Especialistas comentam a influência da pandemia no combate à fome e as diversas maneiras de enfrentá-la e diminui-la no futuro
Thiago Coutinho
Da redação
A fome há muito atinge uma parcela enorme da população mundial, e a chegada da pandemia causada pelo novo coronavírus só veio a piorar este já dramático quadro. Estimativas das Nações Unidas apontam que as pessoas em situação grave de fome podem chegar a 265 milhões até o fim deste ano.
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Este cenário poderá mudar com a chegada da tão sonhada vacina? “A pandemia acentuou o que já estava crítico nos diversos cantos do mundo, e a fome sempre foi um problema não solucionado. Não acredito que a vacina solucionará a questão da fome, mas possibilitará a retomada das atividades e da economia”, explica Polyana Zappa, doutoranda e mestra em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Há, contudo, um aparente paradoxo neste assunto: segundo o cientista político e sociólogo Adill Abel Kuzimbila, angolano radicado no Brasil há dezoito anos, nos últimos três meses, especialmente na Europa e na Ásia, houve uma produção recorde de alimentos — de fato, o Brasil exportou US$ 17,6 bilhões em alimentos industrializados para diversos países, em especial a China. Trata-se de uma alta de 12,8% se comparado ao mesmo período de 2019, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA). A questão, porém, segundo o sociólogo angolano, é o destino desta produção alimentícia.
“A distribuição desses alimentos ainda está concentrada nas classes mais altas, que detêm o poder aquisitivo e de compra. Quando falamos de fome, precisamos falar também de distribuição de alimentos, saber se eles estão chegando nos lugares onde os dados são alarmantes”, adverte Adill.
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O sociólogo é cauteloso com a relação estabelecida entre a chegada da vacina e a diminuição da fome mundial. “Eu não seria tão ousado de dizer que sim [a fome diminuirá com a vacina] e nem tão pessimista de dizer que não. Ainda precisaremos lidar com as consequências da vacina”, diz.
A fome no século 21
“A pandemia mostrou até que ponto nossa péssima distribuição de renda afeta a forma que vivemos. Como afeta nosso modo de produção e se ela não funciona no sentido de produção e consumo, automaticamente muitos consomem o que sobra, especialmente em países como Ásia e África. Mesmo o Brasil, com uma terra vasta, não consegue alimentar nem 30% da população com o que produz”, lamenta Adill. “O que fará o alimento chegar à mesa de todos não é a tecnologia, mas sim as políticas públicas”, enfatiza.
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Para Polyana Zappa, a resposta para o fim da fome começa nos preceitos de Jesus Cristo. “Se o ensinamento de Jesus de amar ao próximo como a si mesmo fosse praticado, a fome talvez fosse erradicada. Mas a contemporaneidade se apresenta como o momento mais individualista da história”, analisa.
“Infelizmente, a pandemia potencializou os nossos problemas”, emenda Adill. A solução, para o sociólogo, é investir em agricultura. “Precisamos tirá-la de um patamar elitista para um patamar popular. Já vimos isto, especialmente em países da América Latina, que valorizaram a agricultura e tiveram ganhos elevados em termos sociais e diminuíram a questão da fome”, acrescenta.
O desperdício de alimentos é um dos itens que os países deveriam levar mais a sério, observa Adill. “Uma nação que desperdiça toneladas de alimentos diariamente é negligente com as próximas gerações. Precisamos investir em agricultura e políticas públicas que potencializem as reformas agrárias”.
O fim da fome está diretamente ligado ao fim da pobreza. Se a desigualdade social não diminuir, não haverá maneiras para que a fome diminua. “Acredito que a educação é o caminho para encontrarmos alternativas coletivas e efetivas para mudarmos a realidade catastrófica que a pandemia deixará neste século 21”, analisa Polyana.
A própria Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) reconhece que o crescimento econômico equânime é a chave para que a fome mundial seja reduzida. “Não se combate a fome com mais programas públicos, até porque já temos vários. Precisamos potencializá-los. As políticas públicas são feitas visando aos quatro anos de eleição. Não se combate a fome em quatro anos. As políticas têm que perpassar este tempo e ter a sensibilidade de saber quem nós somos”, reflete o sociólogo.
As ações da Igreja
Enquanto não se soluciona de forma total o problema da fome, a Igreja procura fazer a sua parte para amenizar o sofrimento dos mais pobres que padecem com a falta de alimentos . Em São José dos Campos, no interior de São Paulo, por exemplo, a Paróquia Espírito Santo, coordenada pelo pároco Rogerio Felix Machado, já arrecadou 80 toneladas às famílias carentes.
