Jornal “Scarp de’ tenis” é um periódico italiano editado pela Cáritas
Da redação, com Rádio Vaticano
O Papa Francisco concedeu uma entrevista ao jornal “Scarp de’ tenis”, periódico italiano fundado em 1994 atualmente conhecido por ser uma “jornal de rua” sem fins lucrativos editado pela Cáritas italiana.
Os redatores são sem-teto e outras pessoas em dificuldades ou excluídas socialmente que encontram no jornal uma ocupação e uma complementação de renda.
A Rádio Vaticano publicou a íntegra da matéria feita com o Papa:
Santo Padre, falamos do povo invisível, dos sem-teto. Algumas semanas atrás, com o início do inverno e com a chegada de uma grande frente fria, o senhor disse que era para que fossem abrigados no Vaticano, que se abrissem as portas da igrejas. Como foi recebido este seu apelo?
O apelo do Papa foi ouvido por muitas pessoas e muitas paróquias. Tantos escutaram. No Vaticano existem duas paróquias e cada uma delas abrigou uma família da síria. Muitas paróquias de Roma abriram as portas em acolhida, e sei que outras, sem lugares disponíveis, fizeram uma coleta para pagar o aluguel a pessoas e famílias necessitadas por um ano inteiro. O objetivo a ser alcançado deve ser aquele da integração, por isso é importante acompanhar-lhes por um período inicial. Em muitas regiões da Itália foi feito muito. Portas foram abertas em muitas escolas católicas, nos conventos, em tantas outras estruturas. Por isso digo que o apelo foi ouvido. Sei ainda de muitas pessoas que ofertaram dinheiro para que se possa pagar o aluguel aos sem-teto.
No passado o mundo inteiro falou sobre os sapatos do Papa, sapatos de trabalhador para caminhar e recentemente a mídia ficou surpresa, e contou sobre o Papa que foi até uma loja comprar novos sapatos. Porque tanta atenção? Talvez porque hoje seja difícil colocar-se – como convida Scarp de’ tenis – nos sapatos dos outros?
É muito difícil colocar-se “nos sapatos dos outros”, porque com frequencia somos escravos do nosso egoísmo. Em um primeiro nível, podemos dizer que as pessoas preferem pensar aos próprios problemas sem querer ver o sofrimento e as dificuldades dos outros. Depois, há um outro nível: colocar-se “nos sapatos dos outros” significa ter grande capacidade de compreensão, de entender o momento e as situações difíceis. Por exemplo: no momento de luto fazem-se as condolências, participa-se do velório ou da missa, mas são realmente poucos os que “se colocam nos sapatos” daquele viúvo ou daquela viúva ou daquele órfão. Certamente, não é fácil. Prova-se dor, mas tudo termina ali. Se pensamos então às existências que com frequencia são marcadas pela solidão, então colocar-se “nos sapatos dos outros” significa serviço, humildade, magnanimidade, que é também o sinal de uma necessidade. Eu preciso que além coloque-se “nos meus sapatos”. Porque todos nós precisamos de compreensão, de companhia e de alguns conselhos. Quantas vezes encontrei pessoas que, depois de ter procurado conforto em um cristão, seja esse leigo, um padre, uma freira, um bispo, me disse: “Sim, me ouviu mas não me entendeu”. Entender significa “colocar-se nos sapatos dos outros”. E não é fácil. Com frequência para suprimir essa falta de grandeza, de riqueza e de humanidade, perde-se nas palavras. Fala-se. Aconselha-se. Mas quando existem somente as palavras ou muitas palavras não há esta grandeza de “colocar-se nos sapatos dos outros”.
Santidade, quando o senhor encontra um sem-teto qual é a primeira coisa que lhe diz?
«Bom dia». «Como vai?». Algumas vezes trocamos poucas palavras, outras vezes se cria uma relação e se ouvem histórias interessantes: «Estudei num colégio onde havia um padre muito bom…». Alguém poderia dizer: O que me interessa? As pessoas que vivem pelas ruas entendem logo quando existe realmente um interesse da parte da outra pessoa ou quando existe, não um sentimento de compaixão, mas certamente de pena. Podemos olhar para um sem-teto como uma pessoa ou como se fosse um cachorro e eles percebem essa maneira diferente de olhá-los. No Vaticano, é famosa a história de um sem-teto, de origem polonesa, que geralmente ficava na Piazza del Risorgimento a Roma, não falava com ninguém, nem com os voluntários da Caritas que levavam para ele comida. Somente depois de muito temo conseguiram fazer com que ele contasse a sua história a eles: «Sou um sacerdote, conheço bem o seu Papa, estudamos juntos no seminário». O assunto chegou a São João Paulo II que ouvindo o nome confirmou ter estudado com ele no seminário e quis encontrá-lo. Eles se abraçaram depois de quarenta anos e no final de uma audiência o Papa pediu para ser confessado pelo sacerdote que tinha sido seu companheiro. «Agora, porém, cabe a você», disse-lhe o Papa. E o companheiro de seminário foi confessado pelo Papa. Graças ao gesto de um voluntário, de uma comida quente, algumas palavras de conforto e um olhar de bondade, essa pessoa pode se reerguer e começar uma vida normal que o levou a se tornar um capelão de um hospital. O Papa o ajudou. Certamente, este é um milagre, mas é também um exemplo para dizer que os sem-teto têm uma grande dignidade. No adro do Arcebispado de Buenos Aires, debaixo de uma marquise, morava uma família e um casal. Eu os encontrava todas as manhãs quando saia. Os saudava e conversava um pouco com eles. Nunca pensei em expulsá-los dali. Mas alguém me dizia: «Eles sujam a Cúria», mas a sujeira está dentro. Penso que é preciso falar com as pessoas com grande humildade, não como se tivessem que nos pagar uma dívida e não tratá-las como se fossem cães.
