1. As duas dimensões da fé
Santo Agostinho fez, com relação à fé, uma distinção que continua clássica até hoje: a distinção entre as coisas que se creem e o ato de acreditar nelas. “Aliud sunt ea quae creduntur, aliud fides qua creduntur” (Agostinho, De Trinitate XIII,2,5), a fidea quae e a fides qua, como se diz na teologia. A primeira é conhecida também como fé objetiva, a segunda fé subjetiva. Toda a reflexão cristã sobre a fé se desenvolve entre estes dois pólos.
Traça-se duas orientações. Por um lado temos aqueles que enfatizam a importância do intelecto no crer e portanto a fé objetiva, como assentimento às verdades reveladas, por outro lado aqueles que enfatizam a importância da vontade e do afeto, portanto a fé subjetiva, o crer em alguém (“crer em”), mais do que crer em algo (“crer que”); por um lado aqueles que enfatizam as razões da mente e por outro aqueles que, como Pascal, enfatizam “as razões do coração”.
Esta oscilação reaparece sob formas diferentes em cada curva da história da teologia: na Idade Média, na ênfase diferente entre a teologia de Santo Tomás e aquela de São Boaventura; no tempo da Reforma entre a fé confiante de Lutero e a fé católica informada pela caridade; mais tarde, entre a fé dentro dos limites da pura razão de Kant e a fé com base no sentimento de Schleiermacher e do romantismo em geral; mais perto de nós, entre a fé da teologia liberal e aquela existencial de Bultmann, praticamente desprovida de todo conteúdo objetivo.
A teologia católica contemporânea se esforça, como em outras vezes no passado, por encontrar o justo equilíbrio entre as duas dimensões da fé. Superamos a fase em que, por razões polêmicas contingentes, toda a atenção nos manuais de teologia tinha acabado concentrando-se na fé objetiva (fides quae), ou seja, sobre o conjunto das verdades que devem ser cridas. “O ato de fé – lê-se num respeitável dicionário crítico de teologia – na corrente dominante de todas as confissões cristãs, é hoje a descoberta de um Tu divino. A apologética da prova tende a colocar-se detrás de uma pedagogia da experiência espiritual que tende a começar uma experiência cristã, da qual se reconhece a possibilidade inscrita a priori em cada ser humano” (J.-Y. Lacoste et N. Lossky, “Foi“ , no Dictionnaire critique de Théologie, Presses Universitaires de France 1998, p.479, tradução nossa). Em outras palavras, mais que frizar a força da argumentação externa à pessoa, deve-se buscar ajudá-la a encontrar em si mesma a confirmação da fé, tentando despertar aquela centelha que existe no “coração inquieto” de cada homem pelo fato de ser criado “à imagem de Deus”.
Fiz essa premissa porque mais uma vez ela nos permite ver a contribuição que os Padres podem dar ao nosso esforço para dar de novo à nossa fé da Igreja o seu brilho e o seu poder de ataque. O maior entre eles são modelos insuperáveis de uma fé que é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, preocupada, isto é, pelo conteúdo da fé, ou seja, pela ortodoxia, mas ao mesmo tempo, acreditada e vivida com todo o ardor do coração. O Apóstolo tinha proclamado: “corde creditur” (Rm 10,10), com o coração se crê, e sabemos que com a palavra coração, a Bíblia entende as duas dimensões espirituais do homem, a sua inteligência e a sua vontade, o lugar simbólico do conhecimento e do amor. Neste sentido, os Padres são um elo indispensável para encontrar de novo a fé como se entende na Escritura.
2. “Creio em um só Deus”
Nesta última meditação nos aproximamos dos Padres para renovar a nossa fé no objeto principal da mesma, naquele que está comumente entendido pela palavra “acreditar” e segundo o qual separamos as pessoas entre crentes e não crentes: a fé na existência de Deus. Refletimos, nas meditações passadas, na divindade de Cristo, no Espírito Santo e na Trindade. Mas a fé no Deus Trino é o estágio final da fé, o “plus” sobre Deus revelado por Cristo. Para alcançar esta plenitude é preciso primeiro acreditar em Deus. Antes da fé no Deus trino, está a fé no Deus Uno.
