O Frei destaca que dos vários problemas da sociedade, o mais atual e problemático é o do matrimônio e família
Rádio Vaticano
O Pregador da Casa Pontifícia Frei Raniero Cantalamessa, fez sua quarta meditação na manhã desta sexta-feira, 11, na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano. Cantalemessa fez uma reflexão espiritual sobre a família na “Gaudium et Spes” e na atualidade.
Segundo ele, dos vários problemas da sociedade abordados neste texto conciliar, cultura, economia, justiça social e paz, o mais atual e problemático é o do matrimônio e família. O frade capuchinho seguiu o mesmo método da Constituição pastoral, isto é, primeiramente destacando as conquistas positivas do mundo moderno (“as alegrias e as esperanças”), e, em segundo lugar, os problemas e os perigos (“as tristeza e as angústias”).
O pregador da Casa Pontifícia levou em consideração em sua análise as mudanças dramáticas que ocorreram neste campo ao longo do meio século transcorrido desde então, abstendo-se porém de tocar alguns problemas particulares discutidos no Sínodo dos bispos, sobre os quais só o Papa tem o direito de dizer alguma palavra.
Frei Cantalamessa evocou o desígnio de Deus sobre matrimônio e família, “porque é sempre dele que os fiéis devem partir” para, em seguida ver o que a revelação bíblica pode trazer para a solução dos problemas atuais.
Íntegra da meditação
MATRIMÔNIO E FAMÍLIA na “Gaudium et Spes” e na atualidade
Dedico esta meditação a uma reflexão espiritual sobre a Gaudium et Spes, constituição pastoral sobre a Igreja no mundo. Dos vários problemas da sociedade abordados neste texto conciliar – cultura, economia, justiça social, paz –, o mais atual e problemático é o do matrimônio e família. A ele a Igreja dedicou os dois últimos sínodos dos bispos. A maioria de nós aqui presentes não vive diretamente esse estado de vida, mas todos temos de conhecer os seus problemas para compreender e ajudar a grande maioria do povo de Deus que vive no matrimônio, especialmente agora que ele está no centro de ataques e ameaças de todas as partes.
A Gaudium et Spes trata a fundo da família no início da segunda parte (núm. 46-53). Não há necessidade de citar as suas declarações, que refletem a doutrina católica tradicional que todos nós conhecemos, além do novo destaque dado ao amor mútuo entre os cônjuges, abertamente reconhecido como um bem do matrimônio, também este primário, junto com a procriação.
Sobre o matrimônio e a família, a Gaudium et Spes, de acordo com o seu bem conhecido procedimento, destaca antes de tudo as conquistas positivas do mundo moderno (“as alegrias e as esperanças”), e, em segundo lugar, os problemas e os perigos (“as tristeza e as angústias”). Eu proponho seguir o mesmo método, tendo em conta, no entanto, as mudanças dramáticas que ocorreram neste campo ao longo do meio século transcorrido desde então. Evocarei rapidamente o desígnio de Deus sobre matrimônio e família, porque é sempre dele que nós, crentes, devemos partir, para em seguida ver o que a revelação bíblica pode trazer para a solução dos problemas atuais. Deliberadamente me abstenho de tocar alguns problemas particulares discutidos no sínodo dos bispos, sobre os quais só o Papa tem agora o direito de ainda dizer alguma palavra.
1. Matrimônio e família no projeto divino e no Evangelho de Cristo
O livro do Gênesis tem dois relatos diferentes da criação do primeiro casal humano, que remontam a duas tradições diferentes: a javista (século X a.C.) e a mais recente (século VI a.C.), chamada de “sacerdotal”. Na tradição sacerdotal (Gênesis 1, 26-28), o homem e a mulher são criados simultaneamente, não um do outro; há uma relação entre ser homem e mulher e ser à imagem de Deus: “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. O fim primário da união entre o homem e a mulher é visto no serem fecundos e encherem a terra.
Na tradição javista, que é a mais antigo (Gn 2, 18-25), a mulher vem do homem; a criação dos dois sexos é vista como um remédio para a solidão (“Não é bom que o homem esteja só; vou lhe dar uma ajuda que lhe seja semelhante”); mais que o fator da procriação, acentua-se o fator unitivo (“o homem se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”); cada um é livre diante da própria sexualidade e da sexualidade do outro: “ambos estavam nus, o homem e sua mulher, mas não se envergonhavam”.