Muitos se perguntam se é justo dar esmola às pessoas que pedem ajuda nas ruas. O que o senhor responde?
Existem muitos argumentos para se justificar quando não se dá esmola. «Mas como! Eu dou dinheiro e depois ele gasta para beber um copo de vinho?». Um copo de vinho é a única felicidade que ele tem na vida. Está bom assim. Pergunte-se o que você faz escondido? Qual felicidade você procura esconder? Ao contrário dele, você é mais sortudo, tem uma casa, uma esposa e filhos. O que leva você a dizer: «Cuidem vocês dele». Uma ajuda é sempre justa. Certo, não é uma coisa boa dar aos pobres somente uns trocados. É importante o gesto, ajudar quem pede e olhá-lo nos olhos, tocar suas mãos. Lançar o dinheiro e não olhar nos olhos, não é um gesto cristão. Como educar à esmola? Conto a história de uma senhora que conheci em Buenos Aires, mãe de cinco filhos (naquela época havia três). O pai estava no trabalho e ela e as crianças almoçando em casa. Sentem bater à porta. O maior vai abrir: «Mãe tem um homem que pede comida. O que fazemos?». Todos os três, a menor tinha quatro anos, estavam comendo um bife à milanesa. A mãe lhes disse: «Bem, cortamos a metade do bife». «Não mamãe, tem outro bife» disse a menina. «É para o papai, para hoje à noite. Se queremos doar, devemos dar a nossa parte». Com poucas palavras simples aprenderam que é preciso doar aquilo que a gente tanto quer. Duas semanas depois, a mesma senhora foi à cidade para resolver algumas questões e foi obrigada a deixar as crianças em casa. Tinham tarefa para fazer e deixou-lhes a merenda pronta. Quando voltou, encontrou os três na companhia do sem-teto à mesa que estava merendando. Aprenderam bem e rápido. Certamente, faltou-lhes um pouco de prudência. Educar para a caridade não é descarregar as próprias culpas, mas é tocar, olhar para uma miséria que tenho dentro e que o Senhor entende e salva, pois todos nós temos misérias dentro.
Outra pergunta dirigida a Francisco foi quando à acolhida aos migrantes: “Muitos se perguntam se realmente seja necessário acolher todos ou se não seja necessário impor limites.”
“Os que chegam à Europa escapam da guerra ou da fome”, disse o Papa. “E nós somos de alguma maneira culpados porque exploramos suas terras, mas não fazemos nenhum tipo de investimento para que eles possam ter benefícios. Têm o direito a emigrar e têm o direito a serem acolhidos e ajudados. Isso, porém, deve ser feito com aquela virtude cristã que é a virtude que deveria ser própria dos governantes, isto é, a prudência. Que significa? Significa acolher todos aqueles que ‘podem’ ser acolhidos. E isso no que diz respeito aos números. Mas também é importante uma reflexão sobre “como” acolher. Porque acolher significa integrar. Esta é a coisa mais difícil se os migrantes não se integram, são guetizados. Lembro-me sempre do episódio de Zaventem (o atentado ao aeroporto de Bruxelas de 22 de março de 2016, ndr); aqueles jovens eram belgas, filhos de migrantes, mas moravam num bairro que era um gueto. E que significa integrar? Também neste caso faço um exemplo: de Lesbos vieram comigo à Itália 13 pessoas. No segundo dia de permanência, graças à comunidade de Santo Egídio, as crianças já frequentavam a escola. Depois, em pouco tempo, encontraram onde alojar, os adultos se mexeram para frequentar cursos para aprender a língua italiana e para procurar um trabalho. Certamente para as crianças é mais fácil: vão à escola e em poucos meses já sabem falar o italiano melhor do que eu. Os homens buscaram um emprego e conseguiram. Integrar então significa entrar na vida do país, respeitar a lei do país, respeitar a cultura do país, mas também fazer respeitar a própria cultura e as próprias riquezas culturais. A integração é um trabalho muito difícil. No período da ditadura militar em Buenos Aires olhávamos para a Suécia como um exemplo positivo. Os suecos são hoje nove milhões, mas destes, 890 mil são novos suecos, isto é, migrantes ou filhos de migrantes integrados. A Ministra da Cultura, Alice Bah Kuhnke, é filha de uma mulher sueca e de um homem proveniente da Gâmbia. Este é um belo exemplo de integração. Certamente, agora na Suécia estão em dificuldade: eles têm muitos pedidos e estão tentando entender o que fazer porque não tem lugar para todo mundo. Receber, acolher, consolar e integrar imediatamente. O que falta é justamente a integração. Cada país, então, deve ver qual número é capaz de acolher. Não se pode acolher se não há possibilidade de integração.”
