Reflexão

Cardeal fala sobre o Sínodo para a Amazônia e os direitos humanos

Dom Baretto destaca que o Sínodo para a Amazônia deseja contribuir para a construção de novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral

Da redação, com Civilta Cattolica

A pouco mais de três meses para o Sínodo especial para a Amazônia, que será realizado em outubro no Vaticano, o vice-presidente da Rede Eclesial Pan-amazônica (REPAM), Cardeal Pedro Ricardo Baretto Jimeno, SJ, e também arcebispo de Huancayo, no Peru, escreveu uma reflexão destacando a missão da Igreja nesta região.

Ele destaca que o Sínodo para a Amazônia deseja contribuir para a construção de novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. “O objetivo é criar condições que permitam às populações que habitam o vasto e importante território amazônico viver com dignidade e olhar com esperança para o futuro, sempre no quadro de respeito mútuo e do reconhecimento das responsabilidades diferenciadas e complementares dos atores sociais, políticos e religiosos”.

Para o cardeal, o Sínodo e a missão da Igreja na região amazônica são expressões de uma contribuição significativa para o dia a dia dos povos e comunidades que lá vivem, e de maneira nenhuma sua presença pode ser considerada como uma ameaça à estabilidade ou soberania dos países individuais.

“A presença da Igreja é, na realidade, um prisma a partir do qual podemos identificar os pontos frágeis da resposta dos nossos Estados e das sociedades como tais diante de situações urgentes e sobre as quais, independentemente da Igreja, existem dívidas concretas e históricas que não podemos evitar.”

Dom Baretto destaca que o Documento de Trabalho do Sínodo é uma expressão da voz do povo de Deus, e recorda que têm sido realizado um amplo processo de escuta em todo o território amazônico, com a realização de assembleias, fóruns temáticos, rodas de conversas atingindo ao menos 87 mil pessoas.

Situação de vulnerabilidade e importância da região

No artigo “Povos, comunidades e Estados em diálogo”, publicado pela Civiltà Cattolica, o cardeal destaca que a bacia amazônica tem sido uma região historicamente concebida como um espaço que deve ser ocupado e integrado de acordo com interesses externos, como “terreno baldio”.

O território amazônico abrange uma área de aproximadamente 7,5 milhões de km2. Está distribuído em oito países da América do Sul (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), além da Guiana Francesa como território ultramarino. Representa 43% da superfície da América do Sul. A região concentra 20% da água doce não congelada do planeta. Concentra 34% das florestas primárias do mundo, que contêm entre 30% e 40% da fauna e flora do mundo.

“É um bioma, isto é, um sistema vivo, que funciona como um estabilizador climático regional e global, mantendo o ar úmido e produzindo um terço das chuvas que alimentam a terra”, enfatiza o cardeal.

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A Amazônia tem ainda uma grande sociodiversidade, já que abriga cerca de 2,8 milhões de indígenas, pertencentes a 390 povoados, dos quais 137 são aldeias isoladas ou sem contatos externos; eles falam em 240 línguas pertencentes a 49 diferentes famílias linguísticas. E tem nos arredores cerca de 33 milhões de habitantes.

Dom Baretto afirma que o Papa Francisco reconhece os povos amazônicos e seus desafios, como disse em seu discurso realizado em 19 de janeiro de 2018, no encontro com os povos da Amazônia.

“Provavelmente, os povos amazônicos originais nunca foram tão ameaçados em seus territórios como são agora. A Amazônia é terra disputada em várias frentes: por um lado, o neoextrativismo e a forte pressão de grandes interesses econômicos que apontam sua ânsia por monoculturas agroindustriais de petróleo, gás, madeira, ouro. Considero essencial fazer esforços para gerar espaços institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os povos nativos; assumindo e resgatando a cultura, língua, tradições, direitos e espiritualidade que lhes são próprias (…) O reconhecimento e o diálogo serão a melhor maneira de transformar as relações históricas marcadas pela exclusão e pela discriminação”, disse o Pontífice na ocasião.

