No voo de retorno de sua viagem aos Emirados Árabes, Francisco deu uma longa entrevista aos jornalistas que o acompanhavam; Leia na íntegra
Da redação, com VaticanNews
No voo de retorno dos Emirados Árabes Unidos, nesta terça-feira, 5, o Papa Francisco conversou com os jornalistas. Entre os assuntos, abordou a declaração conjunta assinada com o Grão Imame e a carta de Nicolás Maduro.
“Foi uma viagem muito breve, mas para mim foi uma experiência grande. Penso que toda viagem seja histórica e também que cada dia nosso seja para escrever a história cotidiana. Nenhuma história é pequena. Toda história é grande e digna. E mesmo se for feia, a dignidade está escondida e sempre pode emergir”. Com estas palavras o Papa Francisco introduziu a sua longa conversa com os jornalistas que o acompanharam aos Emirados.
Na entrevista, o Papa falou muito sobre o diálogo com os muçulmanos, mas também respondeu a perguntas sobre a Venezuela e sobre a carta enviada, ao Vaticano, por Nicolás Maduro, bem como sobre os abusos de clérigos contra religiosas.
Leia a entrevista completa:
Quais serão os resultados imediatos dessa viagem e que impressão teve no país?
“Vi um país moderno, fiquei impressionado com a cidade. Até mesmo com a limpeza da cidade. Perguntei-me como fazem para regar as flores neste deserto. É um país moderno, acolhe muitos povos e é um país que olha para o futuro: por exemplo, a educação das crianças. Eles educam olhando para o futuro. Depois, me surpreendeu o problema da água: eles estão procurando para o futuro próximo, pegar a água do mar e torná-la potável, e também a água da umidade e torná-la potável. Sempre procurando por coisas novas. Também ouvi dizer deles: nos faltará o petróleo e estamos nos preparando. Pareceu-me um país aberto, não fechado. Também religiosidade: é um Islã aberto, de diálogo, um Islã fraterno, de paz. Sublinho a vocação para a paz que eu senti ter, não obstante os problemas de algumas guerras na área. Para mim, foi muito tocante o encontro com os sábios do Islã, um encontro profundo. Eram de diferentes lugares e de várias culturas. Isto também indica a abertura desse país a um diálogo regional, universal e religioso. Fiquei impressionado com a conferência inter-religiosa: foi um forte evento cultural. Mencionei isso no discurso, o que fizeram ali, no ano passado, sobre a proteção das crianças na Internet. A pornografia infantil hoje é uma “indústria” que dá muito dinheiro e aproveita das crianças. Esse país percebeu isso. Haverá também coisas negativas, mas obrigado pelo acolhimento”.
Como será aplicada no futuro a Declaração sobre a fraternidade?
“O documento foi preparado com muita reflexão e também oração. Tanto o Grão Imame com a sua equipe, quanto eu com a minha, rezamos muito para conseguir fazer esse documento. Para mim existe somente um grande perigo neste momento: a destruição, a guerra, o ódio entre nós. Se nós fiéis não somos capazes de nos dar as mãos, abraçar-nos, beijar-nos e também rezar, a nossa fé será vencida. Esse documento nasce da fé em Deus que é Pai de todos e Pai da paz. Condena toda destruição, todo terrorismo, desde o primeiro terrorismo da história que é o de Caim. É um documento que se desenvolveu em quase um ano, com ida e volta, orações. Ficou para amadurecer, um pouco confidencial, para não dar à luz a criança antes do tempo. Para que seja maduro.”
Foi uma viagem cheia de encontros, impressões e imagens. Ficou na minha mente a chegada: o senhor foi acolhido com honras militares, com aviões militares que fizeram a trilha com as cores do Vaticano no céu. O que isso tem a ver com o Papa Francisco, que vem com uma mensagem de paz? E em relação ao apelo pela paz no Iêmen, que reações recebeu e quais reações fazem esperar pela paz?