Na história de sua família há a travessia do Oceano por parte de seu avô e de sua avó, com seu pai. Como é crescer como filho de migrantes? Já se sentiu um pouco desarraigado?
“Nunca me senti desarraigado. Na Argentina, somos todos migrantes. Por isso ali o diálogo inter-religioso é a norma. Na escola havia judeus que chegavam na maior parte da Rússia e muçulmanos sírios e libaneses, ou turcos com o passaporte do Império otomano. Havia muita fraternidade. No país, há um número limitado de indígenas, a maior parte da população é de origem italiana, espanhola, polonesa, médio-oriental, russa, alemã, croata, eslovena. Nos anos entre os dois séculos precedentes o fenômeno migratório foi de enorme alcance. Meu pai tinha 20 anos quando chegou à Argentina e trabalhava no Banco da Itália, e se casou ali.”
O que mais sente falta de Buenos Aires? Dos amigos, das visitas às “Villa miséria”, o futebol?
“Há apenas uma coisa que me falta muito: a possibilidade de sair e caminhar pelas ruas. Eu gosto de visitar às paróquias e encontrar as pessoas. Eu não tenho nenhuma saudade em particular. Eu conto para vocês outra anedota: os meus avós e meu pai poderiam ter partido no final de 1928, eles tinham as passagens para o navio “Princesa Mafalda”, o navio que afundou nas costas do Brasil. Mas eles não conseguiram vender em tempo o que possuíam e por isso mudaram a passagem e embarcaram no “Giulio Cesare”, no dia 1º de fevereiro de 1929. Por isso, eu estou aqui”.
Milão está pronta para receber o senhor no final do mês de março. Começamos pelas organizações de beneficência, associações de voluntários, daqueles que se preocupam em dar aos sem-teto um lugar onde passar a noite, alimentação, cuidados de saúde, oportunidades de se reerguerem. Em Milão, orgulhamo-nos de ser capazes de fazer isso e muito bem. É suficiente? Quais são as necessidades daqueles que acabaram nas ruas?
“Como também para os migrantes muito simplesmente essas pessoas precisam da mesma coisa: ou seja, integração. Certamente não é fácil integrar uma pessoa que não possui uma casa, porque cada uma delas tem uma história particular. Por isso, temos de nos aproximar de cada um delas, encontrar maneiras de ajudá-las e dar-lhes uma mão”.
O senhor sempre diz que os pobres podem mudar o mundo. Mas é difícil existir solidariedade onde há pobreza e miséria, como nas periferias das cidades. O que o senhor acha?
“Também aqui trago a minha experiência de Buenos Aires. Nas favelas, há mais solidariedade do que nos bairros centrais. Nas vilas miséria há muitos problemas, mas muitas vezes os pobres são mais solidários entre eles, porque sentem que eles precisam um do outro. Eu encontrei mais egoísmo em outros bairros, não quero dizer ricos, porque seria qualificar desqualificando, mas a solidariedade que vemos nos bairros pobres e nas favelas não se vê em outros lugares, embora a vida ali seja mais complicada e difícil. Nas favelas, por exemplo, a droga se vê mais, mas só porque em outros bairros é mais “escondida” e se usa com luvas brancas”.
Recentemente, procuramos ler a cidade de Milão de uma forma diferente, a partir dos últimos e da rua, e com os olhos das pessoas que moram nas ruas, que frequentam um centro diurno da Caritas Ambrosiana. Com elas, publicamos um guia da cidade, vista a partir da rua, do ponto de vista de quem a vive todos os dias. Santo Padre o que o senhor conhece da nossa cidade e o que espera da sua iminente visita?
“Eu não conheço Milão. Estive lá apenas uma vez, por algumas horas, nos anos setenta. Eu tinha algumas horas livres antes de pegar um trem para Turim e eu aproveitei a oportunidade para uma breve visita à Catedral. Em outra ocasião, com a minha família, eu almocei, num domingo, na casa de uma prima que morava em Cassina de ‘Pecchi. Milão não a conheço, mas eu tenho um grande desejo. Eu espero poder encontrar muita gente. Esta é a minha maior expectativa: sim, eu espero encontrar muita gente”.