Artigo de especialista

Magistério social de JPII: encíclica centesimus annus

Na terceira e última parte do artigo sobre magistério social de João Paulo II, padre Toninho fala da encíclica Centesimus annus

Padre Antônio Aparecido Alves (Toninho)

jpii centesimus annus

João Paulo II teve um magistério muito rico em todos os campos, afirma padre Toninho / Foto: Arquivo

A terceira e última encíclica social desse Pontífice chama-se Centesimus annus (Cem Anos) e foi escrita no centenário da Rerum Novarum, como o próprio nome indica. A Rerum Novarum fazia referência ao início do processo de industrialização que eram as “coisas novas” daquele período histórico. Quais seriam as “coisas novas” de hoje? João Paulo II procura responder a esta questão nos capítulos I, II e III. No capítulo IV, aborda as questões mais especificamente econômicas, e no capítulo V, as questões políticas.

Pontos de destaque:

Trabalho. Refletindo sobre a Encíclica de Leão XIII, ele diz que a chave de leitura do texto leonino é a dignidade do trabalhador enquanto tal e, por isso mesmo, a dignidade do trabalho. Depois, refere-se à dimensão pessoal e social do trabalho, acentuadas por Leão XIII. Retoma ainda alguns outros pontos da Rerum Novarum, tais como salários dignos e horários humanos.

Capital. João Paulo II retoma alguns tópicos da Rerum Novarum, para demonstrar que Leão XIII já havia afrontado em seu tempo o conflito capital-trabalho, que ele chamava de “questão operária”. A esse propósito, ele apresentou algumas indicações, tais como aquelas da dignidade do trabalho e do trabalhador, que permanecem válidas até hoje (CA, n. 5). Falando de luta e empenho pela justiça, a encíclica enfatiza que é justo falar de “luta contra um sistema  econômico”, entendido como prevalência  absoluta do capital, da posse dos meios de produção e da terra, relativamente é livre subjetividade do trabalho do homem. Nessa luta, não se veja como alternativa o socialismo (CA, n. 35).

Salário. Retorna-se ao ensinamento da Rerum Novarum, sobre a dupla dimensão do trabalho, pessoal e necessário.  Reafirma-se o ensinamento de que, enquanto necessário para a subsistência, o salário deve ser tal a garantir um nível de vida digno, de sustentar o trabalhador e sua família.

A encíclica salienta que, apesar de tantas convenções trabalhistas nacionais e internacionais, ainda temos hoje situações como aquelas do “capitalismo selvagem” do tempo da Rerum Novarum, onde o trabalhador é obrigado a aceitar um salário que não atende às suas reais necessidades (CA, n. 8). Uma das funções do Estado, na esteira do ensinamento da Rerum Novarum, é exatamente assegurar níveis salariais adequados ao sustento do trabalhador e de sua família, função também importante dos sindicatos.

Propriedade. A encíclica recorda a doutrina tradicional da Igreja, desde a Rerum Novarum, sobre o direito natural à propriedade privada, e ao mesmo tempo sobre as responsabilidades que pesam sobre esse direito. Depois, fala da origem de todos os bens, que é o ato criador de Deus. Ele criou tudo para todos, sem privilegiar ninguém. Está aqui a fonte do princípio patrístico da destinação universal dos bens. É através do seu trabalho e inteligência que o homem consegue transformar a terra e estabelecer nela sua morada. Assim, o trabalho está na origem da propriedade individual. Acena-se ainda sobre a necessidade de não se impedir que outros tenham acesso a esse direito; muito pelo contrário, deve se fomentar esse direito para todos. Fala-se de um novo tipo de propriedade em nossos tempos, que é aquele da “técnica” e do “saber”. A riqueza das nações industrializadas fundamenta-se no monopólio deste know how, que não é repartido com outras nações (CA, n. 30 ss).

Mercado. Embora a ideologia neoliberal acentue o contrário, a encíclica ensina que o mercado não é total, mas tem limites:
a) O mercado só é viável para quem tem a oferecer, deixando fora os que não podem entrar no sistema de empresa (n. 33);
b) O mercado vale somente para as realidades solvíveis, passíveis de serem vendidas e compradas. Existem porém necessidades humanas fundamentais que não entram nessa categoria e que devem ser respondidas fora do sistema de mercado (n. 34).
c) Existem necessidades coletivas e qualitativas às quais o mercado não pode responder (n. 40).

O mercado é, pois, um mecanismo idôneo, mas com limitações que é preciso suprir. A Igreja reconhece a positividade do mercado e da empresa, mas esses devem estar orientados para o bem comum. Existem, portanto, outros critérios que vão além dos técnico-econômicos, para regular o mercado.

Estado e Economia. A atividade econômica não pode desenvolver-se num vazio institucional. Eis então uma primeira função do Estado: garantir a segurança de quem trabalha e produz. Outra tarefa do Estado é vigiar e orientar o exercício dos direitos humanos no setor econômico; nesse campo, entretanto, a primeira responsabilidade não é do Estado, mas dos indivíduos e diversos grupos que se articulam na sociedade. Pode ainda o Estado intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Pode ainda exercer uma função de suplência quando setores sociais ou sistemas de empresas se mostram  inadequados à sua missão.

Conteúdo concreto do papel do Estado:

1º. Determinar o marco jurídico dentro do qual se desenvolvem as relações econômicas e salvaguardar as condições fundamentais para uma economia livre (n. 15; 25).

2°. Garantir a igualdade de condições dos distintos agentes econômicos (n. 15; 48). Uma igualdade de condições perante a lei e, principalmente, na hora da negociação dos contratos, mas não igualitarismo na distribuição das rendas ou de um critério de redistribuição das mesmas.

3º. Tutelar os direitos de nível superior: proteger a liberdade de todos (n. 44), zelar pelo exercício de direitos humanos no campo econômico (n. 48).

4º. Prover os ‘bens públicos’: sistema monetário estável, serviços públicos eficientes, segurança jurídica (n. 48), defesa e tutela dos bens coletivos, tais como o ambiente humano e natural (n. 40).

5°. Uma presença de suporte e suplência da iniciativa privada, segundo o princípio de subsidiariedade (n. 48).

No conjunto, as tarefas do Estado resultam mais amplas do que lhe atribuem alguns economistas liberais, mas também notavelmente mais restritiva que as que sustentam os intervencionistas.

João Paulo II teve um magistério muito rico em todos os campos nos longos anos de seu pontificado, especialmente no que se refere a esse patrimônio que chamamos de “Doutrina Social da Igreja”, cumulando-o com suas três encíclicas sociais, além de inúmeros discursos, mensagens e homilias. Cabe a nós, cristãos, abeirar-nos desse patrimônio e haurir daí as indicações para nossa atuação sociopolítica e econômica.

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Padre Antônio Aparecido Alves é Mestre em Ciências Sociais com especialização em Doutrina Social da Igreja pela Universidade Gregoriana de Roma. Doutor em Teologia pela PUC-Rio. Presbítero na Diocese de São José dos Campos/SP

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