Na íntegra

Entrevista sobre encíclica Pacem in terris, de João XXIII

A encíclica Pacem in terris foi um dos principais documentos escritos pelo Papa João XXIII. O bispo da diocese de Pesqueira (PE) e membro da Comissão Caridade, Justiça e Paz da CNBB, Dom José Luiz Ferreira de Salles, concedeu entrevista ao noticias.cancaonova.com comentando as peculiaridades do documento bem como sua atualidade e importância para o mundo atual.

Rogéria Nair
Da Redação

noticias.cancaonova.com: Pacem in Terris é um documento de grande valia ainda hoje para a Doutrina social da Igreja. O que esse documento de João XXIII significou para a Igreja na época?

Dom José Luiz Ferreira de Salles – Acredito inicialmente que o Documento, como todo documento pontifício, tem seu peso e sua importância para a época em que seja escrito, bem como para os tempos subsequentes. Pacem in Terris, sem dúvida, tem sua grande importância para a Doutrina Social da Igreja, tendo em vista que o grande desejo da humanidade está enraizado em dois grandes fundamentos: a justiça e a paz. Esses pontos perpassam toda a ação social da Igreja em seus mais diversos níveis e campos de atuação. Vejo que a primeira grande novidade da encíclica é a quem ela é endereçada. Comumente, o Papa escrevia sempre para o mundo católico. Desta vez ele endereça sua carta “a todas as pessoas de boa vontade”. Isso já abre um leque para um diálogo com o mundo, numa visão ecumênica e dialogante, com desdobramentos ao longo de todo o texto.

Na época em que a encíclica foi escrita, tínhamos um mundo desordenado, onde, contudo, o ser humano progride e cresce na realização de si mesmo. Neste sentido, é já uma visão otimista, confiante nos destinos da Humanidade. No período de sua publicação, havia um grande debate dentro da Igreja sobre a cooperação em questões políticas, econômicas, sociais e culturais com os não-crentes, especialmente os marxistas. João XXIII desejava o reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. Por isso faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU, de 1948, e que se tornou uma referência e uma inspiração para os povos empenhados na afirmação dos princípios e valores democráticos, buscando uma integração dinâmica entre os direitos e deveres individuais, os direitos e deveres políticos e os direitos e deveres sociais. A Igreja da época abre o seu olhar e volta a sua atenção para a ascensão econômico-social das classes trabalhadoras, o ingresso da mulher na vida pública, o fim do colonialismo e das discriminações sociais, a participação das pessoas na vida política e social do país, apontando, ainda que não explicitamente, para o modelo da democracia participativa e a necessidade e a urgência da paz no interior das comunidades nacionais e da comunidade internacional.

noticias.cancaonova.com: Esta encíclica é um documento amplo. Como ele ainda repercute nos dias de hoje, não somente na Igreja, mas também na sociedade?

Dom José Luiz – Eu creio que, depois de mais de meio século, a encíclica continua atual e contemporânea. É um dos mais importantes textos para compreendermos os desafios e as possibilidades do nosso tempo e tem uma notável inserção na realidade brasileira e latino-americana. Embora ainda reste muito a ser feito, o mundo mudou consideravelmente nas direções que o Papa João XXIII aprovaria e desejava. Porém, poderíamos hoje nos perguntar: quais as contribuições para a paz por parte dos povos cristãos que falam de evangelização, ecumenismo, tolerância, de justiça social, distribuição equitativa dos recursos da terra, do desarmamento e da solução dos conflitos no nível do diálogo entre as partes? Assim como os profetas que o antecederam, vejo que o Papa João XXIII também teve uma visão para compartilhar com a família humana, projetou um mundo onde a paz seria alcançada pelos governos dedicados ao cumprimento dos direitos humanos e onde as instituições globais seriam estabelecidas para atender às necessidades globais da humanidade. Apesar de muitos avanços, a Paz sobre a terra ainda é um desejo. Vejo que estamos distantes de uma paz que não seja utopia e a justiça não seja cega, a liberdade não seja libertinagem, permissividade, onde a verdade não seja a doutrinal, mas a do valor próprio de cada ser humano de qualquer cor, cultura, religião; onde a justiça seja uma carta dos direitos humanos em sintonia com as aquisições da comunidade internacional; onde amor-solidariedade signifique que cada um (indivíduo, grupo, povo) realize o seu próprio bem somente na realização do bem dos outros; e onde liberdade seja equivalente à possibilidade de plena realização de cada sujeito. Penso que nós temos que guardar “no coração e na memória” o desejo do “papa Bom” e por em prática os seus inspirados e luminosos ensinamentos.