A explicação mais convincente do porquê desta “invenção” divina da distinção dos sexos eu encontrei não num exegeta, mas em um poeta, Paul Claudel:
“O homem é um ser orgulhoso; não havia outra maneira de fazê-lo compreender o próximo senão fazê-lo vir da sua carne; não havia outra maneira de fazê-lo entender a dependência e a necessidade se não mediante a lei sobre ele deste ser diferente [a mulher], devida ao simples fato de que esse ser existe”[1].
Abrir-se ao outro sexo é o primeiro passo para se abrir ao outro que é o próximo, até o Outro com letra maiúscula que é Deus. O matrimônio nasce sob o signo da humildade; é reconhecimento de dependência e, portanto, da própria condição de criatura. Enamorar-se de uma mulher ou de um homem é fazer o ato mais radical de humildade. É tornar-se mendicante e dizer ao outro: “Eu não basto para mim mesmo; eu preciso do teu ser”. Se, como pensava Schleiermacher, a essência da religião consiste no “sentimento de dependência” (Abhaengigheitsgefühl) perante Deus, então podemos dizer que a sexualidade humana é a primeira escola da religião.
Até aqui, o projeto de Deus. Não é explicável o resto da própria Bíblia, no entanto, se, junto com o relato da criação, não se leva em conta ainda o da queda, em especial o que é dito à mulher: “Multiplicarei as tuas dores; na dor darás à luz os filhos. Ao teu marido se voltará o teu instinto, mas ele te dominará” (Gn 3,16). O predomínio do homem sobre a mulher faz parte do pecado do homem, não do projeto de Deus; com aquelas palavras, Deus o prenuncia, não o aprova.
A Bíblia é um livro divino-humano não só porque tem como autores Deus e o homem, mas também porque descreve, misturadas entre si, a fidelidade de Deus e a infidelidade do homem. Isto é particularmente evidente quando se compara o projeto de Deus sobre o matrimônio e a família com a sua aplicação prática na história do povo escolhido. Para ficar no livro do Gênesis, o filho de Caim, Lameque, já viola a lei da monogamia tomando duas esposas. Noé, com a sua família, se mostra uma exceção em meio à corrupção geral do seu tempo. Os mesmos patriarcas Abraão e Jacó têm filhos com mais de uma mulher. Moisés autoriza a prática do divórcio; Davi e Salomão mantêm um verdadeiro harém de mulheres.
Mais do que nas transgressões práticas específicas, o afastamento do ideal inicial é visível na concepção de fundo que se tem do matrimônio em Israel. O principal obscurecimento se refere a dois pilares. O primeiro é que o matrimônio, de fim, se torna meio. O Antigo Testamento, como um todo, considera o matrimônio como uma estrutura de autoridade patriarcal, destinada principalmente à perpetuação do clã. Neste sentido, devem ser entendidas as instituições do levirato (Dt 25, 5-10), do concubinato (Gn 16) e da poligamia provisória. O ideal de uma comunhão de vida entre o homem e a mulher, fundada em uma relação pessoal e recíproca, não é esquecido, mas passa a segundo plano em relação ao bem da prole. O segundo grande obscurecimento se refere à condição da mulher: de companheira do homem, dotada de igual dignidade, ela aparece cada vez mais subordinada ao homem e em função do homem.
Um papel importante em manter vivo o projeto inicial de Deus sobre o matrimônio é desempenhado pelos profetas, em especial Oseias, Isaías, Jeremias e o Cântico dos Cânticos. Assumindo a união do homem e da mulher como símbolo da aliança entre Deus e seu povo, eles recolocavam em primeiro plano os valores do amor mútuo, da fidelidade e da indissolubilidade que caracterizam a atitude de Deus para com Israel.
Jesus, que veio “recapitular” a história humana, recapitula também o matrimônio.