A Igreja na Bacia Amazônica

Seguindo o mandato do evangelho, a Igreja acompanha o ritmo em que as pessoas mais pobres caminham, apontou o cardeal. Nessas realidades, Dom Baretto fala da vitalidade missionária da Igreja na Amazônia. “Esta porção da Terra é o bioma onde a vida é expressa em sua extraordinária diversidade como um presente de Deus para todos os que a habitam e para toda a humanidade. No entanto, é um território cada vez mais devastado e ameaçado”, comentou. Segundo a Doutrina Social da Igreja, é missão de todo cristão estabelecer um compromisso profético para com a justiça, a paz, e a dignidade de todo ser humano sem distinção e com a integridade da criação, em resposta a um modelo de sociedade que produz exclusão e desigualdade, observou o cardeal, que completou: “OPapa Francisco chamou de verdadeira ‘cultura de descarte’ e ‘globalização da indiferença'”.

A Amazônia, além de ser “uma fonte de vida no coração da Igreja” é, segundo Dom Baretto, um dos locais mais biodiversos do mundo, cheio de vida e culturas seculares, cuja existência e identidade estão atualmente em risco por causa do modelo eminentemente neo-extrativo que é imposto. A Igreja tem, para o cardeal, meios, legitimidade a nível local, regional e internacional; uma perspectiva histórica e projeção futura para colaborar com governos, organizações e com os próprios povos para apoiar o interesse genuíno de toda promoção, defesa e aplicabilidade dos direitos humanos.

Todos são chamados a criar as possibilidades de um “futuro sereno”, especialmente para os povos indígenas, frisou Dom Baretto. O Papa escreveu na encíclica Laudato si ‘: “A visão consumista do ser humano, encorajada pelas engrenagens da atual economia globalizada, tende a homogeneizar culturas e a enfraquecer a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade. […] É necessário incorporar a perspectiva dos direitos dos povos e culturas, e assim entender que o desenvolvimento de um grupo social envolve um processo histórico dentro de um contexto cultural e requer o envolvimento continuado de atores sociais locais a partir de seus próprios cultura”(LS 144).

Para Dom Baretto, é necessária uma reflexão sobre a necessidade de busca de novas formas de harmonizar o respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente, de um lado, com desenvolvimento econômico, produtivo e sustentável, de outro. Sob essa perspectiva, o cardeal afirma que a sociedade é chamada a buscar um modelo de desenvolvimento que leve em conta essa realidade intercultural da Amazônia e garanta a proteção dos bens da criação.

Uma fala do Papa é lembrada por Dom Baretto mais uma vez: “Nesse sentido, é indispensável prestar atenção especial às comunidades indígenas com suas tradições culturais. […] Para eles, a terra não é um bem econômico, mas um dom de Deus e dos antepassados ​​que nela habitam, espaço sagrado com o qual precisam interagir para sustentar sua identidade e seus valores. Quando eles permanecem em seus territórios, eles são os que melhor cuidam deles. No entanto, em várias partes do mundo, eles são pressionados a deixar suas terras, a fim de deixá-los livres para projetos extrativistas e agrícolas que não prestem atenção à degradação da natureza e da cultura”(LS 146).

Para esse fim, o cardeal citou a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), criada em setembro de 2014 com a aprovação da Santa Sé por meio de uma carta do Santo Padre Francisco e enviada por intermédio do Cardeal Parolin, Secretário de Estado.

O direito integral dos povos da Pan-Amazônia

“A experiência pastoral de décadas, e dos últimos anos constataram que não apenas alguns países nos quais as indústrias extrativas são responsáveis, mas também empresas estrangeiras e seus países de origem, apoiam e incentivam o investimento no extrativo, público ou privado, além de suas fronteiras nacionais, aproveitando a riqueza da terra às custas de impactos devastadores sobre o meio ambiente amazônico e seus habitantes”, frisou Dom Baretto.

O cardeal recorda que a maioria dos países onde está localizada a Amazônia é signatário das principais convenções internacionais sobre direitos humanos e dos respectivos instrumentos associados aos direitos dos povos indígenas e ao cuidado com o meio ambiente. Portanto, Dom Baretto destaca a existência da certeza do compromisso destes Estados em cumpri-los. “A Igreja deseja ser uma ponte e colaboradora para atingir este objetivo para o bem de cada um dos países representados neste território, para a vida digna e plena dos povos que lá vivem e para o cuidado deste ecossistema essencial para o presente e futuro do planeta”, reforçou.

