Uma bolsa intercalada por linhas verticais pretas e brancas, um caderno amarelo de capa dura e uma máquina fotográfica com diversos registros da visita a um dos países mais pobres da América Latina.Em um análise descuidada, nada de tão especial assim. No entanto, para o seminarista haitiano Honoré Eugur, esses são apenas alguns dos objetos que o fazem lembrar do inesquecível encontro com a fundadora da Pastoral da Criançae da Pastoral da Pessoa Idosa, a doutora Zilda Arns, morta no terremoto que atingiu o Haiti em 12 de janeiro.
Eugur chegou ao Brasil na última sexta-feira, acompanhado do padre brasileiro Carlos Martins de Borba, que morava há dois anos e meio em Porto Príncipe. Ambos fazem parte da Congregação dos Oblatos de São Francisco de Sales, que mantinha trabalhos pastorais em “Citi Soleil”, uma das maiores favelas da capital haitiana.
Agora, Eugur mora em Viamão, onde deve seguir outras etapas de formação religiosa. Ao desembarcar em solo gaúcho, trouxe consigo os pertences de Zilda; são uma espécie de legado que interessa não apenas à família, mas a uma legião de quase 300 mil voluntários que abraçaram a causa iniciada no Paraná, em 1983.
A irmã Beatriz Hobolt, da Congregação das Irmãs Escolares de Nossa Senhora, é prima de Zilda. Ela mora em Porto Alegre e está com o material, que deve chegar às mãos da família da médica neste sábado, 20.
Surge a pergunta: como tudo isso foi parar com o seminarista? A história ajuda a construir os últimos momentos de vida da médica sanitarista brasileira que revolucionou a batalha contra a desnutrição infantil.
.: Ouça entrevista em que Zilda fala sobre o trabalho realizado pela Pastoral da Criança
Visita ao Haiti
Desde 2008, a Pastoral da Criança Internacional (PCI) leva a experiência brasileira para outros lugares do mundo. A ida de doutora Zilda para o Haiti foi motivada exatamente pelo desejo de articular de modo sólido esse trabalho por lá.
“Como trabalhamos muito com causas sociais e eu já tinha a experiência com a Pastoral no Brasil, apoiávamos essa iniciativa. A doutora apontou que os maiores desafios eram a formação de lideranças que implementassem as ações no país, bem como a formação desses mesmos líderes”, destaca o padre Carlos.
Os seminaristas dos Oblatos eram alguns dos vários religiosos que participavam de uma palestra com Zilda no momento do território.
“Ela falou muito sobre a importância do acompanhamento da família como saída para o sofrimento do mundo e das crianças carentes. Era uma pessoa com o coração grande e aberto a acolher as situações difíceis”, afirma Eugur.
Como eram muitas as perguntas sobre a Pastoral, o haitiano conta que ele e alguns outros presentes conversaram com a médica após a palestra. Como Zilda percebeu que Eugur falava português, pediu que anotasse seus contatos na agenda. “Eu disse que já tinha o contato dela no cartão que havia recebido mas ela insistiu: ‘Escreve para mim'”, recorda, emocionado.
“Enquanto ela seguia conversando com outras pessoas, ficou cerca de um metrô de distância de mim. Eu anotava os meus dados e nem consegui terminar de escrever o e-mail, pois começou o terremoto”, narra.
Eugur baixa o tom da voz ao contar que todos os que cercavam a médica morreram, atingidos pelos escombros do prédio.
“Dá para perceber que era uma pessoa de Deus, pelo seu jeito de ser, de falar. Para mim, ela se tornou um exemplo de como seguir o Evangelho, pois queria que todos tivessem uma vida digna como pessoa, entendia o sofrimento dos outros”.
O seminarista garante que pessoas como Zilda não morrem. “Elas continuam vivas, pois a missão continua. Ela agora está feliz no Céu e gostaria que aquilo que começou continuasse”, salienta.
Testemunha ocular
A irmã Beatriz Hobolt trabalhou durante mais de 10 anos na coordenação nacional da Pastoral da Criança. Seu engajamento começou na missão começou com um questionamento: “Queria entender porque essas mulheres – que são a maioria, cerca de 92% – eram tão entusiasmadas pela causa”.
Ela conta que ficou surpresa pelo carinho, dedicação e entusiamo demonstrados por Zilda, atitudes que se disseminavam entre os voluntários.
“Mesmo com toda a dedicação à família, ela não tinha outra coisa em mente que não fosse salvar as crianças pobres”. A irmã ilustra essa afirmação com uma história real: “Um neto dela, com dois ou três anos, perguntou o que era mais importante para a avó. Ela começou a falar sobre os filhos, sobre a família, enfim. Mas o pequeno disse que não, que ele achava que a avó gostava mais do que tudo das crianças pobres. Imagine, se uma criança pequena assim pôde perceber isso!”
De tudo, a irmã guarda um bom orgulho: “de ter tido uma parente tão dedicada”, assinala.
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