Assistimos perplexos a uma incrível mudança sócio-cultural ao nosso redor com implicações na vida cotidiana de nossos povos, em especial, na situação de desigualdade social e violência. O “Documento de Aparecida” em sua primeira parte nos traz uma visão da realidade vista pelos cristãos naqueles idos de maio deste ano.
Entre as várias e iluminadas reflexões que fizemos em Aparecida, a de número 44 parece ser um interessante ponto de partida: “vivemos uma mudança de época, e seu nível mais profundo é o cultural. Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua relação com o mundo e com Deus. Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes do último século!… Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito da realidade e só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas. Surge hoje, com grande força, uma sobrevalorização da subjetividade individual… O individualismo enfraquece os vínculos comunitários… Deixa-se de lado a preocupação pelo bem comum para dar lugar à realização imediata dos desejos dos indivíduos, à criação de novos e muitas vezes arbitrários direitos individuais, aos problemas da sexualidade, da família, das enfermidades e da morte.”
A V Conferência que gerou esse belíssimo e importantíssimo documento de Aparecida aparece como um grande (e belo) momento de Pentecostes para toda a nossa Igreja que está na América Latina e Caribe. Enquanto que as quatro primeiras conferências quiseram comemorar ou repercutir um fato (em 1955 a nova maneira de a Igreja organizar-se com as Conferências Episcopais; em 1968 o acolhimento do Concílio Vaticano II; em 1979 o acolhimento do Sínodo e documento sobre a evangelização, e em 1992 a comemoração dos 500 anos de procura de inculturação do Evangelho neste continente) a Conferência de 2007, embora tenho sido pensada como comemoração dos 50 anos do Celam, devido às circunstâncias históricas, entre as quais a saúde e a morte do Papa João Paulo II, fez com que ela fosse prospectiva: um olhar para o novo tempo que é chamado, desde o início, quando assistimos às primeiras colocações e reflexões em Aparecida, de “mudança de época”.
Acredito que é nessa perspectiva que Aparecida traz uma contribuição original para os nossos povos ao olhar para o tempo de mudança que estamos vivendo e, ao analisá-lo como discípulos missionários, olha com coragem o desafio dos novos tempos. Isso é claro em todo o texto do documento, que tem como eixo o tema do discípulo-missionário e a vida, tendo a coragem, no entanto, de examinar a realidade complexa que vivemos hoje e apontar rumos para a nossa caminhada.
Devido ao estilo de trabalho em Aparecida, todos os bispos foram os protagonistas do Documento, pois nas reuniões de grupos é que o mesmo foi sendo elaborado e corrigido. Além do mais, acredito que foi a Conferência que teve mais bispos novos, cuja formação já foi após o Concílio Vaticano II e que trazem em suas vidas a busca da unidade pastoral em meio à diversidade de situações e carismas e já vivenciando a Igreja em sua renovação conciliar desde a juventude.
Isso torna o documento um texto desafiador dos novos tempos, olhando para frente e buscando novos rumos diante do mundo em mudança.
É nesse sentido que valeria a pena dedicar um tempo para refletir sobre a atual situação do mundo de hoje, quando reclamamos a cada instante dos rumos que estamos tendo em nossa sociedade e comparássemos com algumas dessas reflexões de Aparecida, em especial o que citamos acima: nesta mudança de época, queremos excluir Deus de nosso horizonte, deixar-nos conduzir pelo individualismo e imediatismo, criando muitas vezes direitos arbitrários. Se pararmos para refletir honestamente sobre a realidade hoje veremos que é justamente isso que se propaga pela mídia e também em muitos outros ambientes, formando essa nova cultura deste tempo em que a nossa época está mudando.
Uma reflexão que aprofunde tudo isso e nos leve a fazer opções concretas e sadias para este novo tempo, levando valores importantes para a humanidade, é uma das sugestões de Aparecida. Este é um dos modos que podemos também ler este rico documento da Igreja que deve inspirar a todos nós, pessoas interessadas no bem das pessoas em nossa sociedade de hoje e de amanhã.
Dom Orani João Tempesta