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (adotada em 13 de setembro de 2007), a qual o papa referiu em várias ocasiões, foi citado pelo cardeal. Dom Baretto recorda que a declaração contém direitos tão importantes quanto o direito à autodeterminação, segundo o qual os povos indígenas determinam seu status político e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural (Artigo 3). “No exercício de sua autodeterminação, os povos indígenas têm direito à autonomia em questões relacionadas com seus assuntos internos e locais (Artigo 4)”, recordou.

“No que diz respeito à firme resposta às mudanças climáticas, que representa uma inevitável crise ecológica global, todos os países que fazem parte da bacia amazônica são signatários do Acordo de Paris, o que confirma o compromisso destes governos com as respectivas contribuições previstas e determinadas a nível nacional. No entanto, dada a ’emergência climática’  enfrentada, deve-se exigir que eles façam muito mais, assim como toda a sociedade global deve trabalhar muito mais efetivamente nesse mesmo objetivo. Cuidar do ecossistema é fundamental para alcançar os objetivos do Acordo de Paris”, salientou o cardeal que citou uma frase do Papa Francisco sobre os povos nativos que: “Quando eles permanecem em seus territórios, eles são os que melhor cuidam deles” (LS 146).

No nível nacional, Dom Baretto relembrou algumas Constituições dos estados amazônicos que incorporaram progressivamente esses mesmos direitos à consulta livre, prévia e informada, que desenvolvem padrões ambientais para reduzir o desmatamento e criam mecanismos para garantir o respeito às reservas naturais e o reconhecimento das terras indígenas. “Embora, deve ser dito claramente, há uma séria limitação ou, em alguns casos, falta de compromisso efetivo ou disposição expressa para cumprir”, reforçou.

“Ao mesmo tempo, os setores indígena, camponês e outros setores populares em cada país construíram processos políticos organizacionais em torno de agendas baseadas em uma perspectiva associada aos direitos legítimos que devem ser reconhecidos e respeitados, desde que estejam dentro da estrutura do Estado de Direito”, apontou Dom Baretto.

Povos indígenas em isolamento voluntário ou povos livres

Os povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV) devem ser considerados, de acordo com o cardeal, com a mais alta prioridade devido ao seu alto grau de vulnerabilidade, sua condição antropológica específica e a necessidade de protegê-los de qualquer processo que possa resultar em uma violação de seus direitos humanos. Dom Baretto cita a afirmação do Papa: “O atraso do passado obrigou a isolar-se a seus próprios grupos étnicos, começou uma história de cativeiro nos lugares mais inacessíveis da floresta para viver em liberdade. Continue defendendo esses irmãos mais vulneráveis. Sua presença nos lembra que não podemos dispor de bens comuns ao ritmo da ganância e do consumo”. 

Vamos fazer o nosso desafio

A Igreja, seguindo o Papa Francisco e o desejo de comunhão com as sociedades, vive para o cardeal uma “cultura do encontro” na Amazônia com os povos indígenas, as comunidades que habitam as margens dos rios, afrodescendentes, pequenos camponeses, habitantes das cidades e comunidades de fé, com um diálogo respeitoso e construtivo com outras religiões e instâncias políticas e sociais.

“Neste espírito, os representantes oficiais da Santa Sé e da REPAM acompanharam os membros dos povos e comunidades amazônicas em diferentes esferas internacionais e regionais do sistema das Nações Unidas, para que possam apresentar as situações particulares que os afetam”, frisou Dom Baretto.

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Os membros da Igreja Católica na Amazônia querem, segundo Dom Baretto, ser testemunhas vivas da esperança, cooperando e dando continuidade a um serviço evangelizador que tenha suas raízes no solo fértil em que vivem, nos povos amazônicos e suas culturas. “Neste sentido, o Sínodo, sendo um evento eclesial, pode ser um valioso sinal da resposta eficaz para a promoção da justiça e a defesa da dignidade das pessoas mais vulneráveis. Acredita-se que as sociedades, os governos e a Igreja em geral podem prestar atenção a essas vozes para assumir de forma mais consistente as respectivas responsabilidades, diferenciadas e potencialmente complementares”, concluiu o cardeal.

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