CARTA DO PAPA

“A história da Igreja ajuda-nos a olhar para a Igreja real”, afirma Papa

Em carta divulgada nesta quinta-feira, 21, Francisco apresenta reflexões sobre estudo da história da Igreja e pede por desenvolvimento de sensibilidade histórica

Da Redação, com Boletim da Santa Sé

Foto: Luca Serazzi via Wikimedia Commons

A Santa Sé publicou, nesta quinta-feira, 21, uma carta do Papa Francisco sobre a renovação do estudo da história da Igreja. Uma coletiva de imprensa foi realizada para apresentar o documento, que dá continuidade à Carta do Santo Padre sobre o papel da literatura na educação publicada em 4 de agosto deste ano.

No início do texto, o Pontífice registra o desejo de que esta questão seja levada em conta na formação dos novos padres – e de outros agentes pastorais –, promovendo nos jovens estudantes de teologia uma verdadeira sensibilidade histórica. Francisco se refere não apenas a um conhecimento profundo e atualizado, mas ao despertar de uma clara familiaridade com a dimensão histórica própria do ser humano.

“Ninguém pode saber verdadeiramente quem é, e nem o que pretende ser amanhã, se não alimentar o laço que o liga às gerações que o precederam. E isso não se aplica somente ao nível da história do indivíduo, mas também ao nível mais amplo da história da comunidade. (…) Caso contrário, restaria apenas a memória pessoal de eventos ligados ao próprio interesse ou às próprias emoções, sem uma verdadeira ligação com a comunidade humana e eclesial em que vivemos”, escreve o Papa.

Sensibilidade histórica

“A história da Igreja ajuda-nos a olhar para a Igreja real, a fim de que possamos amar a Igreja que existe realmente e que aprendeu – e continua a aprender – com os seus erros e quedas.”
– Papa Francisco

Ele sinaliza que uma “correta sensibilidade histórica” ajuda a desenvolver um sentido de proporção e medida e uma capacidade de compreender a realidade “sem abstrações perigosas e desencarnadas”, tal como ela é e não como se imagina ou gostaria que fosse. “Assim, somos capazes de tecer uma relação com a realidade que nos convoca para a responsabilidade ética, a partilha, a solidariedade”, pontua.

“A história da Igreja ajuda-nos a olhar para a Igreja real”, prossegue o Pontífice, “a fim de que possamos amar a Igreja que existe realmente e que aprendeu – e continua a aprender – com os seus erros e quedas. Esta Igreja, que se reconhece a si própria mesmo nos seus momentos mais sombrios, torna-se capaz de compreender as manchas e as feridas do mundo em que vive. E, se procura curá-lo e fazê-lo crescer, fá-lo-á da mesma forma que tenta curar-se e fazer crescer a si mesma, mesmo que muitas vezes não o consiga”.

Trata-se de uma retificação à abordagem que leva à compreensão da realidade a partir da defesa de si próprio, observa o Santo Padre, que sublinha a necessidade de educar os candidatos ao sacerdócio segundo esta sensibilidade histórica. Neste contexto, Francisco alerta para uma espécie de “desconstrucionismo”, que “deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo”.

Atenção às ideologias

Diante disso, o Papa reiterou a necessidade de todos renovarem sua própria sensibilidade histórica, citando a Exortação Apostólica Christus Vivit para provocar uma reflexão:

“Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da experiência dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos seus planos. Assim procedem as ideologias de variadas cores, que destroem (ou desconstroem) tudo o que for diferente, podendo assim reinar sem oposições. Para isso, precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu”.

O Pontífice acrescenta que “contornar a história aparece muitas vezes como uma forma de cegueira que nos leva a ocuparmo-nos e a gastar energias num mundo que não existe, colocando falsos problemas e orientando-nos para soluções inadequadas. Algumas destas leituras podem ser úteis a pequenos grupos, mas não certamente à totalidade da humanidade e da comunidade cristã”.

O papel dos historiadores

“Contornar a história aparece muitas vezes como uma forma de cegueira que nos leva a ocuparmo-nos e a gastar energias num mundo que não existe, colocando falsos problemas e orientando-nos para soluções inadequadas. Algumas destas leituras podem ser úteis a pequenos grupos, mas não certamente à totalidade da humanidade e da comunidade cristã.”
– Papa Francisco

Diante disso, o Santo Padre enfatiza a urgência de uma maior consciência histórica à medida que “se alastra a tendência de tentar dispensar a memória ou de construir uma memória à medida das necessidades das ideologias dominantes”. Além disso, sublinha a importância do trabalho dos historiadores, que podem combater as mistificações e os revisionismos interesseiros que visam a justificar guerras, perseguições, produção, venda e consumo de armas e tantos outros males.

“Temos hoje uma enxurrada de memórias, muitas vezes falsas, artificiais e até inverídicas, e, ao mesmo tempo, uma ausência de história e de consciência histórica na sociedade civil e também nas nossas comunidades cristãs”, alerta Francisco. “O papel dos historiadores e o conhecimento das suas descobertas são hoje decisivos e podem ser um dos antídotos contra este regime mortífero de ódio que se assenta na ignorância e no preconceito”, completa.

Ao mesmo tempo, o conhecimento aprofundado e participativo da história revela que não se pode lidar com o passado a partir de uma interpretação rápida e desligada das suas consequências. “A realidade, passada ou presente, nunca é um fenômeno isolado que possa ser reduzido a simplificações ingênuas e perigosas”, cita o Papa, apontando que os historiadores podem contribuir para a compreensão da complexidade através do método rigoroso utilizado na interpretação do passado.

Não ao esquecimento

Voltando-se para a história da Igreja, o Pontífice afirma que não faltaram, ao longo de tantos séculos, clérigos e leigos que foram infiéis ao Espírito de Deus. “Também nos nossos dias”, indica, “a Igreja não deixa de ver quanta distância separa a mensagem por ela proclamada e a humana fraqueza daqueles a quem foi confiado o Evangelho”. Apesar disso, a postura adotada não deve ser de esquecimento, mas de consciência e combate às falhas, para que não se constituam obstáculos para o anúncio do Reino de Deus.

O Santo Padre cita, neste contexto, a Carta Encíclica Fratelli Tutti, na qual escreve: “hoje é fácil cair na tentação de virar a página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para diante. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa (…) É muito salutar fazer memória do bem. O perdão não implica esquecimento (…) Mesmo quando houver algo que por nenhum motivo devemos permitir-nos esquecer, todavia podemos perdoar”.

Observações sobre ensino da história da Igreja

Aproximando-se do encerramento de sua carta, Francisco apresenta algumas observações sobre o ensino da história da Igreja. Ele alerta ao risco de uma abordagem meramente cronológica ou até mesmo um desvio apologético, que não promove a sensibilidade histórica citada anteriormente.

Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa.
– Papa Francisco, na Carta Encíclica Fratelli Tutti

Além disso, o Papa afirma que “a História da Igreja, ensinada como parte da Teologia, não pode ser desligada da história das sociedades”. Da mesma forma, é necessário “fazer história” da Igreja – assim como “fazer teologia” – não somente com rigor e exatidão, mas também com paixão e envolvimento.

Por fim, o Pontífice sugere que a história da Igreja pode ajudar a recuperar a experiência do martírio, sob a consciência de que não há história da Igreja sem martírio e que esta memória nunca deve ser perdida. “Precisamente onde a Igreja não triunfou aos olhos do mundo, foi quando alcançou a sua maior beleza”, expressa.

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