Em todo o mundo, particularmente as mulheres são vítimas da violência. Segundo o relatório "Progresso das mulheres do mundo", divulgado pela agência ONU Mulher na quarta-feira, 6, cerca de 600 milhões vivem em países onde a violência doméstica não é considerada um crime. Na América Latina, um terço das mulheres declararam já ter sido vítima de agressão física e 16% de agressão sexual em algum momento de sua vida.
O relatório alerta que a situação das mulheres é particularmente grave na Costa Rica, Paraguai e Peru, onde 20% das mulheres declaram ter sofrido abuso sexual, mas poucas admitiram ter relatado o ocorrido à polícia.
De acordo com a presidente da agência, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, “muitos países latino-americanos têm leis de proteção à mulher, mas há uma grande distância entre a lei e sua implementação”.
No Brasil, quatro em cada dez mulheres já foram vítimas de violência doméstica. O número consta do Anuário das Mulheres Brasileiras 2011, divulgado na segunda-feira, 4, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos (Dieese).
De acordo com a pesquisa, 43,1% das mulheres já foram vítimas de violência em sua própria residência. Entre os homens, esse percentual é de 12,3%.
Segundo os dados, de todas as mulheres agredidas no país, dentro e fora de casa, 25,9% foram vítimas de seus cônjuges ou ex-cônjuges.
Perfil agressor
O consumo excessivo de bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas faz parte do perfil da maioria dos agressores, dizem os especialistas. Mas os sinais de violência também são demonstrados na infância.
“Geralmente, essas pessoas são transgressoras de normas, têm desvio de conduta e atitudes agressivas com pessoas ou atos de crueldade com animais”, explica a psicóloga Mara Silvia Lourenço.
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A especialista alerta que atitudes que demostram um perfil agressivo podem ser percebidas na época do namoro, como gestos extremamente egoístas ou a dificuldade em aceitar contrariedades.
No caso das mulheres que agridem seus filhos ou dependentes, geralmente a violência não está ligada ao consumo de álcool ou drogas. “O perfil das mulheres que cometem violência contra seus filhos é de pessoas comuns que eventualmente se excedem na disciplina que querem impor aos seus filhos”, afirma o promotor de justiça Aluísio Maciel Neto.
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Exagerando na disciplina dos filhos
A violência doméstica tem muitas causas. Muitos pais fazem uso da violência para disciplinar e educar. No entanto, o psiquiatra César Monteiro da Silva alerta que essa não é a melhor forma de educar. "Esta violência muitas vezes é usada como forma de aliviar tensões e frustrações e também para descontar nos seus filhos agressões que eles tiveram na própria infância. Isso faz com que a agressividade se torne um circulo vicioso, caracterizando uma situação grave”, salienta.
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Existem também casos de filhos que agridem os pais ou avós, o que, segundo o psiquiatra, é fruto de uma conduta permissiva, onde não foram definidas com clareza as regras e as condutas que estabelecem a boa convivência humana e a não-aceitação dos "não" que a vida impõe. Também são pessoas que cresceram em ambientes onde a violência é vista como algo normal ou tolerável, o que acontece com certa frequência.
“Enquanto os filhos são indefesos, são agredidos pelos pais. Mais tarde, quando adolescentes ou adultos, eles podem se transformar em agressores dos pais”, ressalta o psiquiatra.
O que leva uma pessoa a agredir seu familiar
Quando criança, Helen* (nome fictício para a preservação da identidade) via seu pai agredir sua mãe. Ela tinha apenas quatro anos, mas as cenas ficaram gravadas em sua memória. “Minha mãe estava grávida e mesmo assim meu pai batia nela. Uma vez ele jogou uma garrafa de cerveja na cabeça dela”, recorda.
A mãe de Helen conta que, normalmente, o pai era uma boa pessoa, até mesmo gentil, mas, quando bebia, se transformava. Ele possuía uma arma em casa, o que aterrorizava ainda mais a família. “Tinha medo de que, em algum momento, ele pegasse aquela arma”, lembra a mãe.
O casal ficou separado por nove anos. Quando a mãe de Helen decidiu aceitar o marido de volta, ela acreditava em sua mudança. “Tinha medo que tudo aquilo acontecesse de novo, mas como minha mãe e meu irmão queriam muito tê-lo de volta em casa, aceitei”, conta a jovem.
A adolescência é por si só um período conturbado e aceitar a presença do pai novamente em sua vida era muito difícil para Helen.
“Quando ele voltou a beber sempre, para mim era insuportável. Nesses momentos minha mãe não discutia com ele, tentava agir ainda mais calmamente para não irritá-lo. Certa vez estava chateada em meu quarto e ele veio brigar comigo porque eu não queria sair de lá. Quando ele foi pra cima de mim, minha amiga entrou na frente, mas ele pegou-a pelos braços e jogou-a para o lado. Minha amiga nunca mais voltou em casa”, diz a jovem.
Os hematomas em decorrência das agressões foram percebidos pelos colegas, que contaram o caso à coordenação da escola. A família foi chamada para fazer uma terapia familiar dentro da própria escola, mas a mãe de Helen não aceitou, acreditando que a família sozinha conseguiria resolver seus problemas.
