A presidente do hospital Bambino Gesù compartilha suas experiências dessa dolorosa realidade como presidente do hospital pediátrico do Vaticano
Da redação, com Vatican News
O heroísmo cotidiano dos pais, evocado pelo Papa Francisco em um recente entrevista publicada na edição do periódico L’Osservatore Romano, é também o das mães e dos pais que vivem a experiência mais dolorosa e, em muitos aspectos, incompreensível que uma pessoa — mesmo com o apoio da fé — tem que suportar: a doença e o sofrimento de seu filho.
“Por que as crianças sofrem?”, ponderou Dostoiévski e, com ele, basicamente cada um de nós.
Uma pessoa que encontra essas famílias diariamente, em sua ansiedade e esperança, é Mariella Enoc. Ela é presidente do Bambino Gesù, o maior hospital pediátrico da Europa, desde 2015.
Confira, a seguir, a entrevista concedida por Mariella ao Vatican News.
Vatican News — Na entrevista que o Papa concedeu ao L’Osservatore Romano, o Pontífice destacou que é heroica a maneira como esses pais enfrentam todos os obstáculos para o bem de seus filhos. Como a senhora vê o testemunho diário dos pais das crianças internadas no hospital e sua missão ao Bambino Gesù?
Mariella Enoc — Os pais mostram grande coragem, sobretudo tenacidade e amor até ao heroísmo. Estou a pensar nos pais que vêm de países onde as crianças não podem ser tratadas e que acolhemos. Eles vêm aqui. Eles não conhecem a língua; não conhecem a cultura, nem o ambiente. Damos a eles um mediador cultural para ajudá-los a conversar com os médicos, mas fora isso essas pessoas vivem isoladas. Então eles também são heróis. Os pais são heróis que também podem sorrir, ser compostos. Costumo dizer para as mães: “Vá ao cabeleireiro porque seus filhos querem ver você linda, serena”. E eles também têm a coragem de fazer isso. É claro que também existem pais que, por outro lado, não podem sair da cabeceira do filho, e às vezes isso cria um problema para o casal e até para seus irmãos saudáveis em casa. É um mundo complexo em que muitos pais até conseguem fazer trabalho voluntário na ala onde um filho deles morreu, e acho isso excepcional.
Vatican News — Os pais têm reservas extraordinárias de força para seus filhos…
Mariella Enoc — Algumas noites, quando saio do hospital, lamento muito ver pessoas sentadas no chão do pátio. É por isso que agora estou trabalhando para dar ao hospital instalações mais dignas. Há pais que dormem meses a fio numa cama ao lado da cama do filho. Lembro-me que quando fui nomeada que muitos pais dormiam no carro, porque a mãe dormia ao lado do filho. Hoje nós fornecemos alojamento para eles também. Verdadeiramente, os pais têm grande força. Então sim, nesse sentido podemos dizer que são heróis; heróis do amor! Heróis, não santinhos, porque são pessoas reais que sabem o que significa amar, que sabem olhar o filho nos olhos e se alegrar assim que o filho sorri para eles e os encoraja, porque os filhos muitas vezes incentivam seus pais.
Vatican News — Existe alguma história, entre tantas, que te marcou em particular, que possa ser também uma mensagem de esperança para esses pais que estão passando pela mesma situação?
Mariella Enoc — Hoje, por exemplo, 85% [das pessoas] com leucemia estão curadas. Esta é uma mensagem de esperança, porque no passado, quando se ouvia “leucemia”, era tomado como uma sentença de morte. Transplantes: aqui são realizados transplantes de fígado, rim e coração. Quantos pais dão parte de seu fígado a um filho ou doam um rim para seu filho! Isso é motivo de esperança porque significa possibilidade de vida. Então, pense em todas as doenças metabólicas muito sérias. No final de fevereiro, inauguraremos o primeiro centro de cuidados paliativos, e faço questão de chamá-lo de “cuidados paliativos”, porque, retomando a Mensagem do Papa para o Dia Mundial do Doente, aqueles que não podem ser curados sempre precisam de tratamento. Então, nós os tratamos! Não é um hospício: é um centro terapêutico onde os pais aprendem a cuidar dos filhos também, a trocar o pino, a checar o respirador. Isso permite que eles os levem para casa. Então eles vão voltar, mas deve ser um lugar onde eles se sintam tratados. Os terríveis casos de Charlie Gard e Alfie Evans realmente me angustiaram muito. Eu disse a mim mesmo: “Sem usar terapia excessiva, mesmo quando as crianças não conseguem se recuperar, elas podem ser tratadas”.
Vatican News — A Covid tornou as relações humanas muito mais difíceis. Como você organizou o Hospital Bambino Gesù para tornar a vida dos pais e das crianças o mais “normal” possível?
Mariella Enoc — Em primeiro lugar, permitindo que os pais estejam sempre presentes. Então, por exemplo, devo dizer que queria que os pais — mesmo antes da Covid — pudessem estar na unidade de terapia intensiva perto da criança, porque era terrível para mim pensar nos pais esperando, do lado de fora daquela porta, por notícias sobre seu filho. E assim, eu solicitei que eles fossem autorizados a entrar na unidade de terapia intensiva. Os médicos resistiram um pouco, mas depois perceberam que isso realmente ajudou a melhorar a condição da criança. Por exemplo, quando as crianças foram internadas no Posto Polidoro, mesmo quando um dos pais foi positivo, mas também se não positivo, o pai estava no quarto com a criança. Tivemos o caso de um menino de 17 anos com autismo para quem sempre tinha que ter uma enfermeira de plantão, porque manter um menino autista trancado em um quarto é muito complicado. No entanto, sua mãe estava sempre lá também.
Vatican News — O Hospital Bambino Gesù está em Roma, mas nos últimos anos ampliou cada vez mais seu horizonte para atuar, em particular, em favor das crianças em áreas de guerra ou extrema pobreza de países como Síria, África Central, Camboja. Qual é o seu sonho para um futuro não muito distante em relação a este compromisso?
Mariella Enoc — Estamos trabalhando em um importante projeto de treinamento. O que podemos fazer é repassar muito do conhecimento que esse hospital tem: a pesquisa científica na qual investimos muito. Tudo isso forma grande estoque de conhecimento. E não pode ser só nosso. Deve ser transmitido aos outros. Então, acho que o mais importante é o treinamento que temos dado, muitas vezes pessoalmente, agora também através de uma plataforma online multilíngue. Comunicando-se mesmo com países onde alguns acham que não é possível ser compreendido. É preciso acreditar nessas pessoas, é preciso acreditar nelas, caso contrário elas sempre ficarão para trás de nós. Na Síria, por exemplo, trabalhamos com o hospital público. Nossos médicos foram lá, em um momento difícil, e ensinaram os jovens médicos. Você não pode imaginar a satisfação quando eles conseguiram realizar certos procedimentos. Esse hospital era um inferno, mas acreditávamos nele e ao invés de trazer apenas alguma coisa — remédios, maquinário — trouxemos experiência, conhecimento. Não fomos pegos pelo paternalismo. Estamos agora realizando um projeto de treinamento remoto para profissionais de saúde na Líbia. Esses são os aspectos que eu acho mais importantes hoje. Estamos decididos a continuar a nos comprometer desta forma e penso que é também um dom que o Papa está a dar ao mundo.