São Gregório Nazianzeno nos lembra a pedagogia de Deus ao revelar-se a nós. No Antigo Testamento é revelado abertamente o Pai e veladamente o Filho, no Novo, abertamente o Filho e veladamente o Espírito Santo, agora, na Igreja, gozamos da plena luz de toda a Trindade. Também Jesus fala de abster-se de dizer aos apóstolos aquelas coisas das quais eles ainda não são capazes de “carregar o fardo” (Jo 16, 12). Também nós devemos seguir a mesma pedagogia com aqueles aos quais queremos anunciar a fé hoje.
A Carta aos Hebreus diz qual é o primeiro passo para se aproximar de Deus: “Pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6). Este é o fundamento de todo o resto e que permanece também depois de ter acreditado na Trindade. Vamos ver como os Padres nos podem inspirar a partir deste ponto de vista, tendo sempre presente que o nosso objetivo principal não é apologético, mas espiritual, orientado a fortalecer a nossa fé, mais do que comunicá-la aos outros. O guia que escolhemos para esta caminhada é São Gregório de Nissa.
Gregório de Nissa (331-394), irmão de sangue de São Basílio, amigo e contemporâneo de Gregório Nazianzeno, é um Padre e doutor da Igreja, do qual se descobre, cada vez mais claramente, a estatura intelectual, bem como a importância decisiva no desenvolvimento do pensamento cristão. “Um dos pensadores mais poderosos e originais que conhece a história da Igreja” (L. Bouyer), “o fundador de uma nova religiosidade mística e estática” (H. von Campenhausen).
Os Padres não se encontram, como nós, com o dever de demonstrar a existência de Deus, mas a unicidade de Deus; não tiveram que combater o ateísmo, mas o politeísmo. Veremos, porém, como a estrada traçada por eles para alcançar o conhecimento do Deus único, é a mesma que pode levar o homem de hoje à descoberta de Deus tout court.
Para valorizar a contribuição dos Padres e particularmente do Nisseno, é necessário saber como se apresentava o problema da unicidade de Deus no tempo deles. À medida que se explicitava a doutrina da Trindade, os cristãos viram-se expostos à mesma acusação que eles mesmos dirigiam aos pagãos: aquela de acreditar em mais divindades. Eis porque o credo dos cristãos que, em todas as suas mais variadas redações, por três séculos, começava com as palavras “Creio em Deus” (Credo in Deus), a partir do IV século, registra um pequeno mais significativo acréscimo que nunca mais será omitido: “Creio em um só Deus (Credo in unum Deum).
Não é necessário refazer aqui o caminho que levou a este resultado; pode-se certamente começar pelo final dele. Pelo final do século IV terminou a transformação do monoteísmo do Antigo Testamento para o monoteísmo trinitário dos cristãos. Os latinos expressavam os dois aspectos do mistério com a fórmula “uma substância e três pessoas”, os gregos com a fórmula “três hipóstases, uma só ousia”. Depois de um acalorado debate, o processo aparentemente terminou com um acordo completo entre as duas teologias. “Pode-se conceber – exclamava o Nazianzeno – um acordo mais completo e dizer mais absolutamente do que isso a mesma coisa, ainda se com palavras diferentes?” [Gregorio Nazianzeno, Oratio 42, 16 (PG 36, 477)]
Uma diferença, na realidade, permanecia entre os dois modos de exprimir o mistério; hoje é normal expressá-la assim: os Gregos e os latinos, na consideração da Trindade, começam de pontos diferentes; os gregos partem das pessoas divinas, ou seja, da pluralidade, para chegarem à unidade de natureza; os latinos, vice-versa, partem da unidade da natureza divina, para alcançar as três pessoas. “O latino considera a personalidade como um modo da natureza; o grego considera a natureza como o conteúdo da pessoa” (Th. De Régnon, Études de théologie positive sur la Sainte Trinité, I, Paris 1892, 433, tradução nossa).
Acredito que a diferença pode ser expressa também de outro modo. Tanto latinos como gregos, partem da unidade de Deus; seja o símbolo grego que aquele latino começa dizendo: “Creio em um só Deus” (Credo in unum Deum!). Só que esta unidade para os latinos é concebida ainda como impessoal ou pré-pessoal; é a essência de Deus que se especifica depois no Pai, Filho e Espírito Santo, sem, é claro, ser pensada como pré-existente às pessoas. Para os gregos, no entanto, trata-se de uma unidade já personalizada, porque para eles “a unidade é o Pai, do qual e para o qual contam-se as outras pessoas” [(S. Gregorio Naz., Or. 42, 15 (PG 36, 476)] O primeiro artigo do credo dos gregos também reza assim “Creio em um só Deus Pai onipotente” (Credo in unum Deum Patrem Omnipotentem), só que “Pai onipotente” aqui não está separado por ‘unum Deum’, como no credo latino, mas faz uma coisa só com ele: “Creio em um só Deus que é o Pai Onipotente”.