Denúncia e ajuda
A psicóloga alerta que o mais importante é não ignorar a situação, é preciso denunciar aos órgãos competentes, como a Delegacia da Mulher, e procurar ajuda especializada. “O importante é não deixar o problema chegar ao extremo, pois esses traumas deixam feridas profundas”, reforça.
O tratamento psicológico é um grande auxílio para que as vítimas recuperem principalmente a auto-estima. A psicóloga destaca que os familiares devem deixar que a pessoa fale do ocorrido abertamente, numa atitude de escuta carinhosa, mas também não fazer pressão, demonstrar uma compreensão e levar a sério o sentimento que a pessoa está vivendo.
“O agressor também precisa de ajuda, principalmente de ajuda especializada, uma intervenção médica. É essencial que a família e o agressor tomem consciência de que isso é prejudicial para a vida de toda família e busquem ajuda”, alerta Mara Lourenço.
Segundo a psicóloga, no caso em que envolve o alcoolismo ou o consumo de drogas, o tratamento de recuperação já ajuda muito o agressor a tomar consciência de que precisa melhorar.
Proteção da justiça
A violência doméstica é definida pela justiça como atos de ofensa à integridade sexual, psicológica ou moral às mulheres ou a outros familiares.
Este crime pode acontecer envolvendo marido, mulher e filhos, ou num ambiente de família macro, que envolve avós ou tios.
Nesses casos de violência, o depoimento de vizinhos, colegas de escola e professores é muito importante. “Como qualquer crime que acontece no ambiente doméstico, fica difícil a coleta de prova. Em regra, você tem a palavra da vítima contra a palavra do agressor. Assim, o envolvimento de terceiros é importante para que possamos ter um texto de prova para conseguir a condenação do agressor”, esclarece o promotor de justiça Maciel Neto.
Para proteger a vítima, pode-se emitir uma ordem judicial que determina o afastamento do lar por parte do agressor, a proibição de contato físico com a vítima e com a família da vítima e, até mesmo, a proibição de ambientes comerciais que propiciem a violência doméstica, o que é aplicado rotineiramente.
Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha aumentou o rigor nas punições aplicadas em casos de violência doméstica.
“Além disso, é possível a prisão preventiva ou em flagrante do agressor, desde que flagrado no momento da agressão ou que fique configurado que a liberdade dele acarretará mais riscos à vítima”, destaca Aluísio Neto.
Perdoando para recomeçar
A psicóloga salienta que a partir de um diálogo franco e de um reconhecimento do problema, por meio do amor, é possível ajudar a pessoa a melhorar a relação familiar. “O amor mútuo é muito importante nesses casos, o desejo de melhorar e a ajuda à pessoa amada auxilia a se levantar. É importante que haja perdão e recomeço”, enfatiza Mara.
“Quando aceitei Deus como tudo na minha vida, percebi que precisava perdoar meu pai, mesmo que ele não tivesse me pedido desculpas. Eu tinha que dar um primeiro passo para ajudar na situação da minha família e ser sinal da presença de Cristo para o meu pai, fazendo como Cristo, que perdoou seus agressores”, conta Helen.
Certo dia, pela manhã, ela tomou coragem e disse ao pai que sentia muito por tudo que tinha acontecido, mas que o amava muito. Sem esperar por esta atitude, ele disse que também a amava e que também sentia muito pelo que tinha feito.
Perguntado hoje pelos motivos que o levaram a ter atitudes agressivas, o pai de Helen disse que não sabia bem explicar, que foram atitudes impensadas. “Fiquei muito chateado ao ver o distanciamento, especialmente da minha filha”, fala. Após esse dia, eles nunca mais brigaram e o pai nunca mais teve uma atitude agressiva.
Mesmo vivendo numa família cristã com muitos valores, Lúcia* (nome fictício) sofreu com um caso de agressão cometido por seu pai. A família passava por um momento de estresse e desentendimento. Foi uma atitude isolada, mas que a magoou.
“Eu logo me retirei e fui chorar de medo do meu pai. Minha mãe veio logo para o meu quarto e ficou comigo. Disse-me que ela tinha certeza de que meu pai ainda me amava e esse momento ia passar. Foi um momento tão difícil e intenso, mas eu senti, através do amor de minha mãe, que era verdade que meu pai me amava e que eu poderia perdoar”, conta Lúcia.
O pai de Lúcia lhe pediu perdão logo depois. Com humildade, disse que estava completamente errado, fora de si. “Eu logo dei um sorriso e parecia que tinha se dissolvido, pois o amor da família é maior do que qualquer dor”, diz Lúcia.
Um ambiente de estresse pode contribuir para desencadear uma atitude de agressividade. Mas cometer atos de violência é sinal de transtornos que devem ser tratados No entanto, muitas vezes, palavras agressivas também causam mágoas e ressentimentos. Para superar, o diálogo familiar franco é muito importante, conclui a psicóloga Mara.
“Quando aparecem os limites, basta olhar para as qualidades da pessoa e, se priorizamos o positivo do outro, é sempre possível perdoar. Perdoar é esquecer e olhar com olhos novos. Porque o passado já passou e o momento presente é o que importa”, destaca Lúcia.