A virada do século e do milênio foi marcada por grandes expectativas em todos os campos. Mas nenhum outro campo esteve tão em evidência quanto os da biogenética e das biotecnologias. Um acúmulo inusitado de conhecimentos conjugado com tecnologias cada vez mais sofisticadas, estão permitindo aos seres humanos mergulhar nos mistérios mais secretos da vida. E estes mergulhos, tão carregados de esperanças e de questões inusitadas de cunho ético, naturalmente geram muitas polêmicas.
Diante do sensacionalismo com o qual são anunciadas as sempre novas descobertas, e sobretudo diante da crescente ilusão de que biogenética e biotecnologia resolveriam quase todos os problemas humanos, convém fazermos algumas ponderações movidas pela sinceridade e pela serenidade.
A primeira ponderação diz respeito ao que realmente é "novo"; a segunda aponta para a grande virada em termos de células tronco embrionárias e adultas (maduras); a terceira diz respeito ao como a Igreja se coloca diante destas questões todas.
Os mistérios que rondam a transmissão da vida, nas suas múltiplas formas, sempre fascinaram os seres humanos. Como entender a semelhança e a originalidade de cada ser dentro de cada espécie e como entender que existam milhões de espécies de seres diferentes, compondo uma espécie de fascinante caleidoscópio, com infinitas formas, tamanhos e cores? E sobretudo a pergunta sobre a transmissão da vida entre os seres humanos, já preocupava os primeiros filósofos gregos e percorreu toda a história da filosofia e da teologia.
Uma frase de Montaigne (1570) é muito significativa neste contexto: "Que coisa maravilhosa esta gota de semente da qual somos produzidos e que carrega consigo as impressões não apenas da forma do corpo, mas também dos pensamentos e das tendências dos nossos pais". A "novidade" portanto, não se encontra na descoberta do poder extraordinário das "sementes" masculinas ou femininas. A "novidade" consiste em os seres humanos, há mais ou menos um século atrás, terem acelerado suas buscas para penetrar até os últimos redutos não apenas das sementes da vida, como também do material genético, hoje denominado DNA.
Encontraram e continuam descobrindo coisas extraordinárias, e, uma vez de posse destes conhecimentos, passam a comandar estes mecanismos, outrora entregues ao automatismo das forças naturais. Foi assim que surgiram os laboratórios de reprodução assistida, com a possibilidade de inseminação e fecundação artificial (bêbê de proveta), partenogênese (animação do óvulo sem o encontro com o espermatozóide) e clonagem. A "novidade" encontra-se portanto na descoberta do que já existia, mas sem ser conhecido com a riqueza de detalhes de hoje e no comando dos processos reprodutivos.
A Segunda grande virada em termos de biogenética e de biotecnologias, aponta novo para as denominadas "células tronco". Há muito se sabe que os seres vivos são compostos por células, e que na espécie humana o número destas células se elevaria a uma centena de trilhões. Também há muito se sabia que cada célula contém elementos periféricos e um núcleo, onde se encontram 23 pares de cromossomos, que por sua vez remetem para cerca de 20 mil genes. Ademais, as células são todas interligadas e são sustentadas por cerca de 6 bilhões de elementos químicos denominados de bases.
Finalmente, também se sabe que as células dos inúmeros seres vivos, de uma forma ou de outra podem se conectar e trocar informações. Tudo isto é maravilhoso e misterioso ao mesmo tempo. Nos últimos decênios passou-se a falar sempre mais sobre o poder terapêutico das células tronco. Aqui no Brasil as polêmicas se acentuaram desde que a denominada Lei de Biossegurança, juntamente com os transgênicos, liberou também células tronco embrionárias para pesquisas visando a eventual cura de algumas doenças de cunho genético.