“Alguns fariseus se aproximaram então para testá-lo e lhe perguntaram: É lícito a um homem repudiar a sua mulher por qualquer motivo? E ele respondeu: Não lestes que o Criador desde o princípio os fez homem e mulher (Gn 1, 27) e disse: Por esta razão, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne? (Gn 2, 24). Eles não são mais dois, e sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19,3-6).
Os adversários se situam no âmbito estreito da casuística de escola (se é lícito repudiar a mulher por qualquer motivo ou se é preciso um motivo específico e sério). Jesus responde desde o início a partir da raiz do problema. Em sua citação, Jesus se refere aos dois relatos da instituição do matrimônio, toma elementos de um e do outro, mas destaca especialmente o aspecto da comunhão das pessoas.
O que se segue no texto, sobre o problema do divórcio, também vai nessa direção; reafirma a fidelidade e a indissolubilidade do vínculo matrimonial acima do próprio bem da prole, que, no passado, fora usado para justificar poligamia, levirato e divórcio:
“Eles objetaram: Por que então Moisés ordenou dar-lhe carta de repúdio e mandá-la embora? Jesus lhes respondeu: Por causa da dureza do vosso coração Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas no princípio não foi assim. Por isso vos digo que qualquer um que repudia a sua mulher, exceto em caso de concubinato, e se casa com outra comete adultério” (Mt 19, 7-9).
O texto paralelo de Marcos mostra que, mesmo em caso de divórcio, o homem e a mulher se colocam, de acordo com Jesus, em rigoroso pé de igualdade: “Quem repudia a sua mulher e se casa com outra comete adultério contra ela; e se ela repudia o marido e se casa com outro, comete adultério” (Mc 10, 11-12).
Com as palavras “O que Deus uniu, o homem não separe”, Jesus afirma que há uma intervenção direta de Deus em toda união matrimonial. A elevação do matrimônio a “sacramento”, isto é, a sinal de uma ação de Deus, não se alicerça, portanto, unicamente no frágil argumento da presença de Jesus nas bodas de Caná e no texto da carta aos Efésios que fala do matrimônio como de um reflexo da união entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 32); começa, implicitamente, com o Jesus terreno e faz parte da sua religação das coisas com o início. João Paulo II define o matrimônio como o “sacramento mais antigo”[2].
2. O que o ensinamento bíblico nos diz hoje
Esta é, em resumo, a doutrina da Bíblia, mas não podemos deter-nos nela. “A Escritura – dizia São Gregório Magno – cresce com quem a lê” (cum legentibus crescit) [3]; revela novas implicações à medida que novas perguntas são feitas. E, hoje, as novas perguntas, ou provocações, sobre matrimônio e família são muitas.
Estamos diante de uma contestação aparentemente global do projeto bíblico sobre sexualidade, matrimônio e família. Como comportar-se em face deste fenômeno inquietante? O concílio abriu um método novo que é de diálogo, não de confronto com o mundo; um método que não exclui a autocrítica. Devemos, penso eu, aplicar este método também à discussão dos problemas do matrimônio e da família. Aplicar este método de diálogo significa tentar ver se, mesmo no fundo das contestações mais radicais, não há uma instância positiva a ser acolhida.
A crítica ao modelo tradicional de matrimônio e família que levou às hodiernas e inaceitáveis propostas de desconstrucionismo começou com o iluminismo e o romantismo. Com intenções diversas, esses dois movimentos se expressaram contra o matrimônio tradicional visto exclusivamente nos seus “fins” objetivos: a prole, a sociedade, a Igreja, e não o suficiente em si mesmo, no seu valor subjetivo e interpessoal. Tudo se exigia dos futuros cônjuges exceto que se amassem e se escolhessem livremente entre si. Ainda hoje, em muitas partes do mundo, há casais que se conhecem e se veem pela primeira vez no dia das núpcias. A tal modelo, o iluminismo opôs o matrimônio como pacto entre os cônjuges e o romantismo como comunhão de amor entre os esposos.