“Logo que começou a pandemia e com ela a quarentena, iniciamos a campanha PESSemFome: Paróquia Espírito Santo sem fome. O plano foi fruto de oração. Colocamo-nos diante de Deus e perguntamos: o que o Senhor quer de nós a partir de agora? Como podemos continuar o nosso testemunho cristão? E Deus nos respondeu: Não deixe nenhum dos meus filhos passar fome”, explica o padre Rogério.
Toda a logística para se colocar esta campanha em prática levou em consideração os protocolos sanitários para se evitar o contágio do coronavírus. “Falamos do pedido de Deus para os leigos que, imediatamente, abraçaram esta missão. Iniciamos então as arrecadações de alimentos, produtos de limpeza e de higiene pessoal. Adotamos o sistema drive-thru. As pessoas deixam suas doações na portaria do nosso estacionamento. Este é o principal modo de recolhimento das doações até hoje. Usamos a internet para a conscientização da comunidade, que respondeu imediatamente, aderindo com alegria à campanha. Temos certeza que esta é uma obra de Deus”, alegra-se o padre.
Roupas, calçados, remédios e cobertores, quando recebidos pela Paróquia, são encaminhados às pessoas mais carentes por meio da farmácia popular e pelas obras sociais da igreja.
Em São Paulo, capital, o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), já no início da pandemia, decidiu que não fecharia suas portas e continuaria a ajudar a população de rua, imigrantes, idosos, crianças e adolescentes que vivem à margem da sociedade. Este trabalho solidário, porém, precisava de um auxílio maior da iniciativa privada — para se ter uma ideia, o Sefras assistia, até março, dois mil moradores de rua, número que subiu para 10 mil com a chegada da pandemia.
Em uma parceria com uma incubadora de projetos culinários liderada pelo cozinheiro Alexandre Pernet, criou-se o projeto Quentinhas do Bem, que funciona da seguinte maneira: quem quer ajudar, pode fazer doações por meio do site Ingresse.com. Assim, são produzidas as marmitas para o público carente atendido pela organização. “Além disso, Pernet mobilizou sua própria rede de contatos para captar recursos financeiros, quase R$ 80 mil, além de outras empresas, como a Fazenda do Futuro, que forneceu meia tonelada de carne de hambúrguer vegano para compor a marmita de milhares de pessoas e distribuiu cerca de dois mil hambúrgueres para a população de rua em nossas tendas franciscanas”, explica Rodrigo Zavala, Gestor de Desenvolvimento Institucional e Sustentabilidade do Sefras.
Mas não é só isso: além do projeto Quentinhas do Bem, o Sefras leva a cabo a campanha Vida para Todos, um braço de captação de recursos e comunicação da Ação de Enfrentamento ao Novo Coronavírus. O projeto é subdividido em outros quatro programas: População de Rua (com atendimento de quase 700 pessoas diariamente em ações de geração de renda, higiene, alimentação e apoio jurídico); Crianças e Adolescentes (450 crianças e suas famílias em comunidades altamente vulneráveis em São Paulo e Rio de Janeiro são atendidas); Idosos Sozinhos (302 idosos contam com atividades de integração, alimentação, lazer e cultura, saúde e combate à demência em centros de convivência em São Paulo e Pindamonhangaba, no interior do estado) e o Imigrantes e refugiados (110 imigrantes e refugiados são assistidos na casa do imigrante, onde eles podem ficar até a sua autonomia e inclusão social no Brasil).
Segundo Zavala, até o momento, apenas com o programa Quentinhas do Bem, já foram distribuídas 600 mil refeições e mais de 18 mil cestas básicas. O gestor do Sefras explica ainda que um plano de enfrentamento contra a pandemia já foi desenvolvido e será mantido por um bom tempo. “Percebemos que o problema da fome, uma constante em nossa luta durante a pandemia, irá se manter, mesmo sem isolamento social”, lamenta Zavala.
Nesse contexto, Zavala informa que já se iniciou um processo programático no qual a luta contra a fome, ações de geração de renda e o combate às violências sofridas por esses públicos serão os eixos centrais de trabalho do Sefras nos próximos anos.
“É de cortar o coração ver a situação das pessoas quando entramos em suas casas para levar os alimentos”, lastima padre Rogério. “Se não ajudamos, elas passam fome. Não podemos ser infectados pelo vírus da indiferença, da insensibilidade em relação a essas pessoas. Temos que ajudar. A caridade tem que ser a principal marca do cristão. Se eu não amo com gestos concretos os pobres, sou um falso cristão, um hipócrita”, adverte o religioso.