Esta é a maneira pela qual todos os três Capadócios concebem a unicidade de Deus, mas sobretudo São Gregório de Nissa. A unidade das três Pessoas divinas é dada, para ele, pelo fato de que o Filho é perfeitamente (substancial) “unido” ao Pai, como o é também o Espírito Santo por meio do Filho” [Cf. Gregorio Nisseno, Contra Eunomium 1,42 (PG 45, 464)]. Esta é a tese precisa que dificulta os latinos que vêem nela o perigo de subordinar o Filho ao Pai e o Espírito a um e a outro: “O nome ‘Deus’ – escreve Agostinho – indica toda a Trindade, não somente o Pai”[ Agostinho, De Trinitate, I, 6, l0; cf. também IX, 1, 1 («credamus Patrem et Filium et Spiritum Sanctum esse unum Deum»)].
Deus é o nome que damos à divindade quando a consideramos não em si mesma, mas em relação com os homens e com o mundo, porque tudo o que ela obra fora de si obra-o em conjunto, como única causa eficiente. A conclusão importante que podemos tirar de tudo isso é que a fé cristã é também monoteísta; os cristãos não renunciaram a fé hebraica em um só Deus, ao contrário a enriqueceram, dando um conteúdo e um senso novo e maravilhoso a esta unidade. Deus é uno, mas não solitário!
3. “Moisés entrou na nuvem”
Por que escolher São Gregório Nisseno como guia para o conhecimento deste Deus diante do qual estamos como criaturas perante o Criador? A razão é que este Padre foi o primeiro no cristianismo que abriu uma via para o conhecimento de Deus que se revela particularmente sensível à situação religiosa do homem de hoje: a via do conhecimento que passa pelo… não conhecimento.
A ocasião lhe foi oferecida pela polêmica com o herege Eunomio, o representante de um arianismo radical contra o qual escrevem todos os grandes Padres que viveram na última metade do IV século: Basílio, Gregório Nazianzeno, o Crisóstomo e, o mais agudo de todos o Nisseno. Eunomio identificava a essência divina no ser “não gerado” (agennetos). Neste sentido, para ele, ela era perfeitamente cognoscível e não tem nenhum mistério; nós podemos conhecer a Deus tanto quanto ele se conhece a si mesmo.
Os Padres responderam em coro apoiando a tese da “incognoscibilidade de Deus” na sua realidade íntima. Mas, enquanto os outros permaneceram numa refutação de Eunomio baseada principalmente nas palavras da Bíblia, o Nisseno, foi mais longe demonstrando que o próprio reconhecimento dessa incognoscibilidade é a via para o verdadeiro conhecimento (theognosia) de Deus. O faz retomando um tema já esboçado por Filão (Cf. Filão Al., De posteritate, 5,15): aquele de Moisés que encontra Deus entrando na nuvem. O texto bíblico é Êxodo 24, 15-18 e eis aqui o seu comentário:
“A manifestação de Deus ocorre primeiro por Moisés na luz; mais tarde falou com ele na nuvem, enfim, tornado mais perfeito, Moisés contempla Deus nas trevas. A passagem da escuridão à luz é a primeira separação das idéias falsa e errôneas de Deus; a inteligência mais atenta às coisas escondidas, conduzindo a alma por meio das coisas visíveis até aquelas invisíveis, é como uma nuvem que escurece todo o sensível e acostuma a alma à contemplação do que está escondido; enfim, a alma que caminhou por estas vias até as coisas celestiais, tendo deixado as coisas terrenas tanto quanto possível à natureza humana, entra no santuário do conhecimento divino (theognosia) rodeado de todas as partes pela escuridão divina”[(Gregorio Niss., Omelia XI sul Cantico (PG 44, 1000 C-D)].
