Artigo Frei Moser

Aborto: Por trás dos argumentos

A argumentação de quem se posiciona a favor e de quem se posiciona contra, é bem conhecida. O que nem sempre é conhecido é o que fica por trás dos bastidores. Argumentos clássicos em favor da descriminalização do aborto: gravidez indesejada; faixa etária; eventual má formação do feto; saúde; o corpo como propriedade da mulher; riscos decorrentes da não “profissionalização” de quem vai efetivar os procedimentos; a necessidade de acompanhar as legislações encontradas em sociedades consideradas “avançadas”… Todos conhecem a cartilha. Argumento básico contra o aborto: embora se devam distinguir fases diferentes da vida humana, a vida é humana desde a fecundação e como tal deverá ser respeitada até a morte natural.

Nestes últimos tempos os partidários da liberalização do aborto pensam haver encontrado argumentos conclusivos em seu favor no “avanço” das pesquisas genéticas: antes da implantação no útero materno e antes da formação de um núcleo cerebral, estaríamos diante de um simples e fortuito conglomerado de células. Em conseqüência já não existiria mais verdadeiro problema nem no uso de embriões para pesquisas, nem no descarte dos que fossem considerados “inviáveis”, nem do aborto por uma razão qualquer.

Mas, além destas teorias de uma humanização postergada não serem tão novas assim, é exatamente aqui que se manifesta a fragilidade de argumentos pretensamente “científicos”. De fato, o que as mais recentes pesquisas evidenciam é que a partir da fecundação instala-se um novo DNA, original e irrepetível. O DNA é a programação que caracteriza a vida: dada a partida, esta programação simplesmente vai possibilitando desdobramentos numa dialética constante entre o que evolui e o que permanece. O mais incrível é que logo após a junção do óvulo com o espermatozóide o embrião passa a emitir sinais para o organismo materno. Captando estes sinais, o organismo materno passa a se adaptar a esta nova realidade. Em outros termos: desde a fase inicial, longe de se apresentar como mero apêndice, ou invasor, o embrião, senhor de sua identidade já configurada no DNA, passa a interagir de maneira cada vez mais incisiva com o corpo que o acolhe.

É nesta altura que se percebe a necessidade de dar um passo em frente na discussão, trazendo para a ribalta o que se esconde por trás dos argumentos. E por trás dos argumentos se escondem diferentes concepções antropológicas, antes mesmo de diferentes concepções teológicas. Por um lado, há aqueles que se identificam com uma redutora e materialista concepção da vida, como se a vida fosse “uma simples questão química” ( James Watson). Por outro lado, há os que diante da maravilhosa complexidade de inúmeros elementos e fatores que se articulam como numa grandiosa sinfonia, julgam ser a reverência a única atitude inteligente e sábia.

Claro que, em decorrência destas diferentes concepções antropológicas, vão emergir diferentes concepções éticas. Enquanto para uns a ética não passa de mera convenção social que pode, portanto, ser alterada ao sabor das culturas e dos tempos, para outros, há valores que ultrapassam as culturas e até as religiões institucionalizadas. E entre estes valores está o respeito à vida em todas as suas manifestações e em todas as suas etapas. Esta é a única garantia de não se regredir à barbárie de tempos em que nem se precisava de legislação para eliminar os indesejáveis da vida. Foi nesta perspectiva que, ainda no albor da filosofia grega, Sófocles contrapôs a arrogante prepotência de Creon ao vigor inabalável da aparentemente frágil Antígone: existe algo que nos antecede e nos transcende.

Finalmente, os debates sobre a reprodução assistida, o uso pretensamente terapêutico de células embrionárias, e o direito ao aborto, talvez tenham o mérito de levantar a suspeita de que, uma vez mais, estejamos querendo demonstrar a quadratura do círculo: neste mundo dos homens só há lugar para os mais fortes, os mais belos e os bem dotados. E talvez não seja exatamente este o mundo com o qual devemos sonhar. O mundo dos nossos sonhos é o da partilha fraterna, onde há lugar para todos e onde quem recebeu mais deverá distribuir mais. Afinal, para todos poderem usufruir de tudo, ninguém deve se decretar dono de nada, muito menos da vida alheia.

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