Prescrição indiscriminada de antibióticos pode estar presente em hospitais públicos e privados, segundo pesquisa recente realizada por um instituto
Aline Imercio
De São Paulo

Pesquisa do Instituto Qualisa de Gestão aponta que 87% dos hospitais analisados prescrevem antibióticos de maneira indiscriminada / Foto: Arquivo
Você já esteve internado ou passou em um pronto socorro em que recebeu a prescrição de um antibiótico que acabou não funcionando contra a doença que estava? A prescrição indiscriminada deste tipo de medicamento foi tema de uma pesquisa realizada pelo Instituto Qualisa de Gestão. O estudo avaliou 104 hospitais públicos e privados do Brasil e constatou que, em pelo menos 87% deles, a administração desse tipo de medicamento era empírica, ou seja, por observação clínica e sem a comprovação de exames.
E a má administração de antibióticos resulta na chamada Resistência Antimicrobiana, que acontece quando bactérias, por exemplo, se tornam resistentes aos antibióticos, o que segundo a OMS, pode ser uma ameaça à saúde global. Sobre esse assunto, o Noticias.cancaonova.com conversou com a CEO da IQG, Mara Machado.
noticias.cancaonova.com — Como foi feita essa pesquisa?
Mara Machado — Essa pesquisa foi feita no Brasil inteiro, foram 104 hospitais. Na verdade, nós selecionamos mais de 300 hospitais, ficamos com 104, onde as respostas eram coerentes para que a gente pudesse ter um levantamento estatístico. E a pesquisa aborda dentro do hospital, a estrutura da farmácia, a estrutura do controle de infecção e a governança. Foram avaliados hospitais públicos e privados. Em números, os hospitais privados foram mais significativos do que os públicos. Então nós tivemos 60% de hospitais privados e 40% de hospitais públicos.

A CEO da IQG, Mara Machado / Foto: Arquivo
noticias.cancaonova.com — E por que vocês decidiram fazer esse levantamento?
Mara Machado — As questões sobre o controle de infecção não são nada novas dentro dos hospitais, desde a morte do presidente Tancredo [o eleito presidente do Brasil Tancredo Neves que faleceu em 1985 de infecção generalizada] que se discute sobre isso, e isso aconteceu em 1985, e a gente continuou essas discussões. Então já fazem três décadas das discussões sobre como controlar as infecções dentro dos hospitais. Infelizmente, isso não avançou por vários motivos estruturais, culturais e até econômicos e hoje nós continuamos a falar ainda das questões de infecções, com números ainda assustadores dentro dos hospitais brasileiros. Isso fez com que a gente começasse a procurar uma forma de chamar a atenção, não só a atenção dos especialistas da área, porque nós da área da saúde, discutimos muito sobre isso, mas num grupo pequeno de especialistas. A pesquisa veio, na verdade, pra gente poder chamar a atenção não só desses especialistas, mas de todos os profissionais do sistema de saúde, da vigilância sanitária e, mais importante, da própria sociedade civil.
noticias.cancaonova.com — E quais foram os resultados mais expressivos que vocês tiveram?
Mara Machado — Os resultados mais expressivos são que os hospitais continuam utilizando os antibióticos sem qualquer controle. Então, hoje a questão da resistência antimicrobiana, ela já é considerada uma crise silenciosa, não se considera uma pandemia porque ela vai acontecendo de uma maneira mais lenta, do que quando eu tenho os vírus respiratórios, mas ela está em andamento, e hoje a própria Organização Mundial da Saúde discute que isso é um problema de saúde pública. Então, se você me perguntar: ‘Isso tem impacto na população?’, se isso não começar a ser trabalhado agora, nós vamos voltar à medicina da década de 40, onde não existiam os antibióticos ainda, então infecções simples como infecção urinária, podem não ser possíveis de tratar.
noticias.cancaonova.com — Essa resistência bacteriana, ela se forma por utilizar antibióticos de uma forma inadequada muitas vezes, é isso?
Mara Machado — Exatamente, as bactérias vão ficando resistentes. Esse uso irracional dos antimicrobianos foi fazendo com que cada vez mais as bactérias fossem ficando resistentes. (…) Hoje, dentro dos hospitais brasileiros, eu já tenho hospitais que têm uma UTI, onde 80% dos antibióticos não têm mais nenhuma eficácia. Em algumas unidades de internação, certas bactérias já não respondem mais aos antibióticos de primeira linha. Então, isso tem aumentado o tempo de internação dentro dos hospitais e tem aumentado o custo das internações de forma absurda.
noticias.cancaonova.com — E quais foram os erros mais comuns que vocês visualizaram nessa administração de antibióticos?
Mara Machado — Isso é um dado da Anvisa, 50% das prescrições nos hospitais de antibióticos são inadequadas. Isso é um número bastante significativo (…) E isso acaba fazendo com que os gestores dos hospitais também não tenham uma posição muito direta no uso racional. O que acaba acontecendo é a falta de controle sobre a autonomia médica, os médicos não aceitam os protocolos.
noticias.cancaonova.com — Para quem não é da área, gostaria que explicasse: é preciso seguir um protocolo para receitar um antibiótico, correto?
Mara Machado — Exato. E mais do que isso, hoje nós temos uma uma condição de tecnologia, onde os laboratórios de microbiologia dão o direcionamento de quando começar o antibiótico, qual o antibiótico e quando parar o antibiótico. Então, hoje a tecnologia já está disponível e ela consegue dar essa informação muito precisa para os médicos, só que falta o controle dos gestores, das instituições e falta também uma discussão um pouco mais aberta ética, a bioética junto aos profissionais médicos. (…) Existe uma responsabilidade profissional e uma responsabilidade também na governança dessas instituições de saúde.
noticias.cancaonova.com — É preciso que a população também entenda sobre a necessidade desses protocolos ao ir, por exemplo, ao pronto socorro?
Mara Machado — Eu acho que nós estamos no momento agora que a gente precisa fazer um letramento da população, porque não é uma orientação que a gente vai conseguir mudar esse cenário, né? Nós estamos precisando agora fazer o letramento da população do que efetivamente é o uso de antimicrobianos e também o letramento dos profissionais da saúde, porque são eles também que têm essa responsabilidade. E tudo isso acaba chegando no meio ambiente. Hoje, quando você discute isso com o profissional da saúde, ele acha que o antibiótico impacta naquele paciente, naquele momento. Só que hoje já se sabe que a nossa água, a água que nós tomamos, ela está contaminada com resíduos ativos de antimicrobianos. Então isso vai para o meio ambiente e do meio ambiente aumenta ainda mais a resistência. Nós estamos precisando fazer um letramento com campanhas muito sérias para letrar a população e uma vigilância mais séria para também fazer o letramento dos profissionais e dos gestores da área da saúde.