“Eu interpreto todos os gestos de boas-vindas como gestos de boa vontade. Cada um os realiza segundo as próprias culturas. Encontrei um acolhimento muito grande: queriam fazer de tudo, pequenas e grandes coisas porque sentiam que a visita do Papa era uma coisa boa. Alguém disse até uma bênção, Deus sabe. Queriam fazer sentir que eu era bem-vindo. Sobre o problema das guerras: você mencionou uma. Sei que é difícil dar uma opinião depois de dois dias, e depois de ter falado sobre o assunto com poucas pessoas. Digo que encontrei boa vontade no iniciar processos de paz. Isso eu achei como um denominador comum nas coisas das quais eu falei a propósito das situações bélicas. Você mencionou a do Iêmen.”
Após a assinatura histórica de ontem, na sua opinião, quais serão as consequências no mundo islâmico, pensando sobretudo no Iêmen e na Síria? E quais consequências haverá entre os católicos, visto que há uma parte dos católicos que acusa o senhor de deixar-se instrumentalizar pelos muçulmanos?
“Acusam-me de deixar-me instrumentalizar não apenas pelos muçulmanos! Por todos, até mesmo pelos jornalistas! Faz parte do trabalho. Uma coisa quero dizer e repito com clareza: do ponto de vista católico, o documento não foi um milímetro além do Concílio Vaticano II. O documento foi feito no espírito do Vaticano II. Antes de tomar a decisão de dizer: está bem assim, vamos encerrar assim, pedi que um teólogo e também o Teólogo da Casa Pontifícia, que é um dominicano com a bela tradição dominicana, que fosse não atrás das bruxas, mas encontrasse a coisa justa. E ele aprovou. Se alguém se sente mal, eu compreendo, não é algo de todos os dias e não é um retrocesso. É um passo avante que vem de 60 anos atrás, o Concílio que deve se desenvolver. Os históricos dizem que para que um Concílio tenha consequências na Igreja, são necessários 100 anos, estamos na metade do caminho. Aconteceu também comigo. Li uma frase do documento que me surpreendeu e disse a mim mesmo: não sei se é segura. Ao invés, era uma frase do Concílio! No mundo islâmico, existem vários pareceres, alguns mais radicais, outros não. Ontem, no Conselho dos sábios, havia pelo menos um xiita, e falou bem. Haverá discrepâncias entre eles… mas é um processo, os processos devem amadurecer, como as flores, como a fruta».
O senhor acaba de concluir a visita aos Emirados e daqui a pouco irá ao Marrocos. Parece-me compreender que o senhor escolheu falar com interlocutores bem específicos do Islã. O seu documento é ambicioso quanto à educação, pode tocar os fiéis…
«Ouvi dizer de alguns muçulmanos que deveria ser estudado nas universidades, pelo menos em Al-Azhar certamente, e nas escolas. Deve ser estudado, não imposto. A proximidade entre as duas viagens é um pouco casual. Eu queria ir para o encontro em Marrakech (a Conferência intergovernamental sobre as migrações, em dezembro de 2018, ndr), mas havia questões protocolares, não podia ir ao encontro sem fazer um visita ao país. E por isso adiamos a visita e agora coincide com esta viagem. E o Secretário de Estado foi a Marrakech. Foi uma questão diplomática e de educação, a proximidade das datas não foi algo planejado. Mas também ao Marrocos eu sigo as pegadas de São João Paulo II, que foi o primeiro a ir lá. Será uma viagem prazerosa. Recebi convites de outros países árabes, veremos no próximo ano, eu ou outro Pedro. Alguém irá.
A diplomacia vaticana com seus pequenos passos tem uma longa história. Em 1978 mediou entre Argentina e Chile: João Paulo II evitou uma guerra entre os dois países. Soubemos ontem que, da Venezuela, Nicolás Maduro enviou uma carta para reiniciar o diálogo. O que senhor está fazendo ou planeja fazer? O senhor está disposto a mediar?
