O movimento em favor da Ficha Limpa começou como tantos outros, munido de grande força mas com poucas esperanças. A força vem não apenas das mais de 40 entidades de prestígio que o coordenam, mas sobretudo de uma indignação generalizada contra a mais generalizada ainda corrupção em todos os setores. As poucas esperanças são o resultado de uma consciência de ter pela frente um significativo grupo de políticos matreiros, que sempre encontram uma saída que lhes seja favorável.
O fato é que o Projeto de Lei, mesmo com algumas resistências e acertos foi aprovado pela Câmara e posteriormente unanimente ratificado pelo Senado Federal. Acontece que, por ingenuidade ou mais certamente com calculada astúcia, ficou aberta ao menos uma pequena, mas significativa fresta. Poderíamos até pensar no Cavalo de Tróia. Por ironia, o cavalo, que no seu bojo esconde astutas raposas vem encilhado com uma simples manta gramatical. A simples substituição do passado pelo futuro de um verbo faz a diferença: "tenha sido condenado" é substituído por "forem condenados".
Por ali já se vê quão importante é a questão gramatical. Talvez convenha lembrar aqui um antigo macete utilizado pelas pitonisas gregas. Ao perguntar sobre suas possibilidades de vitória, um ilustre personagem recebia sempre uma resposta ambígua: "irás, voltarás, nunca perecerás na guerra"; ou então: "irás, voltarás…. nunca….. (pois) perecerás na guerra". Infelizmente são muitas vezes firulas jurídicas que determinam a inocência de culpados ou a culpa de inocentes.
Embora, no momento em que são escritas estas considerações, pairem no ar ao menos duas dúvidas, sobre o aval ou não do Presidente da República e sobre a aplicabilidade ou não da lei para as próximas eleições de outubro, convém fazer ao menos duas considerações que valerão em qualquer circunstância.
A primeira se resume: a não ser pessoas desesperadas, ninguém coloca a corda no seu próprio pescoço para ser enforcado. Ou seja, os muitos parlamentares que ou foram condenados ou estão em vias de sê-lo, se protegeram de duas maneiras ao mesmo tempo: tentando postergar a aplicação da lei, e deixando uma porta secreta aberta para uma eventual fuga.
Há, contudo, uma segunda consideração que deve ser feita no contexto dos muitos debates sobre "ficha suja" e "ficha limpa". Essa consideração é altamente positiva, pois mostra não ser verdade que o povo está dormindo e que aceita qualquer coisa. Paralelamente à questão ficha suja X ficha limpa outra proposta ocasionou grandes debates: a do denominado III Programa de Direitos Humanos (PNDH-3). Acobertadas por Direitos já há muito reconhecidos e sempre de novo proclamados como inalienáveis, várias propostas simplesmente inaceitáveis eram apresentadas como sendo um “avanço social”. A pressão exigindo a retirada destas propostas mostrou que a força do bom senso ainda é invencível.
A conclusão que se pode tirar destes dois momentos importantes de nossa história recente é muito animadora. Apesar das eventuais aparências de passividade, ninguém mais está disposto a aceitar imposições arbitrárias, e muito menos a deixar que, em nome de pretensos direitos, se roubem verdadeiros direitos tais como o direito à vida, o direito à liberdade de expressão, o direito ao uso do que se ganhou com o suor do rosto, o direito de ver respeitadas as convicções religiosas com seus respectivos símbolos, e assim por diante.
No mais, ainda que a sociedade talvez não tenha ainda alcançado o que desejava em termos de combate à corrupção e ao exercício do poder como missão provisoriamente confiada a pessoas presumivelmente competentes e dedicadas à nação, foram significativos os avanços nestes últimos tempos.
O povo está redescobrindo sua força e tomando consciência de que quem é eleito não passa de um simples representante a ser respeitado enquanto agir de acordo com a missão que lhe foi confiada. Ficha suja, ou ficha limpa? Difícil de responder, mas uma coisa é certa: todos, eleitores e eleitos, passarão a agir com mais prudência. E isto já é um ganho.
Frei Antônio Moser é Diretor Presidente da Editora Vozes, professor de Teologia Moral e Bioética no Instituto Teológico Franciscano (ITF) em Petrópolis (RJ), membro do Conselho Administrativo da Diocese de Petrópolis, Pároco da Igreja de Santa Clara, membro da Comissão de Bioética da CNBB, Coordenador do Comitê de Pesquisa em Ética da Universidade Católica de Petrópolis (UCP), além de conferencista no Brasil e no exterior. Escreveu 25 livros e inúmeros artigos científicos para revistas nacionais e internacionais. Além disso, desenvolve intensa atividade pastoral, sendo um dos grandes especialistas brasileiros em Pastoral Familiar e Bioética.
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