O verdadeiro conhecimento e a visão de Deus consistem “em ver que ele é invisível, porque aquele que a alma procura transcende todo conhecimento, separado de qualquer parte da sua incompreensibilidade como de umas trevas” [(Vida de Moisés, II,163 (SCh 1bis, p. 210 s.)]. Nesta fase final do conhecimento, não há um conceito de Deus, mas aquilo que o Nisseno, com uma expressão tornada famosa, define “um certo sentimento de presença” – aisthesin tina tes parusia, [ Homilia XI sobre o Cântico (PG 44, 1001B)]. Um sentir não com os sentidos do corpo, entende-se, mas com aqueles interiores do coração. Este sentimento não é o superamento da fé, mas a sua atuação mais alta: “Com a fé – diz a noiva do Cântico (Ct 3, 6) – encontrei o amado”. Não o “compreende”; faz algo melhor, o “tem”! [Homilia VI sobre o Cântico (PG 44, 893 B-C)].
Estas idéias do Nisseno exerceram uma enorme influência no pensamento cristão posterior, ao ponto de ser considerado o próprio fundador da mística cristã. Por meio de Dionísio Areopagita e Máximo o Confessor que retomam este tema dele, a sua influência se estende pelo mundo grego e aquele latino. O tema do conhecimento de Deus na escuridão volta em Angela de Foligno, no autor de Nube della non-conoscenza (Nuvem do não-conhecimento) , no tema da “douta ignorância” de Nicolau Cusano, naquele da “noite escura” de João da Cruz e em muitos outros .
4. Quem humilha realmente a razão?
Agora gostaria de mostrar como a intuição de São Gregório Nisseno pode ajudar-nos a aprofundar a nossa fé e a indicar para o homem moderno, tornado cético das “cinco vias” da teologia tradicional, algum caminho que o leve para Deus.
A novidade introduzida pelo Nisseno no pensamento cristão é que para encontrar a Deus é necessário ir além dos limites da razão. Estamos como antípodas do projeto de Kant de manter a religião “dentro dos limites da simples razão.” Na cultura secularizada de hoje foi-se além de Kant: estes em nome da razão (ao menos da razão prática) “postulavam” a existência de Deus, os racionalistas posteriores negam também isso.
Compreende-se disso o quanto seja atual o pensamento do Nisseno. Ele demonstra que a parte mais alta da pessoa, a razão, não está excluída da busca de Deus; que não há uma obrigação de se escolher entre seguir a fé e seguir a inteligência. Entrando na nuvem, ou seja, acreditando, a pessoa humana não renuncia à própria racionalidade, mas a transcende, que é uma coisa bem diferente. O crente aprofunda, por assim dizer, os recursos da própria razão, lhe permite colocar o seu ato mais nobre, porque, como afirma Pascal, “o ato supremo da razão está no reconhecer que há uma infinidade de coisas que a superam” (B.Pascal, Pensamentos 267 Br, tradução nossa).
São Tomás de Aquino, justamente considerado como um dos mais ferrenhos defensores das exigências da razão, escreveu: “Diz-se que no final do nosso conhecimento, Deus é conhecido como o Desconhecido, porque o nosso espírito chega ao extremo do seu conhecimento de Deus quando finalmente percebe que a sua essência está acima de tudo o que pode conhecer aqui embaixo” (Tomás, In Boet. Trin. Proem. q.1,a.2, ad 1, tradução nossa). No mesmo instante que a razão reconhece o seu limite, o quebra e o supera. Compreende que não pode compreender, “vê que não pode ver”, dizia o Nisseno, mas compreende também que um Deus compreendido não seria mais Deus. É por obra da razão que se produz este reconhecimento, que é, por isso, um ato puramente racional. Essa é, literalmente, uma “douta ignorância”, um ignorar “com boa razão”.
Deve-se, portanto, dizer exatamente o oposto, ou seja, quem coloca um limite para a razão e a humilha é quem não reconhece essa capacidade de transcender-se. “Até agora – escreveu Kierkegaard –sempre se tem falado assim: ‘o dizer que não se pode entender esta ou aquela coisa, não satisfaz a ciência que quer entender’. Eis o erro. Deve-se dizer justamente o contrário: quando a ciência humana não queira reconhecer que existe algo que ela não pode entender, ou – de modo ainda mais preciso – algo que ela com clareza pode ‘entender que não pode entender’, então tudo fica bagunçado. É portanto uma tarefa do conhecimento humano entender que existem e quais são as coisas que ele não pode entender”( S. Kierkegaard, Diario VIII A 11, tradução nossa).