“A mediação entre a Argentina e o Chile foi um ato corajoso de São João Paulo II, que evitou uma guerra. Há pequenos passos, e o último é a mediação. Há passos iniciais, facilitadores, não apenas para o Vaticano, mas em toda a diplomacia. Faz-se isso na diplomacia. Eu acredito que a Secretaria de Estado será capaz de explicar todos os passos. Eu soube antes da viagem que chegara com a mala diplomática uma carta de Maduro. Eu ainda não a li, vamos ver o que pode ser feito. Mas, para que ocorra uma mediação, é necessária a vontade de ambas as partes, ambas as partes pedindo. A Santa Sé na Venezuela esteve presente no momento do diálogo em que havia (o ex-primeiro-ministro espanhol) Zapatero e dom Tscherrig e depois continuou com dom Celli. E ali nasceu um ratinho. Agora vou ver essa carta, vou ver o que pode ser feito. Mas com a condição de que ambas as partes solicitem. Eu estou sempre disposto. Quando as pessoas vão até ao padre é porque há um problema entre o marido e a mulher, primeiro vai um deles. Mas se pergunta: a outra parte quer ou não quer? Também para os países, essa é uma condição que deve fazê-los pensar antes de pedir uma facilitação ou uma mediação. E irei à Espanha».
No encontro com os anciãos, sobre o que os senhores falaram? Sua mensagem chegou até eles?
“Os idosos são realmente sábios. O Grande Imame falou primeiro, depois cada um deles, começando pelo mais ancião que falava espanhol porque era da Mauritânia e ali aprendera. Até o mais jovem que é o secretário, mas disse tudo em um vídeo. Eu gostei, a especialidade de dois comunicadores. As palavras-chave são sabedoria e fidelidade. Depois eles enfatizaram um caminho de vida no qual esta sabedoria cresce e a fidelidade se torna forte, e daí nasce a amizade entre os povos. Um deles era xiita, outros com diferentes nouances. O caminho de sabedoria e fidelidade leva você a construir a paz, que é verdadeira obra de sabedoria e fidelidade. Fiquei com a impressão de estar entre verdadeiros sábios. Fiquei muito satisfeito”.
Hoje uma menina passou por entre as barreiras e correu até o senhor para lhe entregar uma carta. Queríamos saber se já leu a carta?
“Eu ainda não tive tempo. As cartas estão ali, e eu vou lê-la. Aquela menina é uma menina corajosa! Essa menina tem futuro e eu ouso dizer: pobre marido! Corajosa, gostei. E depois outra menina a seguiu! Que bonito… »
O Grande Imame Al-Tayyib enfatizou o tema da islamofobia. Por que não ouvimos também alguma coisa sobre a “cristianofobia”, sobre a perseguição aos cristãos?
“Eu falei sobre isso. Não naquele momento, mas estou falando disso com frequência. Eu acredito que o documento fosse mais de unidade e de amizade. Mas ele condena a violência e alguns grupos que se dizem islâmicos – mesmo que os sábios digam que isso não é islamismo – e perseguem os cristãos. Eu me lembro daquele pai em Lesbos com seus filhos. Trinta anos de idade, ele chorava e me disse: eu sou muçulmano, minha esposa era cristã e vieram os terroristas do ISIS, eles viram a sua cruz, pediram a ela para se converter e depois de sua recusa eles a degolaram na minha frente. Este é o pão cotidiano dos grupos terroristas: a destruição da pessoa. É por isso que o documento foi de forte condenação”.
O senhor fala sobre liberdade religiosa e recordou que a liberdade religiosa vai além da liberdade de culto. Hoje estamos voltando de um país conhecido por sua tolerância, mas muitos dos católicos que estavam no estádio hoje, pela primeira vez desde que chegaram aos Emirados, puderam celebrar abertamente sua fé.
