Decisivamente o Papa Bento XVI, ao mesmo tempo em que mantém sua conhecida postura de busca da verdade, nos seus poucos anos de pontificado, já causou um bom número de agradáveis surpresas. Sem querer lembrar todas, basta ter presente suas visitas a regiões carregadas de riscos, como foi o caso de Israel, Jordânia, Turquia e República Checa.
Mas o significado dessas visitas e o teor das "surpresas" são devidamente compreendidos quando se relembra o "clima" que os antecedeu e mais exatamente certos locais que o papa ousou visitar. O clima: mal-compreendido pelos muçulmanos por uma referência à Maomé; não entendido pelos judeus ao reabilitar um bispo que coloca em dúvida as proporções do holocausto nazista; a ousadia em visitar um país onde não só o comunismo continua tendo força, mas também os católicos e cristãos são pouquíssimo numerosos.
Se é verdade que a acolhida de um certo número de seguidores do Lefèvre – que havia sido excomungado pelo Papa João Paulo II por não aceitar o Concílio Vaticano II e sobretudo por haver ordenado bispos sem a devida autorização de Roma – causou impacto, não há dúvida de que o maior impacto nessa busca por reconciliação está ocorrendo agora, com a acolhida de um grande número de anglicanos. O fato de abrir as portas para um processo de adesão à Igreja de Roma, ao mesmo tempo em que surpreende deve provocar espanto por parte de um certo número de católicos.
Se formos nos guiar pelas manchetes dos jornais, o impacto maior vem do fato de se haver aberto a porta para um processo de readmissão não só de leigos anglicanos, mas também de sacerdotes anglicanos casados, que podem prosseguir em sua missão sacerdotal sem abandonar a vida familiar.
Naturalmente, logo seguiram interpretações no sentido de se encontrar um primeiro passo para, no futuro, a Igreja Católica ter dois tipos de sacerdote: os celibatários e os casados. Com isso, segundo essas interpretações, não apenas a Igreja iria retomar suas raízes históricas mais originais, mas também poderia contar com um maior número de sacerdotes.
O significado da criação de uma estrutura especial para possibilitar uma comunhão plena com Roma, mas preservando certas particularidades da Igreja Anglicana e que não ferem qualquer verdade mais fundamental, mostra, uma vez mais, que Deus continua agindo na história e que o Cristo, que vai à frente dos que nele creem, procede como o Bom Pastor por excelência: ao mesmo tempo em que faz exigências, acolhe tudo aquilo que não impede a comunhão.
De qualquer forma, não há dúvida de que essa abertura aos anglicanos que quiserem aderir à Igreja de Roma, mantendo algumas particularidades, constitui-se verdadeiro sinal dos tempos. Afinal, passaram-se 475 anos desde que o Rei Henrique VIII da Inglaterra, por razões muito pessoais, rompeu com o então Papa Clemente VII. Desde então, quem comandasse a nação estaria, ao mesmo tempo comandando a religião.
Ao longo dos séculos, por falta de um verdadeiro ponto central de referência hierárquica, foi assumindo tonalidades diferentes em várias regiões e em várias nações. O fato é que os atuais 77 milhões de anglicanos começaram a viver um conflito muito grande a partir de 1992, quando foram ordenadas como presbíteras as primeiras mulheres e, sobretudo a partir de 2004, quando Gene Robinson – homossexual confesso e uma espécie de líder do movimento gay – foi ordenado bispo pela igreja Episcopal dos estados Unidos.
Ordenações de presbíteros militantes do movimento gay só foram acentuando ainda mais o desconforto interno.
Claro que ninguém espera que todos os anglicanos estejam prontos para aderir à Igreja de Roma. Imagina-se que serão mais ou menos 500 mil, parcela significativa, mas ainda pequena diante dos 77 milhões. Claro também que ninguém espera uma espécie de adesão maciça e instantânea, uma vez que existem muitos aspectos a serem melhor estudados e aprofundados.
O fato, porém, é que esse primeiro passo se reveste da maior importância, não apenas em relação aos anglicanos, como também em relação a outras igrejas cristãs mais solidamente implantadas e que sempre buscaram o Caminho, a Verdade e a Vida. A nós cabe saudar com esperança esse fato histórico. Quem sabe o ecumenismo e o diálogo inter-religioso estejam fazendo mais progressos do que normalmente se pensa.
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