Mas esta crítica não vai contra a Bíblia, e sim a favor do seu sentido original! O concílio Vaticano II recebeu esta instância quando reconheceu como bem igualmente primário do matrimônio o amor e ajuda mútuos entre os cônjuges. São João Paulo II, na linha da Gaudium et Spes, em uma das suas catequeses das quartas-feiras, disse:
“O corpo humano, com o seu sexo, e a sua masculinidade e feminilidade (…) é não apenas fonte de fecundidade e de procriação, como em toda a ordem natural, mas inclui, desde o início, o atributo esponsal, isto é, de expressar o amor: aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom e, através desse dom, cumpre o próprio sentido do seu ser e existir”[4].
Em sua encíclica “Deus Caritas Est”, o papa Bento XVI foi além, escrevendo coisas profundas e novas sobre o eros no matrimônio e até nas relações entre Deus e o homem. “Esta estreita ligação entre eros e matrimônio na Bíblia quase não tem paralelos na literatura”, escreveu ele[5]. Um dos maiores erros que cometemos para com Deus é transformar tudo o que diz respeito ao amor e à sexualidade em uma área saturada de malícia, onde Deus não deve entrar. Como se satanás, e não Deus, fosse o criador dos sexos e o especialista no amor.
Nós, crentes – e muitos não crentes – estamos longe de aceitar as consequências que alguns tiram hoje destas premissas: por exemplo, que bastaria qualquer tipo de eros para constituir um matrimônio, inclusive o de pessoas do mesmo sexo; mas essa nossa discordância assume outra força e credibilidade quando unida ao reconhecimento da bondade de fundo da instância, e também a uma sadia autocrítica.
Não podemos silenciar a contribuição que os cristãos deram à formação dessa visão puramente objetivista do matrimônio contra a qual a cultura ocidental moderna se lançou com veemência. A autoridade de Agostinho, reforçada neste ponto por Tomás de Aquino, tinha acabado jogando uma luz negativa na união carnal dos cônjuges, considerada o meio de transmissão do pecado original e não isenta, em si mesma, de pecado “ao menos venial”. De acordo com o doutor de Hipona, cônjuges deveriam realizar o ato conjugal “com pesar” (cum dolore) e só porque não havia outra maneira de dar cidadãos ao Estado e membros à Igreja[6].
Outra instância moderna que podemos tornar nossa própria é a da igual dignidade da mulher no matrimônio. Essa igualdade, como vimos, está no cerne do projeto originário de Deus e do pensamento de Cristo, mas foi muitas vezes desatendida ao longo dos séculos. A palavra de Deus a Eva, “Ao homem se voltará o teu desejo e ele te dominará”, teve cumprimento trágico na história.
Nos representantes da chamada “revolução dos gêneros”, esta instância levou a propostas insanas, como a de abolir a distinção dos sexos e substituí-la pela mais elástica e subjetiva distinção de “gêneros” (masculino, feminino, variável), ou a de libertar as mulheres da “escravidão da maternidade”, prevendo outros meios, inventados pelo homem, para o nascimento dos filhos. Nos últimos tempos há uma sucessão de notícias de que homens em breve poderão ficar grávidos e dará à luz um filho. “Adão dá Eva à luz”, escreve-se sorrindo, quando seria de se chorar. Os antigos teriam definido tudo isso com um termo: hybris, a arrogância do homem diante de Deus.
É justamente a escolha do diálogo e da autocrítica o que nos dá o direito de denunciar estes projetos como “desumanos”, ou seja, contrários não só à vontade de Deus, mas também ao bem da humanidade. Traduzidos na prática em larga escala, eles poderiam levar a quedas humanas e sociais imprevisíveis. Nossa única esperança é que o bom senso das pessoas, junto com o “desejo” natural do sexo oposto e com o instinto de maternidade e paternidade que Deus inscreveu na natureza humana, resista a essas tentativas de substituir Deus, ditadas mais por tardios sentimentos de culpa do homem do que por genuíno respeito e amor à mulher.
3. Um ideal a ser redescoberto
Não menos importante que a tarefa de defender o ideal bíblico do matrimônio e da família é a tarefa de redescobri-lo e vivê-lo plenamente como cristãos, a fim de repropô-lo ao mundo mais com fatos do que com palavras. Os primeiros cristãos, com seus costumes, mudaram as leis do Estado sobre a família; nós não podemos pensar em fazer o oposto, ou seja, em mudar os costumes das pessoas com as leis do Estado, ainda que, como cidadãos, tenhamos o dever de ajudar o Estado a fazer leis justas.