Em meio aos debates acesos ia ficando cada vez mais claro que o problema não consistia, nem consiste, em trabalharmos com células. O problema consiste no fato de a utilização das células embrionárias implicarem na morte, ou ao menos na lesão dos embriões. Mesmo assim, grupos de pesquisadores "laicos", movidos por uma incredulidade paradoxal passaram a atribuir estranhos e miraculosos poderes às células embrionárias, descartando as denominadas células maduras ou adultas. Estas últimas se encontram no cordão umbilical, na medula óssea, e de alguma forma estão espalhadas por todo o corpo.
E aqui entra o terceiro elemento que deve ser levado em consideração: a posição da Igreja católica frente a tudo isto. Em poucas palavras, as relativamente muitas tomadas de posição acentuam sempre os mesmos aspectos: Devemos nos alegrar com todas as conquistas que possibilitem os seres humanos levarem uma vida sempre mais digna e mais aberta à comunhão entre si, com todas as criaturas e com o Criador; a transmissão da vida humana deve ser expressão do amor concreto do casal, que vive em comunhão profunda e comprometida de vida; a vida humana deve ser respeitada desde a fecundação até a morte; é preciso, a todo custo, fugir de qualquer tipo de eugenia; a Igreja incentiva pesquisas com células adultas, desde que efetuadas dentro dos convencionais princípios éticos há muito conhecidos.
E aqui vem a razão do impacto das notícias referentes à possibilidade, ainda que bem hipotética, de reprogramar células adultas de tal forma que elas possam exercer uma função terapêutica, no sentido de ajudar na cura de certas doenças e na recuperação de tecidos e órgãos lesados. Ou seja: ainda que seja prematuro afirmar que isto venha ocorrer de fato, algumas coisas ficaram evidenciadas nestes últimos dias.
Primeira: como a mais tradicional genética já afirmava, e a Igreja com ela, embriões são seres humanos em gestação e suas células são propulsoras, para a configuração dos corpos.
Segunda: usar células embrionárias significa sacrificar ou lesar o embrião e ignorar que ele já é detentor de um código genético único, original, e irrepetível; por isto mesmo, se injetado numa pessoa, será sempre um corpo estranho, com tudo o que isto significa em termos de rejeição e riscos para a saúde do receptor.
Terceiro: as verdadeiras esperanças terapêuticas, se colocam nas células adultas ou maduras, que têm justamente como função primordial regenerar tecidos e órgãos.
O que dizer como conclusão de tudo isto? Lá no fundo a luta que se trava hoje tem como raiz última uma filosofia de vida. Para uns a vida em suas miríades de manifestações, não passaria de fortúitos arranjos químicos, e que, portanto, poderiam ser alterados à vontade por quem sabe e por quem pensa saber. Para outros, porém, cientistas e não cientístas, a biogenética e suas misteriosas combinações, apontam para um grande mistério que dá origem a todos os outros mistérios.
As últimas descobertas, nos asseguram uma vez mais que Deus fez bem todas as coisas, e que nós seres humanos não somos criadores, mas apenas administradores. Claro que não vem ao caso recordar um célebre livro sobre descobertas arqueológicas: "E a Bíblia tinha razão". Mas certamente convém agora escrever outro livro com o título: "não existe razão sem sabedoria de vida" e só existe sabedoria de vida na medida em que ciência e tecnologia se conjugarem com reverência diante do mistério insondável que somos nós e dos mistérios que nos cercam.
Frei Antônio Moser é Diretor Presidente da Editora Vozes, professor de Teologia Moral e Bioética no Instituto Teológico Franciscano (ITF) em Petrópolis – RJ, membro do Conselho Administrativo da Diocese de Petrópolis, Pároco da Igreja de Santa Clara, membro da Comissão de Bioética da CNBB, Presidente da Comissão de Bioética da Universidade Católica de Petrópolis – UCP, além de conferencista no Brasil e no exterior. Escreveu 25 livros e inúmeros artigos científicos para revistas nacionais e internacionais. Além disso, desenvolve intensa atividade pastoral, sendo um dos grandes especialistas brasileiros em Pastoral Familiar e Bioética.
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