Doutor Rudy Albino destaca “heranças intelectuais” do Pontífice e fala sobre “O Dicionário Joseph Ratzinger” – maior obra do mundo sobre Bento XVI, que aguarda publicação
Julia Beck
Da redação
Após a morte do Papa Emérito Bento XVI muito se fala sobre o legado deixado pelo Pontífice. O Professor Doutor Rudy Albino, especialista na teologia e no magistério de Joseph Ratzinger, concedeu uma entrevista para o noticiascancaonova.com comentando sobre as principais obras, feitos e desafios enfrentados pelo Pontífice em vida.
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Albino é um dos difusores da campanha de arrecadação para a publicação do “O Dicionário Joseph Ratzinger” – maior obra do mundo sobre o Papa Emérito. O Doutor explica o que é o livro (que soma mais de 800 páginas, 102 verbetes e 72 autores de 10 países) e sublinha a importância de sua disseminação no mundo.
Confira a íntegra da entrevista:
noticias.cancaonova.com – Hoje, a Igreja perde o Papa Emérito Bento XVI. O senhor, enquanto Professor Doutor especializado na teologia e no magistério de Bento XVI, escreveu, certa vez, que vive para partilhar o que aprendeu de Bento XVI sobre Cristo e sua Igreja. Sobre estes dois temas, de forma particular, quais os ensinamentos mais marcantes deixados pelo Papa Emérito?
Professor Doutor Rudy Albino: Bento XVI passou toda a sua vida buscando apresentar, de forma clara e profunda, a fé em Deus, cujo rosto se manifestou em Jesus Cristo. Por isso, começo fazendo referência à afirmação que ele fez no primeiro volume da trilogia Jesus de Nazaré: ele nos ensinou a confiar no Evangelho, a crer que o Cristo que a Igreja anuncia é tanto o da história quanto o da fé. Portanto, o verdadeiro rosto do Filho de Deus nos é desvelado pela Igreja, que não despreza o método histórico nem se apega uma imagem mi(s)tificada do Galileu que é homem, mas também Deus.
Bento XVI passou toda a sua vida buscando apresentar, de forma clara e profunda, a fé em Deus, cujo rosto se manifestou em Jesus Cristo.
Em segundo lugar, ele sempre defendeu que a Igreja não é apenas uma organização, mas um organismo, um corpo vivo, porque é o Corpo de Cristo, povo de Deus constituído como uma unidade por partilhar do mesmo pão e do mesmo cálice, a Eucaristia, presença real do Seu Senhor. Por um lado, temos uma cristologia espiritual e, por outro, uma eclesiologia eucarística, que constituem dois pilares do pensamento de Ratzinger e que podem nos ajudar a viver como católicos em tempos de tantos “ventos de doutrina”, como ele recordou em 2005 nos funerais de São João Paulo II.
noticias.cancaonova.com – Bento XVI, em vida, já era reconhecido por muitos como um grande estudioso e teólogo. De seus inúmeros livros, documentos e cartas, quais o senhor destaca como grandes heranças intelectuais deixadas por ele? Por quê?
Professor Doutor Rudy Albino: As heranças de Bento XVI são muitas. Como teólogo, ele estabeleceu um diálogo entre fé e razão, entre teologia e filosofia, entre o Deus da fé e o Deus dos filósofos, mostrando que a busca que a razão realiza encontra sua resposta na fé, que é acreditável, razoável, sem violência à racionalidade e sem prejuízo para a consciência e a dignidade humanas; ele nos ensinou uma grande fidelidade ao Concílio Vaticano II, aos seus textos, às verdadeiras intenções de João XXIII e dos Padres conciliares, contra a desorientação de hermenêuticas de rupturas e contra um Concílio “virtual’ que transformou uma assembleia fundada na fé em um campo de disputas de poder; um grande amor à liturgia como culto conforme o Logos, o culto em espírito e verdade no qual o céu está aberto, nunca podendo ser reduzido a um celebração da comunidade em si, mais centrada na festividade do ato de reunião (comunhão horizontal) do que na ligação (comunhão vertical) com o Senhor; por fim, creio que ele nos ensinou que a fé, a esperança e a caridade, no fim das contas, são as virtudes que nos movem, que dão sentido e segurança interior para cada um de nós.
noticias.cancaonova.com – Uma das obras mais popularmente difundidas do Papa Emérito é a trilogia “Jesus de Nazaré”. Inclusive, o primeiro dos três livros alcançou a marca de dois milhões de cópias vendidas. A que o senhor atribui esse sucesso, principalmente entre os leigos católicos?