Depois de Cristo, nós lemos corretamente o relato da criação do homem e da mulher à luz da revelação da Trindade. A esta luz, a frase “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” revela finalmente o seu significado, enigmático e incerto antes de Cristo. Que relação pode haver entre ser “à imagem de Deus” e ser “homem e mulher”? O Deus da Bíblia não tem conotações sexuais, não é nem homem nem mulher.
A semelhança consiste nisto. Deus é amor e o amor exige comunhão, intercâmbio interpessoal; exige um “eu” e um “tu”. Não há amor que não seja amor de alguém; onde só há um sujeito, não pode haver amor, mas egoísmo ou narcisismo. Onde Deus é concebido como Lei ou Poder Absoluto não há necessidade de uma pluralidade de pessoas (o poder pode ser exercido sozinho). O Deus revelado por Jesus Cristo, sendo amor, é único, mas não solitário; é uno e trino. Coexistem nele unidade e distinção: unidade de natureza, de querer, da intenção, e distinção de características e de pessoas.
Duas pessoas que se amam – e o caso do homem e da mulher no matrimônio é o mais forte – reproduzem algo do que acontece na Trindade. Lá, duas pessoas – o Pai e o Filho – se amam e “sopram” o Espírito que é o amor que os funde. Houve quem chamasse o Espírito Santo de “Nós divino”, ou seja, não a “terceira pessoa da Trindade”, mas a primeira pessoa plural[7]. Precisamente nisto é que o casal humano é imagem de Deus. Marido e mulher são, de fato, uma só carne, um só coração, uma só alma, ainda que na diversidade de sexo e de personalidade. No casal se reconciliam entre si a unidade e a diversidade.
A esta luz, descobre-se o profundo significado da mensagem dos profetas sobre o matrimônio humano: que ele é um símbolo e reflexo de outro amor, o de Deus pelo seu povo. Isto não significava sobrecarregar de significado místico uma realidade puramente mundana. Não é apenas fazer simbolismo; é, antes, revelar a verdadeira face e o escopo último da criação do ser humano como homem e mulher.
Qual é a causa da incompletude deixada pela união sexual, dentro e fora do matrimônio? Por que esta dinâmica recai sempre sobre si própria e por que esta promessa de infinito e eterno é sempre frustrada? Para esta desilusão se tenta um remédio que, no entanto, só faz aumentá-la. Em vez de mudar a qualidade do ato, se aumenta a sua quantidade, passando-se de um parceiro a outro. Chega-se assim à destruição do dom de Deus que é a sexualidade, destruição em andamento na cultura e na sociedade de hoje.
Queremos de vez, como cristãos, procurar uma explicação para esta devastadora disfunção? A explicação é que a união sexual não é vivida do jeito e com a intenção querida por Deus. Este escopo era que, através do êxtase e da fusão de amor, o homem e a mulher se elevassem acima do desejo e tivessem certa pregustação do infinito; que se lembrassem de onde vieram e para onde eram direcionados.
O pecado, a começar pelo de Adão e Eva bíblicos, atravessou este projeto; “profanou” aquele gesto, ou seja, o destituiu do seu significado religioso. Fez dele um gesto que é fim de si mesmo, conclusão em si mesmo e, portanto, “insatisfatório”. O símbolo foi separado da realidade simbolizada, privado de seu dinamismo intrínseco e, portanto, mutilado. Nunca como neste caso se experimenta a verdade do dito de Agostinho: “Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti”. Não fomos criados, de fato, para viver num eterno relacionamento de casal, mas para viver num eterno relacionamento com Deus, com o Absoluto. Mesmo o Fausto de Goethe o descobre ao fim do seu longo vagar; repensando em seu amor por Margarida, ele exclama no final do poema: “Tudo o que passa é só uma parábola. Só aqui [no céu] o inatingível se torna realidade”.