“Todo processo tem princípios, existe um antes e um depois, mas sem parar. Fiquei impressionado com uma conversa com um adolescente de 13 anos que tive em Roma. Ele me disse: “algumas coisas que o senhor diz me parecem interessantes, mas eu quero lhe dizer que sou ateu: o que devo fazer como ateu para me tornar um homem de paz?”. Eu disse a ele: faça o que você sente, falei com ele um pouquinho. Eu gostei da coragem dele. Ele é ateu, mas busca o bem, e isso também é um processo. Devemos respeitar e acompanhar todos os processos, sejam das cores que forem. Eu acredito que estes são passos avante”
A revista feminina do jornal l’Osservatore Romano publicou um artigo denunciando o abuso sexual de mulheres consagradas na Igreja por parte do clero. Há alguns meses, a União das Superioras Gerais fez uma denúncia pública. Sabemos que o próximo encontro no Vaticano será sobre abusos sobre menores, mas podemos pensar que a Santa Sé possa fazer algo para enfrentar também esse problema com um documento ou diretrizes?
“É verdade, é um problema. O maus-tratos das mulheres são um problema. Atrevo-me a dizer que a humanidade ainda não amadureceu: a mulher é considerada de “segunda classe”. Vamos começar daqui: é um problema cultural. Depois chega-se até aos feminicídios. Há países onde dos maus-tratos das mulheres chega-se ao feminicídio, e antes de chegar à sua questão concreta, uma curiosidade. Vocês façam a pesquisa para saber se é verdade, mas me disseram que o início da história das joias femininas ocorreu em um país muito antigo do Oriente, onde havia a lei para expulsar a mulher. Se o marido – não sei se é verdade – lhe dizia: vá embora, naquele momento com o que estava vestindo, ela tinha que ir sem pegar nada. E então começaram a fazer joias de ouro e pedras preciosas, para ter algo para sobreviver. É verdade, dentro da Igreja, houve clérigos que fizeram isso. Em algumas civilizações de modo mais fortes que em outras. Havia sacerdotes e até bispos que fizeram isso. E eu acho que se faça ainda: não é que a partir do momento em que você percebe isso, isso acaba. A coisa continua. Estamos trabalhando nisso há algum tempo. Suspendemos alguns clérigos, mandamos embora outros e também – não sei se o processo acabou – dissolvemos algumas congregações religiosas femininas que estavam muito ligadas a esse fenômeno, uma corrupção. Deve ser feito algo mais? Sim. Nós temos a vontade? Sim. Mas é um caminho que vem de longe. O Papa Bento teve a coragem de dissolver uma Congregação feminina que tinha um certo nível, porque tinha entrado nessa escravidão, até mesmo sexual, da parte dos clérigos ou da parte do fundador. Às vezes o fundador tira a liberdade das irmãs. Pode chegar a isso. Gostaria de sublinhar que Bento XVI teve a coragem de fazer muitas coisas sobre essa questão. Há uma história: ele tinha todos os documentos sobre uma organização religiosa que tinha dentro corrupção sexual e econômica. Ele tentava falar sobre isso e havia filtros, ele não conseguia chegar lá. No final, o Papa, com o desejo de ver a verdade, fez uma reunião e Joseph Ratzinger, foi à reunião com uma pasta e todos os seus documentos. Quando voltou, disse ao seu secretário: coloque-a no arquivo, venceu a outra parte. Não devemos nos escandalizar com isso, são etapas de um processo. Mas assim que ele se tornou Papa, a primeira coisa que ele disse foi: traga-me a pasta do arquivo. O folclore o faz ver como fraco, mas de fraco ele não tem nada. Ele é um homem bom, um pedaço de pão é pior do que ele, mas ele é um homem forte. Sobre esta questão: reze para que possamos seguir em frente, eu quero seguir em frente. Existem casos. Estamos trabalhando».