Professor Doutor Rudy Albino: O primeiro mérito do livro, creio, é o fato de que o Papa dedicou parte do seu tempo de governo para apresentar a sua busca pessoal pela verdadeira imagem de Jesus, como eu disse acima; ou seja, dar a conhecer que Jesus está acima de qualquer atividade política, e isso para um Papa é exemplar. O segundo mérito é que ele consegue ser um livro que é fruto de uma pesquisa teológica especializadíssima, erudita, em geral restrita a poucos peritos, mas, ao mesmo tempo, não perde o caráter homilético, litúrgico, quase rabínico, que apresenta a fé cristológica da Igreja às pessoas comuns, àqueles que não dominam a linguagem teológica mais técnica, mas que compartilham da mesma fé que o Papa. Ou seja, o Papa cumpre o mandato divino de confirmar os seus irmãos na fé com a sua trilogia. Por fim, creio que o grande mérito do livro é que ele se deixa “superar”: como uma verdadeira lectio divina, ele conduz o leitor à oração, ao diálogo pessoal e íntimo (comunitário e eclesial também) com Jesus. São, a meu ver, motivos suficientes para dizer que ele é muito mais do que um livro, é um serviço ao crescimento da fé.
noticias.cancaonova.com – A participação de Ratzinger no Concílio Vaticano II e seu conjunto de obras sobre a relação entre a fé e a modernidade são outros destaques da biografia de Bento XVI. Como o Papa Emérito trabalhou em vida as grandes questões da secularização e da modernidade sobre o viés da fé?
Professor Doutor Rudy Albino: Sobre a secularização podemos deixá-lo falar: “A secularização, que se apresenta nas culturas como um delineamento do mundo e da humanidade sem referência à Transcendência, impregna todos os aspectos da vida quotidiana e desenvolve uma mentalidade em que Deus se tornou total ou parcialmente ausente da existência e da consciência do homem. Esta secularização não é apenas uma ameaça externa para os fiéis, mas já se manifesta há muito tempo no seio da própria Igreja. Desnatura a partir de dentro e em profundidade a fé cristã e, por conseguinte, o estilo de vida e o comportamento quotidiano dos fiéis. Eles vivem no mundo e são muitas vezes marcados, se não condicionados, pela cultura da imagem que impõe modelos e impulsos contraditórios, na negação prática de Deus: já não há necessidade de Deus, nem de pensar nele e de voltar para Ele. Além disso, a mentalidade hedonista e consumista predominante favorece, tanto nos fiéis como nos pastores, uma deriva na superficialidade e um egocentrismo que prejudica a vida eclesial” (Discurso aos participantes na Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, 8 de março de 2008).
Quanto à modernidade – caracterizada pela secularização – eu diria que o seu grande problema para Ratzinger é ter cortado a ligação com as suas origens cristãs
Já quanto à modernidade – caracterizada pela secularização – eu diria que o seu grande problema para Ratzinger é ter cortado a ligação com as suas origens cristãs; não há modernidade sem cristianismo e isso vale para uma análise histórica quanto para uma avaliação de hoje. O problema que Ratzinger identifica na modernidade não é a confiança na razão, mas a redução da razão apenas ao que é empírico e verificável. Isso leva à redução do próprio homem.
noticias.cancaonova.com – Atualmente, o senhor está difundindo uma campanha de arrecadação para a publicação do “O Dicionário Joseph Ratzinger” – maior obra do mundo sobre o Papa Emérito. Poderia nos adiantar o que seria esta obra (que soma mais de 800 páginas, 102 verbetes e 72 autores de 10 países)?
Professor Doutor Rudy Albino: Uma obra coletiva com 100 artigos explicando os principais conceitos da obra de Ratzinger: Apostolicidade, Arte, Agostinho de Hipona, Boaventura de Bagnoregio, Dogma, Igreja, Jesus Cristo etc. Será a maior e mais sistemática obra sobre Ratzinger, um esforço coletivo que levou 4 anos e que congregou 72 autores de 10 países, como você mencionou. Bento XVI fez a gentileza de escrever-me uma carta-prólogo, ainda inédita, na qual ele elogia a iniciativa e diz outras coisas muito belas com profunda sensibilidade teológica.
Bento XVI fez a gentileza de escrever-me uma carta-prólogo, ainda inédita, na qual ele elogia a iniciativa e diz outras coisas muito belas com profunda sensibilidade teológica.
O Dicionário será publicado inicialmente em inglês, espanhol, alemão e, espero, em português. Assim o interessado no pensamento de Bento XVI terá, numa só obra, as informações principais e imprescindíveis para conhecer o pensamento do Papa e do teólogo alemão.
noticias.cancaonova.com – Na sua opinião, como Bento XVI enfrentou as grandes turbulências em seu papado, e que lições podemos aprender com ele diante dos desafios e dificuldades?
Professor Doutor Rudy Albino: Ele enfrentou uma miríade de crises: a retirada da excomunhão dos bispos lefebvrianos, que foi misturada com declarações estapafúrdias do bispo Richard Williamson, mas que nos ensinou que o Papa deve buscar um “ecumenismo intracatólico”, ou seja, deve fazer todo o esforço para manter a unidade na diversidade da Igreja, sendo assim fiel ao que preconiza o Vaticano II; os escândalos dos abusos perpetrados por clérigo contra menores, mas Bento XVI tomou sobre si a responsabilidade de purificar a Igreja de toda sujeira, endurecendo a legislação canônica e penal e chamando a Igreja a uma conversão real; o vazamento de documentos por conta da atuação de pessoas próximas do Papa (seu mordomo, por exemplo), mas que ensinou que a estrutura da Igreja precisa trabalhar com transparência cada vez maior. Houve um bom número de outras crises, mas um papa não é um soberano que fica acima da vida comum, mas tem que sujar as mãos no trabalho pesado de conduzir uma Igreja santa por sua origem divina, mas constituída por homens e mulheres que nem sempre correspondem ao Evangelho.