Mas de que tipo de escuridão se trata? Da nuvem que, em algum momento, ficou entre os egípcios e os judeus se dizia que ela era “tenebrosa para uns e luminosa para os outros” (cf. Ex 14, 20). O mundo da fé é obscuro para quem o assiste de fora, mas é brilhante para aqueles que entram nele. De uma luminosidade especial, do coração mais que da mente. Na Noite Escura de São João da Cruz (uma variante do tema da nuvem do Nisseno!) a alma declara que procede pelo seu novo caminho, “sem orientação e luz, além da que brilha no meu coração”. Uma luz, entretanto, que é “mais segura do que o sol do meio-dia” (João da Cruz, Noite Escura, canto da alma, estrofe 3-4, tradução nossa).
A beata Ângela de Foligno, uma das maiores representantes da visão de Deus na escuridão, diz que a Mãe de Deus “foi tão inefavelmente unida à suma e absolutamente inqualificável Trindade, que em vida desfrutou da alegria que gozam os santos no céu, a alegria da incompreensibilidade (gaudium incomprehensibilitatis), porque entendem que é possível entender” (Il libro della beata Angela da Foligno, ed. Quaracchi 1985, p. 468, tradução nossa). É um excelente complemento para a doutrina de Gregório de Nissa sobre a incognoscibilidade de Deus. Nos assegura que mais que humilhar-nos e privar-nos de algo, tal incognoscibilidade existe para preencher o homem de entusiasmo e de alegria; nos diz que Deus é infinitamente maior, mais bonito, melhor, do que tudo o que possamos imaginar, e que é tudo isso por nós, para que a nossa alegria seja completa; para que nunca nos passe pela cabeça a idéia de que poderemos ficar enjoados de passar a eternidade perto dele!
Outra idéia do Nisseno que se revela útil para uma comparação com a cultura religiosa moderna é aquela do “sentimento de uma presença” que ele coloca no topo do conhecimento de Deus. A fenomenologia religiosa esclareceu, com Rudolph Otto, a existência de um dado primário, presente em diferentes graus de pureza, em todas as culturas e em todas as idades que ele chama de” sentimento do numinoso”, ou seja, o senso, mistura de terror e de atração, que capta improvisadamente o ser humano diante do manifestar-se do sobrenatural ou do supraracional (R. Otto, Il Sacro, Feltrinelli, Milano 1966). Se a defesa da fé, de acordo com as últimas diretrizes da apologética lembradas no início, “se coloca atrás de uma pedagogia da da experiência espiritual, da qual se reconhece a possibilidade inscrita a priori em cada ser humano”, não podemos negligenciar o acoplamento que nos dá a moderna fenomenologia religiosa.
Claro, o “sentimento de uma certa presença” do Nisseno é algo diverso do confuso senso do numinoso e da emoção sobrenatual, mas as duas coisas têm algo em comum. Uma é o início de um caminho para a descoberta do Deus vivo, a outra é o final. O conhecimento de Deus, dizia o Nisseno, começa com uma passagem das trevas para a luz e termina com uma passagem da luz para as trevas. Não se chega ao segundo sem passar pelo primeiro; em outras palavras, sem antes ser purificados pelo pecado e pelas paixões. “Já teria abandonado os prazeres – diz o libertino – se tivesse a fé. Mas eu respondo, diz Pascal: Já terias a fé se tivesses abandonado os prazeres” (Pascal, Pensamentos, 240 Br, tradução nossa).
A imagem que, graças a Gregório Nisseno, nos acompanhou em toda esta meditação, foi aquela de Moisés que sobe o Monte Sinai e entra na nuvem. O aproximar-se da Páscoa nos empurra a ir além desta imagem, de passar do símbolo para a realidade. Há uma outra montanha, onde um outro Moisés encontrou a Deus “enquanto se escurecia toda a terra” (Mt 27, 45). No monte Calvário o homem Deus, Jesus de Nazaré, uniu para sempre o homem a Deus. No final do seu Itinerario della mente a Dio (itinerário da mente à Deus), São Boaventura escreve:
“Depois de todas essas considerações, o que resta à nossa mente é elevar-se especulando não somente por acima deste mundo sensível, mas também por acima de si mesmo; e nesta subida Cristo é caminho e porta, Cristo é escada e veículo… Aquele que olha com cuidado este propiciatório fixando-o suspenso na cruz, com fé, esperança e caridade, com devoção, admiração, louvor, veneração e júbilo, realiza com ele a Páscoa, ou seja a passagem” [(Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, VII, 1-2 (Opere di S. Bonaventura, V,1, Roma, Città Nuova 1993, p. 564)].
Que o Senhor Jesus nos conceda passar uma bela e Santa Páscoa com ele!