No testemunho de alguns casais que fizeram a experiência renovadora do Espírito Santo e vivem a vida cristã carismaticamente, encontra-se algo do significado original do ato conjugal. Não é de admirar que seja assim. O matrimônio é o sacramento do dom recíproco que os esposos fazem de si mesmos um ao outro, e o Espírito Santo é, na Trindade, o “dom”, ou melhor, o “doar-se” recíproco do Pai e do Filho, não um ato passageiro, mas um estado permanente. Onde chega o Espírito Santo, nasce, ou renasce, a capacidade de fazer-se dom. É assim que opera a “graça de estado” no matrimônio.
4. Casados e consagrados na Igreja
Embora nós, consagrados, não vivamos a realidade do matrimônio, como eu disse anteriormente, nós temos de conhecê-la para ajudar os que a vivem. Adiciono outra razão: precisamos conhecê-la para ser, nós também, ajudados por eles! Falando de matrimônio e virgindade, o Apóstolo diz: “Cada um tem o próprio dom (chárisma) de Deus, uns de uma forma, outros de outra” (1 Cor 7, 7); ou seja: o casado tem seu carisma e o que não se casa “por causa do Senhor” tem o dele.
O carisma – diz o mesmo Apóstolo – é “uma manifestação particular do Espírito para o bem comum” (1 Cor 12, 7). Aplicado à relação entre casados e consagrados na Igreja, isto significa que o celibato e a virgindade também são para os casados e que o matrimônio também é para os consagrados, ou seja, para o seu bem. Esta é a natureza intrínseca do carisma, aparentemente contraditória: algo de “particular” (“uma manifestação particular do Espírito”), mas que serve a todos (“para o bem comum”).
Na comunidade cristã, consagrados e casados podem “edificar” uns aos outros. As pessoas casadas são chamadas, pelos consagrados, ao primado de Deus e daquilo que não passa; são introduzidos no amor à Palavra de Deus que eles podem melhor aprofundar e “compartilhar” com os leigos. Mas as pessoas consagradas também aprendem algo das casadas. Aprendem a generosidade, a abnegação, o serviço à vida e, muitas vezes, certa “humanidade” que vem do duro contato com as realidades da existência.
Falo por experiência própria. Eu pertenço a uma ordem religiosa em que, até alguns anos atrás, nos levantávamos à noite para recitar o ofício “matutino”, que durava cerca de uma hora. Houve então o grande ponto de viragem na vida religiosa, resultante do concílio. Parecia que o ritmo da vida moderna – o estudo para os jovens e o ministério apostólico para os sacerdotes – não permitia mais aquele levantar-se noturno que interrompia o sono, e, pouco a pouco, ele foi abandonado, a não ser em alguns lugares de formação.
Quando, mais tarde, o Senhor me deu a conhecer de perto, em meu ministério, várias famílias jovens, descobri algo que salutarmente me sacudiu. Aqueles jovens papais e mamães tinham de se levantar não uma, e sim duas, três ou mais vezes por noite para dar de comer, dar remédios, embalar o bebê se ele chorasse, cuidar dele se estivesse com febre. E, de manhã, um dos dois, ou ambos, na hora de sempre, tinham de correr para o trabalho depois de levar a criança para a casa dos avós ou para a creche. Havia um relógio-ponto para ser batido, fizesse bom ou mau tempo, com saúde ou sem ela.
Então eu me disse: se não corrermos para nos consertar, corremos grave perigo! O nosso modo de vida, se não for regido pela observância autêntica da Regra e por certo rigor de horários e hábitos, periga se tornar uma vida mansa e nos levar à dureza do coração. O que os bons pais são capazes de fazer pelos filhos carnais, o grau de esquecimento de si mesmos a que são capazes de chegar para cuidar da saúde deles, dos seus estudos e da sua felicidade, deve ser a medida do que nós devemos fazer pelos nossos filhos e irmãos espirituais. Temos o exemplo do apóstolo Paulo, que dizia querer “consumir-se” pelos seus filhos de Corinto (cf. 2 Cor 12, 15).
Que o Espírito Santo, doador dos carismas, ajudar a todos nós, casados ou consagrados, a colocar em prática a exortação do apóstolo Pedro:
“Viva cada um segundo o dom recebido, colocando-o a serviço dos outros, como bons administradores da multiforme graça de Deus (…), para que em tudo seja Deus glorificado por meio de Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém!” (1 Pd 4, 10-11).