Nesta quinta-feira, 27, Leão XIV dá início à sua primeira viagem apostólica; religiosos comentam significado da visita à Turquia para comemorar o Concílio de Niceia
Gabriel Fontana
Da Redação

Foto: REUTERS/Ciro De Luca
Pela primeira vez desde sua eleição em 8 de maio, o Papa Leão XIV deixará a Itália. O destino é a Turquia, onde o Santo Padre inicia sua primeira Viagem Apostólica a partir do dia 27 de novembro.
A motivação para essa viagem é especial. Em 2025, completaram-se 1700 anos desde o Concílio de Niceia, marcado como o primeiro concílio ecumênico da história. Convocado pelo Papa Silvestre, o encontro aconteceu logo após o fim da perseguição aos cristãos por meio do Édito de Milão proclamado por Constantino.
A celebração dos 1700 anos do Concílio de Niceia foi bastante aguardada pelo Papa Francisco, que frequentemente citava este evento. Com a sua morte em 21 de abril, coube ao seu sucessor, Leão XIV, visitar o local onde o histórico concílio foi realizado.
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A programação começa na quinta-feira, 27, com a chegada à capital turca, Ancara. O primeiro dia será de compromissos diplomáticos. Na sexta-feira, 28, um dos principais momentos da visita: o encontro ecumênico de oração perto das escavações arqueológicas da antiga Basílica de São Neófito, em İznik (antigamente chamada de Niceia).
Os dias 29 e 30 serão marcados por uma série de encontros com cristãos de outras Igrejas ortodoxas. A tônica da viagem pontifícia à Turquia é o diálogo ecumênico, diretamente relacionado à unidade cristã que buscou-se promover há 17 séculos.
O Concílio de Niceia

Padre Nelson Aguia / Foto: Arquivo pessoal
Membro do grupo de reflexão do Diálogo Inter-religioso e Ecumenismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), padre Nelson Aguia destaca a importância do Concílio de Niceia para a história da Igreja. À época de sua realização no início do século IV, a divindade de Jesus começou a ser questionada e muitas divisões começaram a surgir.
Em meio a uma crise de identidade e de fundamento, os bispos foram convocados para aprofundar a discussão e orientar a fé. “Hoje se fala em Igreja Sinodal, Igreja da conversa, do entendimento e do diálogo. E foi isso o que aconteceu em Niceia”, afirma padre Nelson. “Resolveram ouvir as partes em confronto, e em diálogo, resolver as divisões já existentes num cristianismo que nascia”, acrescenta.
Segundo o sacerdote, esse é o grande legado deixado por Niceia. Apesar dos debates duros, como ficou registrado na história, o diálogo levou ao consenso e ao fim das divisões. “O diálogo ecumênico é hoje, sem nenhuma dúvida, uma grande necessidade no mundo cristão que estamos vivendo”, indica.
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Neste contexto, padre Nelson sinaliza que a viagem do Papa Leão XIV à Turquia a fim de comemorar o Concílio de Niceia dá ânimo aos cristãos para viver o diálogo e a cultura do encontro. “Estarmos juntos significa que realmente nos amamos e sempre criar condições de um entendimento fraterno e puro”, pontua.
Diálogo que gera confiança

