XIII Domingo do Tempo Comum (C)
I Reis 19, 16b.19-21; Gálatas 4, 31 – 5, 1, 13-18; Lucas 9, 51-62
«Deixa que os mortos enterrem seus mortos»
Em abril passado, foi publicado o livro de Bento XVI «Jesus de Nazaré». Pensei em comentar alguns dos próximos evangelhos dominicais levando em conta reflexões do Papa. Antes de tudo, alguma menção sobre o conteúdo e o objetivo do livro. Este se ocupa de Jesus no período que vai desde o batismo no rio Jordão até o momento da transfiguração, isto é, desde o início de seu ministério público até seu epílogo. Um volume sucessivo, se Deus — confia o Papa — lhe der forças e tempo suficiente para escrevê-lo, se ocupará dos relatos da morte e ressurreição, assim como das narrações da infância, que ficaram fora deste primeiro volume.
O livro pressupõe a exegese histórico-crítica e se serve de seus resultados, mas quer ir além desse método, contemplando uma interpretação propriamente teológica, isto é, global, não setorial, que leve a sério o testemunho dos evangelhos e das Escrituras, como livros inspirados por Deus.
O objetivo do livro é mostrar que a figura de Jesus que se alcança por tal via «é muito mais lógica e, desde o ponto de vista histórico, também mais compreensível que as reconstruções com que tivemos de enfrentar nas últimas décadas. Sustento — acrescenta o Papa — que precisamente este Jesus — o dos Evangelhos — é uma figura historicamente sensata e convincente».
É muito significativo que a opção do Papa de ater-se ao Jesus dos Evangelhos encontre uma confirmação nas orientações mais recentes e autorizadas da própria crítica histórica, como na obra monumental do escocês James Dunn («Christianity in the Making»), segundo o qual «os evangelhos sinóticos testificam um modelo e uma técnica de transmissão oral que garantiram uma estabilidade e uma continuidade na tradição de Jesus maiores que as que, desde aí, se imaginaram geralmente».
Mas passemos à passagem evangélica do XIII domingo do Tempo Comum. Refere-se a três encontros de Cristo ao longo curso da mesma viagem. Concentremo-nos em um destes encontros: «A outro [Jesus] disse: ‘Segue-me’. Ele respondeu: ‘Deixa-me ir primeiro enterrar meu pai’. Respondeu-lhe: ‘Deixa que os mortos enterrem seus mortos; tu, vai anunciar o Reino de Deus’».
O Papa, em seu livro, comenta o tema aqui implícito das relações de parentesco em diálogo com o rabino americano Jacob Neusner. Neusner escreveu um livro («A Rabbi Talks with Jesus») no qual se imagina entre os presentes quando Jesus falava à multidão, e explica por que, apesar de sua grande admiração pelo Mestre de Nazaré, não teria podido ser seu discípulo. Um dos motivos é precisamente a postura de Jesus com relação aos vínculos familiares. Em várias ocasiões, afirma o rabino, Ele parece convidar a transgredir o Quarto Mandamento — que diz: «Honrarás teu pai e tua mãe». Pede, como ouvimos, renunciar a ir sepultar o próprio pai e em outro lugar diz que quem ama o pai ou a mãe mais que Ele, não é digno d’Ele.
A estas objeções se responde de costume apontando outras palavras de Jesus que afirmam com força a permanente validez dos vínculos familiares: a indissolubilidade do matrimônio, o dever de assistir o pai e a mãe. O Papa, no entanto, em seu livro, dá uma resposta mais profunda e iluminadora a esta objeção que não é só do rabino Neusner, mas também de muitos leitores cristãos do Evangelho. Ele parte de uma palavra de Jesus. A quem lhe anunciava a visita de seus parentes, Ele respondeu um dia: «Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?… Todo o que cumpre a vontade de meu Pai celestial, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Mt 12, 49-50).
Jesus não derroga com isso a família natural, mas revela uma nova família na qual Deus é pai e os homens e as mulheres são todos irmãos e irmãs, graças à comum fé n’Ele, o Cristo. Tinha direito de fazer isso?, pergunta o rabino Neusner. Esta família espiritual já existia: era o povo de Israel unido pela observância da Torá, ou seja, da Lei mosaica. Só para estudar a Torá se permitia a um filho deixar a casa paterna. Mas Jesus não diz: «Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a Torá, não é digno da Torá». Diz: «Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim, não é digno de mim». Põe a si mesmo no lugar da Torá, e isso pode ser feito só por quem é superior à Torá e superior a Moisés, que a promulgou.
O rabino judeu tem razão, segundo Bento XVI, ao concluir: «Só Deus pode exigir de mim o que Jesus pede». A discussão sobre Jesus e os vínculos de parentesco (como aquela sobre Jesus e a observância do sábado) nos leva assim, observa o Papa, ao verdadeiro núcleo da questão, que é saber quem é Jesus. Se um cristão não crê que Jesus atua com a própria autoridade de Deus e que Ele mesmo é Deus, então há mais coerência na postura do rabino judeu que rejeita segui-lo. Não se pode aceitar o ensinamento de Jesus se não se aceita também sua pessoa.
Tiremos também um ensinamento prático do debate. A «Família de Deus», que é a Igreja, não só não está contra a família natural, mas é sua garantia e promotora. Nós o vemos hoje. É uma pena que algumas divergências de opiniões no seio da sociedade atual sobre questões ligadas ao matrimônio e à família impeça muitos de reconhecer a obra providencial da Igreja a favor da família, e que a deixem freqüentemente sozinha nesta batalha decisiva para o futuro da humanidade.