CATEQUESE DO PAPA FRANCISCO
Biblioteca do Palácio Apostólico – Vaticano
Quarta-feira, 26 de agosto de 2019
Boletim da Santa Sé
Tradução: Liliane Borges (Canção Nova)
4. “Curar o mundo”
Caros irmãos e irmãs, bom dia!
Diante da pandemia e suas consequências sociais, muitos correm o risco de perder a esperança. E neste tempo de incerteza e angústia, convido a todos a acolherem o dom da esperança que vem de Cristo. É Ele quem nos ajuda a navegar nas águas tumultuosas da doença, da morte e da injustiça, que não têm a última palavra sobre o nosso destino final.
A pandemia destacou e agravou os problemas sociais, especialmente a desigualdade. Alguns podem trabalhar em casa, enquanto para muitos outros isso é impossível. Algumas crianças, apesar das dificuldades, podem continuar recebendo educação escolar, enquanto para muitas outras isso parou abruptamente. Algumas nações poderosas podem emitir dinheiro para lidar com a emergência, enquanto para outras isso significaria hipotecar o futuro.
Esses sintomas de desigualdade revelam uma doença social; é um vírus que vem da economia doente. Devemos dizer simplesmente: a economia está enferma. Ela adoeceu. É o fruto de um crescimento econômico iniquo – esta é a doença: o fruto de um crescimento econômico iníquo que prescinde dos valores humanos fundamentais. No mundo de hoje, poucos riquíssimos possuem mais do que todo o resto da humanidade. Repito isso porque nos faz pensar: poucos riquíssimos, um grupinho, possuem mais do que o resto da humanidade. Está é a pura estatística.
É uma injustiça que grita ao céu! Ao mesmo tempo, este modelo econômico é indiferente aos danos causados à casa comum. Não se cuida da casa comum. Estamos próximos de superar muitos limites do nosso maravilhoso planeta, com consequências graves e irreversíveis: da perda da biodiversidade e da mudança climática até o aumento do nível dos mares e a destruição das florestas tropicais. A desigualdade social e a degradação ambiental caminham juntas e têm a mesma raiz (cfr Enc. Laudato si’, 101): o pecado de querer possuir, de querer dominar os irmãos e as irmãs, de querer possuir e dominar a natureza e o próprio Deus. Mas este é desígnio da criação.
“No início, Deus confiou a terra e seus recursos à gestão comum da humanidade, para que o homem dela tomasse conta” (Catecismo da Igreja Católica, 2402). Deus nos pediu para dominar a terra em seu nome (conferir Gn 1,28), cultivando-a e guardando-a como um jardim, um jardim de todos ( cf. Gn 2,15). Enquanto “cultivar” significa arar ou trabalhar (…), “guardar” quer dizer proteger e preservar (LS, 67). Mas atenção para não interpretar isso como carta branca para fazer da terra aquilo que se quer. Não. Existe “uma relação de reciprocidade responsável (ibid) entre nós e a natureza. Recebemos da criação e retribuímos por nossa vez. “Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo que tem necessidade para a própria sobrevivência, mas também tem o dever de tutelá-la” (ibid). Ambas as partes.
De fato, a terra “nos precede e nos foi dada” (ibid.) por Deus “a todo o gênero humano” (Catecismo, 2402). E, portanto, é nosso dever garantir que seus frutos cheguem a todos, não apenas a alguns. E este é um elemento-chave de nossa relação com os bens terrenos. Como recordaram os padres do Concílio Vaticano II, «o homem, utilizando estes bens, deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui não só como suas, mas também como comuns, no sentido de que podem beneficiar não só ele, mas também os outros. »(Constituição Pastoral Gaudium et spes, 69). Com efeito, «a posse de um bem faz de quem o possui administrador da Providência, para que dê frutos e os partilhe com os outros» (CIC, 2404). Somos administradores de bens, não donos. Administradores. “Sim, mas o bem é meu”. É verdade que é seu, mas para administrá-lo, não para tê-lo egoisticamente para você.
Para assegurar que aquilo que possuímos traga valor para a comunidade, “a autoridade política tem o direito e o dever de regulamentar o legítimo exercício do direito de propriedade em função do bem comum” (ibid 2406). [1] A “A subordinação da propriedade privada à destinação universal dos bens (…) é uma regra de ouro do comportamento social, e o primeiro princípio de todo o ordenamento ético-social” (LS, 93) [2]
Propriedade e dinheiro são ferramentas que podem servir à missão, mas facilmente os transformamos em fins, individuais ou coletivos. E quando isso acontece, os valores humanos essenciais são afetados. O homo sapiens é deformado e se torna uma espécie de homo œconomicus – no pior sentido – individualista, calculista e dominador. Esquecemo-nos que, criados à imagem e semelhança de Deus, somos seres sociais, criativos e solidários, com uma imensa capacidade de amar. Muitas vezes, esquecemos disso. Na verdade, somos os seres mais cooperativos entre todas as espécies, e florescemos em comunidade, como pode ser visto claramente na experiência dos santos. [3] Há um ditado espanhol que me inspirou essa frase, e é assim: florecemos en racimo como los santos. Florescemos em comunidade como podemos ver na experiência dos santos.
Quando a obsessão em possuir e dominar exclui milhões de pessoas dos bens primários; quando a desigualdade econômica e tecnológica é tal que dilacera o tecido social; e quando o vício do progresso material ilimitado ameaça o lar comum, então não podemos ficar olhando. Não, isso é desolador. Não podemos ficar parados e assistir! Com o olhar fixo em Jesus (cf. Hb 12, 2) e com a certeza de que o seu amor opera através da comunidade dos seus discípulos, devemos todos agir juntos, na esperança de gerar algo diferente e melhor. A esperança cristã, enraizada em Deus, é a nossa âncora. Sustenta a vontade de compartilhar, fortalecendo nossa missão como discípulos de Cristo, o qual compartilhou tudo conosco.
E isso foi compreendido pelas primeiras comunidades cristãs, que, como nós, viveram tempos difíceis. Conscientes de formar um só coração e uma só alma, eles colocam todos os seus bens em comum, dando testemunho da graça abundante de Cristo sobre eles (cf. At 4, 32-35). Nós estamos vivendo uma crise. A pandemia colocou todos nós em crise. Mas lembre-se: de uma crise não se pode sair iguais, ou saímos melhor, ou saímos pior. Essa é nossa opção. Depois da crise, continuaremos com esse sistema econômico de injustiça social e desprezo pelo cuidado com o meio ambiente, com a criação, com a casa comum? Pensemos sobre isso. Podem as comunidades cristãs do século XXI recuperarem esta realidade – zelo pela criação e justiça social caminham juntas -, testemunhando assim a Ressurreição do Senhor. Se cuidarmos dos bens que o Criador nos dá, se colocamos em comum o que possuímos de uma forma que a ninguém falte, poderemos realmente inspirar esperança para regenerar um mundo mais saudável e mais justo.
E, finalmente, pensemos nas crianças. Leia as estatísticas: quantas crianças, hoje, morrem de fome por uma má distribuição das riquezas, por um sistema econômico como disse antes; e quantas crianças, hoje, não têm direito à escola, pelo mesmo motivo. Que seja esta imagem, de crianças com fome e falta de educação, que nos ajude a compreender que depois desta crise temos que sair melhores. Obrigado.