noticias.cancaonova.com: “O progresso da ciência e as invenções da técnica evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças da natureza. Testemunham outrossim a dignidade do homem capaz de desvendar essa ordem e de produzir os meios adequados para dominar essas forças, canalizando-as em seu proveito”, escreve o pontífice na encíclica. De que forma a ciência, nos últimos anos, tem canalizado seu conhecimento para o proveito do ser humano?

Dom José Luiz – Este é um campo vasto e complexo de ser analisado, sobretudo com esta avalanche de avanços técnico-científicos onde o ser humano parece não ter limites no conhecimento e no uso desses conhecimentos. A Ciência talvez seja um dos empreendimentos humanos de maior sucesso em toda a história. Os benefícios que ela trouxe para humanidade, felizmente, superam os malefícios que a sua utilização desvirtuada e sem ética pode causar. Porém, o Papa nos adverte que não bastam esses conhecimentos para se garantir as relações de convivência verdadeiramente humanas baseadas na verdade, justiça, amor e liberdade. Existe hoje um número bem maior de cientistas, os meios de comunicação estão em todo o mundo, a sofisticação está tomando conta da tecnologia e percebe-se que a ciência controla um grande mercado financeiro, gerando grande capital para as nações que a tem em desenvolvimento. É preciso ver que a influência da ciência na evolução das sociedades é igualmente complexa e os benefícios e malefícios da ciência continuam a ser controlados por pessoas e instituições com interesses particulares imprevisíveis, muitas vezes opostos aos interesses gerais e consensuais.

noticias.cancaonova.com: “… imprimiu o Criador do universo no íntimo do ser humano uma ordem, que a consciência deste manifesta e obriga peremptoriamente a observar”. Aparentemente, este conceito é pouco aplicado na sociedade atual. Em quais circunstâncias ainda podemos perceber essa realidade acontecer (Consciência do homem que se manifesta e o leva a observar a ordem natural de seu ser)?

Dom José Luiz – De fato, lemos no Documento do Papa que Deus dotou o ser humano de uma ordem racional que se imagine que a obra criada seja reflexo do seu criador (cf. Sl 18,8).  É preciso, entretanto, considerar uma realidade relevante nesse contexto: a liberdade dada ao ser humano. Quando bem interpretada e usada, pode conduzi-lo a atitudes de nobreza e grande valor. Do contrário, ele toma para si o direito de fazer com que “as relações de convivência entre os indivíduos e sua respectiva comunidade política possam reger-se pelas mesmas leis que as forças e os elementos irracionais do universo”, como nos afirma João XXIII. Mas sou otimista. Gosto e quero crer que o mundo ainda tem jeito e que o ser humano é bom e mesmo que ele erre, ainda vale a pena apostar nele. Creio que o mundo ainda tem conserto. Vejo isto, por exemplo, na realidade onde vivo e em tantas outras deste nosso país, homens e mulheres que ainda valorizam essa consciência, sonhando, apostando, se organizando e lutando por um mundo mais justo e fraterno. Tenho acompanhado nas comunidades quanta gente boa, com sonhos e esperanças. Essa propensão ao bem e à ordem impregnada nos corações humanos, dá todo sentido e impulso à nossa ação como cristãos e como Igreja em busca de um mundo melhor e mais cristão. Lembro as palavras do Papa Francisco no Domingo de Páscoa, em seu Urbi et Orbi, pedindo “paz para o mundo inteiro, ainda tão dividido pela ganância de quem procura lucros fáceis, ferido pelo egoísmo que ameaça a vida humana e a família. Paz para todo o mundo dilacerado pela violência ligada ao narcotráfico e por uma iníqua exploração dos recursos naturais. Paz para esta nossa Terra!”.

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