No roteiro de preparação espiritual durante a Quaresma, o Papa e a Cúria Romana começaram a participar nesta sexta-feira, 25, as tradicionais meditações ministradas pelo pregador da Casa Pontifícia, frei Raniero Cantalamessa, OFM Cap. O tema foi "As duas faces do amor: Eros e Ágape", numa referência explícita ao tema abordado pela primeira encíclica de Bento XVI, a Deus Caritas Est.
"Com as pregações desta Quaresma, gostaria de continuar no esforço, iniciado no Advento, de trazer uma pequena contribuição em vista da re-evangelização do ocidente secularizado, o que constitui, neste momento, a preocupação principal de toda a Igreja e em particular do Santo Padre Bento XVI", iniciou o frei capuchinho.
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.: NA ÍNTEGRA: As duas faces do amor: eros e ágape – primeira pregação
Ele indicou que o amor é um dos âmbitos em que a secularização age de modo mais difuso e nefasto, tornando-o algo meramente "profano" e arrancando toda e qualquer referência a Deus. No entanto, o amor não é importante somente para a evangelização, mas para a própria vida interna da Igreja, para a santificação dos seus membros, defende o sacerdote.
"O amor sofre uma nefasta separação não somente na mentalidade do mundo secularizado, mas também, no lado oposto, entre os fiéis e em particular entre as almas consagradas. Simplificando ao máximo, poderíamos formular assim a situação: no mundo, encontramos um eros sem ágape; entre os fiéis, encontramos frequentemente um ágape sem eros", afirma Cantalamessa.
"O eros sem ágape é um amor romântico, mais frequentemente passional, até a violência. Um amor de conquista que reduz fatalmente o outro a objeto do próprio prazer e ignora toda a dimensão de sacrifício, de fidelidade e de doação de si. É aquele que a linguagem comum compreende, geralmente, com a palavra 'amor'. [Já o ágape sem eros] aparece como um amar mais por imposição da vontade que por íntimo impulso do coração; um colocar-se dentro de um molde pré-concebido, ao invés de se criar um próprio, irrepetível, como irrepetível é cada ser humano diante de Deus. Os atos de amor dirigidos a Deus assemelham-se, nesse caso, àqueles de certos enamorados inexperientes que escrevem à amada cartas de amor copiadas de um manual especial", ressalta.
Nessa perspectiva, se o amor mundano é um corpo sem alma, o amor religioso assim praticado é uma alma sem corpo. "No fundo de muitos desvios morais de almas consagradas – não se pode ignorá-los – há uma distorcida e contorcida concepção do amor. Temos, portanto, uma dupla razão e uma dupla urgência de redescobrir o amor em sua unidade original. O amor verdadeiro e integral está completamente fechado dentro de duas conchas que são o eros e o ágape. Não se pode separar essas duas dimensões do amor sem destruí-lo, da mesma forma como não se pode separar hidrogênio e oxigênio sem perder-se a própria água", afirma o pregador.
Reconciliação
Segundo Cantalamessa, a reconciliação mais importante que precisa acontecer entre as duas dimensões do amor testemunha-se na vida concreta da pessoa. No entanto, para isso, é preciso bem entender cada um dos conceitos e promover uma síntese, como brilhantemente explica Bento XVI na Deus Caritas Est:
"Eros como termo para significar o amor 'mundano' e ágape como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado. As duas concepções aparecem frequentemente contrapostas como amor 'ascendente' e amor 'descendente'. Na realidade, eros e ágape — amor ascendente e amor descendente — nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará 'existir para' o outro. Assim se insere nele o momento da ágape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom. […] A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenômeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões" (nn. 7-8).
Cantalamessa aponta que eros e ágape estão unidos à fonte mesma do amor que é Deus. Embora os textos do Novo Testamento tenham evitado a expressão eros na referência ao amor, isso não significa uma negação do amor humano; antes, foi motivado pelo fato de o termo significar, na linguagem popular da época, "mais ou menos o que indica hoje quando se fala de erotismo ou filmes eróticos, isto é, a mera satisfação do instinto sexual, um degradar-se mais que elevar-se", relata o capuchinho.
Vida consagrada
Aí surge a necessidade de se resgatar um eros para a vida dos consagrados, que correm o perigo de viver um amor que nunca desce da mente para o coração. "Se eros significa impulso, desejo, atração, não devemos ter medo dos sentimentos, nem tampouco desprezá-los ou reprimi-los. Deus nos deu o próximo para amar!". A esse respeito, é preciso ter sempre em vista que o amor pelo próximo encontra seu fundamento no Verbo feito carne, em Jesus Cristo, acrescenta
"O objeto primário do nosso eros, da nossa busca, desejo, atração, paixão, deve ser o Cristo. Está aqui o ponto crucial: pensar em Cristo não como em uma pessoa do passado, mas como o Senhor ressuscitado e vivente, com o qual eu posso falar, que posso também beijar se o quero, seguro de que o meu beijo não termina sobre a estampa ou sobre a madeira de um crucifixo, mas sobre um rosto e os lábios de carne viva (ainda que espiritualizada), felizes em acolher o meu beijo", diz Cantalamessa. Segundo ele, a beleza e a plenitude da vida consagrada depende da qualidade do amor por Cristo. "Somente esse é capaz de defender dos deslizes do coração".
Por fim, o capuchinho partilhou a experiência que fez de imaginar o que diria Jesus Ressuscitado se Ele mesmo estivesse ali, em seu lugar, explicando em primeira pessoa qual era o amor que desejava de cada um:
"O amor ardente:
É colocar-me sempre em primeiro lugar.
É buscar agradar-me em todos os momentos.
É comparar os teus desejos com o meu desejo.
É viver comigo como com um amigo, confidente, esposo, e ser feliz.
É ficar inquieto se pensas estar um pouco longe de mim.
É ficar plenamente feliz quando estou contigo.
É estar disposto a grandes sacrifícios para não me perder.
É preferir viver pobre e desconhecido comigo do que rico e famoso sem mim.
É falar-me como ao amigo mais querido em todo o momento.
É confiar-te a mim ao olhar para teu futuro.
É desejar perder-te em mim como meta da tua existência".
E concluiu:
"Se parece também a vós, como parece a mim, que estais ainda distantes dessa meta, não nos desencorajemos. Temos alguém que pode nos ajudar a alcançá-la se Lhe pedirmos. Repitamos com fé ao Espírito Santo: Veni, Sancte Spiritus, reple tuorum corda fidelium et tui amoris in eis ignem accende: Vem, Espírito Santo, enchei o coração dos teus fiéis e acende neles o fogo do teu amor".
Programa
As meditações quaresmais acontecem sempre às 9h (em Roma – 5h no horário de Brasília), na Capela Redemptoris Mater, sob a direção do pregador da Casa Pontifícia, frei Raniero Cantalamessa, OFM Cap.
O tema das meditações quaresmais deste ano é "Sobretudo, revesti-vos do amor" (Cl 3, 14). As outras três pregações da Quaresma acontecerão nos dias 1º, 8 e 15, sempre às sextas-feiras.