter nada a aprender dos outros; libertemo-nos das conceções redutoras e ruinosas que ofendem o nome de Deus com rigidezes, extremismos e fundamentalismos, e o profanam por meio do ódio, do fanatismo e do terrorismo, desfigurando inclusive a imagem do homem. Sim, porque «a fonte da humanidade – lembra Abai – é amor e justiça, (…) são eles as coroas da criação divina» (Palavra 45). Nunca justifiquemos a violência. Não permitamos que o sagrado seja instrumentalizado por aquilo que é profano. O sagrado não seja suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade!
Deus é paz, e sempre conduz à paz, nunca à guerra. Por isso empenhemo-nos ainda mais a promover e reforçar a necessidade de que os conflitos sejam resolvidos não com as razões inconclusivas da força, com as armas e as ameaças, mas com os únicos meios abençoados pelo Céu e dignos do homem: o encontro, o diálogo, as negociações pacientes, que se levam por diante a pensar particularmente nas crianças e nas jovens gerações. Elas encarnam a esperança de que a paz não seja o frágil resultado de frenéticas negociações, mas o fruto dum constante empenho educativo que promova os seus sonhos de progresso e de futuro. Neste sentido, Abai encorajava a expandir o saber, ultrapassar a fronteira da própria cultura, abraçar o conhecimento, a história e a literatura dos outros. Invistamos, por favor, nisto! Não nos armamentos, mas na instrução.
Depois dos desafios da pandemia e da paz, abracemos um terceiro desafio: o do acolhimento fraterno. Hoje sente-se grande fadiga para aceitar o ser humano. Todos os dias são descartados nascituros e crianças, migrantes e idosos. Existe uma cultura do descarte. Muitos irmãos e irmãs morrem sacrificados no altar do lucro, envolvidos pelo incenso sacrílego da indiferença. E contudo é sacro todo o ser humano. «Homo sacra res homini»: diziam os antigos (Séneca, Epistulae morales ad Lucilium, 95, 33). É tarefa primária nossa, isto é, das religiões, recordá-lo ao mundo. Nunca antes tínhamos assistido, como agora, a tão grandes deslocamentos de populações, causados por guerras, pobreza, alterações climáticas, pela busca dum bem-estar que o mundo globalizado permite conhecer, mas se revela frequentemente de difícil acesso. Está em curso um grande êxodo: das áreas mais desfavorecidas procura-se chegar às mais abastadas. Vemo-lo todos os dias no mundo inteiro, nas diferentes migrações. Não é notícia dos jornais, mas é um facto histórico que requer soluções partilhadas e clarividentes. Certamente, é instintivo defender as próprias certezas adquiridas e fechar as portas por medo; é mais fácil suspeitar do estrangeiro, acusá-lo e condená-lo do que conhecê-lo e compreendê-lo. Mas é nosso dever lembrar que o Criador, que vela sobre os passos cada criatura, nos exorta a ter um olhar semelhante ao d’Ele, um olhar que reconheça o rosto do irmão. Ao irmão migrante, é preciso recebê-lo, acompanhá-lo, promovê-lo e integrá-lo.
A língua cazaque convida a este olhar acolhedor: nela, o termo «amar» significa literalmente «ter um olhar bom sobre alguém». E a cultura tradicional destas regiões afirma a mesma coisa através dum lindo provérbio popular: «Se encontras alguém, procura fazê-lo feliz; talvez seja a última vez que o vês». Se o culto da hospitalidade, nestas estepes, lembra o valor insuprível de cada ser humano, Abai sanciona isso mesmo dizendo que «o homem deve ser amigo do homem» e que tal amizade se baseia numa partilha universal, porque as realidades importantes da vida e para além da vida são comuns. E coerentemente declara: «todas as pessoas são hóspedes umas das outras» e «o próprio homem é um hóspede nesta vida» (Palavra 34). Redescubramos a arte da hospitalidade, do acolhimento, da compaixão. E aprendamos também a corar: sim, a sentir aquela saudável vergonha que nasce da piedade pelo homem que sofre, da comoção e estupefação pela sua condição, pelo seu destino de que nos sentimos parte. É o caminho da compaixão, que nos torna mais humanos e mais crentes. Cabe a nós, além de afirmar a dignidade inviolável de todo o homem, ensinar a chorar pelos outros, porque só seremos verdadeiramente humanos, se sentirmos como nossas as fadigas da humanidade.
Há um último desafio global que nos interpela: a custódia da casa comum. À vista das convulsões climáticas, é preciso protegê-la, para que não fique sujeita às lógicas do lucro, mas seja preservada para as gerações futuras, em louvor do Criador. Escrevia Abai: «Que mundo maravilhoso nos deu o Criador! Com magnanimidade e generosidade nos deu a sua luz. Quando a mãe-terra nos alimentava ao seu seio, era o nosso Pai celeste que Se inclinava carinhosamente sobre nós» (Poesia «Primavera»). Com amoroso cuidado, o Altíssimo providenciou uma casa comum para a vida. E como podemos nós, que nos professamos Seus, permitir que aquela seja poluída, maltratada e destruída? Unamos esforços também neste desafio. Não é o último, em importância. Na verdade está ligado ao primeiro, ao pandémico. Vírus como a Covid-19 que, apesar de microscópicos, são capazes de esfrangalhar as grandes ambições do progresso, frequentemente estão relacionados com um equilíbrio deteriorado, em grande parte por nossa causa, na natureza que nos rodeia. Pensemos por exemplo na desflorestação, no comércio ilegal de animais vivos, nas explorações agropecuárias intensivas; é a mentalidade da exploração a devastar a casa onde habitamos. Mais: leva a eclipsar aquela visão respeitosa e religiosa do mundo desejada pelo Criador. Por isso, é imprescindível favorecer e promover a custódia da vida em todas as suas formas.
Queridos irmãos e irmãs, avancemos juntos, para que seja cada vez mais amistoso o caminho das religiões. Abai dizia que «o falso amigo é como uma sombra: quando o sol brilha sobre ti, não te livrarás dele, mas quando as nuvens se acumularem sobre ti, não se fará ver em parte alguma» (Palavra 37). Que isso não aconteça connosco! O Altíssimo liberte-nos das sombras da suspeita e da falsidade; conceda-nos cultivar amizades ensolaradas e fraternas, através do diálogo frequente e da sinceridade luminosa das intenções. E desejo agradecer aqui o esforço do Cazaquistão neste ponto: sempre procura unir, sempre procura incentivar o diálogo, sempre procura construir a amizade. Isto é um exemplo que o Cazaquistão dá a todos nós e devemos segui-lo, apoiá-lo. Não procuremos falsos sincretismos conciliatórios – não servem –, mas guardemos as nossas identidades abertas à coragem da alteridade, ao encontro fraterno. Só assim, por este caminho, nos tempos sombrios que vivemos, poderemos irradiar a luz do nosso Criador. A todos vós, obrigado!