Dom Theodore El Ghandour / Foto: Arquivo pessoal
O bispo de Apamea e vigário patriarcal da Igreja Ortodoxa Antioquina no Rio de Janeiro (RJ), Dom Theodore El Ghandour, aponta que a visita do Pontífice, especialmente em seu encontro com o Patriarca Ecumênico em Constantinopla, traz um sinal de amizade entre o Oriente e o Ocidente.
“Quando líderes cristãos se sentam para conversar com serenidade, isso cria confiança. E confiança é o terreno onde o diálogo ecumênico cresce. Não resolve todas as diferenças, mas aproxima corações e mostra ao mundo que buscamos caminhar com respeito”, expressa Dom Theodore.
Para o bispo, a viagem à Turquia tem o importante simbolismo de voltar às fontes da fé, confessada universalmente antes das divisões. “Esta viagem pode mostrar que o Evangelho ainda inspira aproximação e diálogo”, sublinha. “É um testemunho de que a fé cristã não existe para dividir, mas para curar e reconciliar”, complementa.
“Acompanhamos esse encontro com oração, cientes de que a união verdadeira só é possível na confissão da verdadeira fé apostólica”, conclui Dom Theodore.
Interioridade, humildade e caridade
Professor e Doutorando em Ciências Patrísticas pelo Instituto Patrístico Augustinianum de Roma, frei Mário Sérgio Rocha, OSA, pontua como o carisma agostiniano pode ajudar o Papa Leão XIV durante esta viagem. “Filho de Santo Agostinho”, como ele mesmo se definiu em seu primeiro discurso após ser eleito, o Pontífice entende o sentido da unidade.
Segundo frei Mário Sérgio, na tradição agostiniana, a unidade é um dom do Espírito Santo que impulsiona a Igreja, corpo místico de Cristo, a viver “um só coração e uma só alma voltados para Deus”. Tal visão, prossegue o religioso, pode orientar o Santo Padre a dois movimentos complementares: interioridade e humildade; e caridade.
O agostiniano observa que a viagem, antes de tudo, é um chamado à conversão interior. “Ele é convidado a descer à própria consciência, reconhecer que também nós, católicos, carregamos feridas e responsabilidades na história das divisões, e apresentar tudo isso a Deus na verdade e na humildade”, reflete.
A partir disso, o diálogo ecumênico, especialmente com as Igrejas do Oriente, só será autêntico se for expressão de um amor que procura o bem do outro, respeita a sua tradição e sofre com as feridas da separação. “A espiritualidade agostiniana recorda ao Papa que a unidade não se impõe: ela se constrói com paciência, escuta e capacidade de suportar o peso das diferenças sem romper a comunhão”, salienta frei Mário Sérgio.
Unidade, testemunho para o mundo
“Em um mundo marcado por polarizações, guerras religiosas, nacionalismos e violência em nome de identidades”, prossegue o religioso, “uma viagem centrada na unidade cristã tem um alcance que ultrapassa em muito as fronteiras da Igreja”. O agostiniano aponta que estes dias do Papa na Turquia podem oferecer três testemunhos aos não cristãos.
O primeiro testemunho é de um diálogo possível: enquanto tantos conflitos parecem insolúveis, ver Igrejas com histórias de ruptura e feridas se encontrarem em oração, escuta e respeito mútuo mostra que a reconciliação não é uma utopia. “Em linguagem agostiniana, é um sinal de que a graça é mais forte do que o peso de nossa história e de nossas paixões”, exprime.
O segundo testemunho é de uma unidade que não apaga a diversidade. Frei Mário Sérgio recorda que o mundo costuma confundir unidade com uniformidade e, por isso, teme qualquer projeto de unidade como ameaça à identidade. “Quando o Papa viaja para encontrar irmãos de outras tradições cristãs, reconhecendo a riqueza de seus ritos, teologias e espiritualidades, mostra que é possível ser um sem deixar de ser muitos”, frisa.
Por fim, o terceiro testemunho é da paz como fruto do Evangelho. A unidade não é um fim em si mesma, destaca o agostiniano, mas uma forma de evangelização silenciosa. “A visita do Papa à Turquia, vivida nesse espírito, pode dizer ao mundo que o Evangelho não é uma ideologia concorrente entre outras, mas uma força de reconciliação que atravessa fronteiras, culturas e séculos”, comenta.
“Em síntese, esta viagem pode ser um grande ícone agostiniano: o coração inquieto da Igreja, que não se conforma com as divisões, coloca-se a caminho, em direção à unidade, para que o mundo possa entrever, ainda que de longe, a beleza do Deus que reconcilia todas as coisas em Cristo”, conclui frei Mário Sérgio.




