Artigo - Dom Walmor

"Tesouro em vaso de barro": reflexão do presidente da CNBB desta semana

Bispo afirma que a luz da fé é a única que possibilita enxergar o invisível e tem em si as propriedades para fazer de cada cristão uma força de amor nesta configurada crise

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

O tesouro da fé, com sua força sustentadora, é indispensável alicerce para a humanidade, ainda que as assimilações das práticas religiosas e políticas tenham desvirtuado a vivência da fé. Assim, o que deveria ser uma rica experiência se distanciou da essência da verdade e do amor, próprios desse tesouro, causando prejuízos e perda de credibilidade.

O retorno às fontes da fé, à sua vivência testemunhal, longe das perigosas divisões e tendências ideológicas, comprova a retomada de um caminho iluminado capaz de qualificar a condição existencial de cada pessoa e, consequentemente, a sua cidadania, conduzindo a humanidade na direção do amor e da verdade.

A inteligente referência à imagem simbólica do vaso de barro, que guarda o tesouro da fé, é um recurso com força pedagógica, usado pelo apóstolo Paulo, em sua missão desenvolvida em contextos urbanos semelhantes aos atuais. Um tempo marcado pelas polarizações e arriscada relativização de valores e princípios. A exemplo do que se assiste hoje, grupos e segmentos se digladiavam, provocando preocupante distanciamento do tesouro da fé.

Os argumentos ideológicos na defesa da fé se aproximam, pelos extremos, da conduta daqueles que a instrumentalizam por interesses político-partidários. Conduzem ao caos, acelerando o enfraquecimento das relações entre os que creem. Incapacitam ou impedem que a força da fé reoriente os caminhos da humanidade na direção do amor de Deus. Nesse horizonte, lamentavelmente, os cristãos gastam muito tempo com disputas a partir de suas diferenças. Deixam-se engolir por dinâmicas hegemônicas, de caráter partidário, acentuando ainda mais os distanciamentos.

É fato que as disputas crescentes e as resistências multiplicadas não contribuem para a construção de um novo tempo, e retardam a recepção do que é genuíno da fé, pela Palavra de Deus, com a força própria da tradição. Assim, pode-se perceber que o ponto de partida das divisões não é a autenticidade da fé, mas a disputa a partir de lugares que evidenciam queda de braço entre ideologias de matizes diferentes. O contexto revela um confronto que não encontrará a solução do entendimento e do fortalecimento, a exemplo do que requer a construção de uma sociedade assentada nas dinâmicas do desenvolvimento integral – com crescimento sustentável e relações cidadãs em parâmetros civilizatórios que permitam o diálogo.

Vale pensar o próprio constitutivo da fé a partir da escuta que impulsiona ao indispensável diálogo, capaz de fazer das diferenças a riqueza e a consequente força criativa de reconstrução. Mas, ao contrário, fala-se muito sem escutar integralmente o outro e a si mesmo. Discurso autodestrutivo que se configura por descompassos, rigidez, acusações.

É fundamental ter presente o discernimento de que a palavra do cristão, inspirada pelo Espírito Santo, deve ser edificante, incluir a correção, a crítica necessária e, sobretudo, o compartilhamento de nova compreensão, de entendimentos que construam e desenvolvam novas condutas à luz dos valores do Evangelho. O cristão é morada do Espírito Santo, logo, o que diz e o que faz há de ser movido por esse mesmo Espírito. Na contramão dessa direção e dessas dinâmicas, já não é Deus quem age.

Por isso mesmo, a cidadania civil precisa da qualificada cidadania cristã. Algo que se constrói na vivência da fé e tem seu ponto de partida no retorno à fonte dessa mesma fé. Mas dos assoreamentos dessa fonte, vêm o risco das disputas figadais sem solução, empurrando indivíduos ao contexto de criminalização por falta de respeito à inviolável dignidade de toda pessoa. O momento cultural e sociopolítico, como também religioso, indica a importância de assimilação e práticas que, cotidianamente, devolvam as pessoas à necessária conexão com a força transformadora da fé, recebendo desse tesouro uma sabedoria com claridade própria para entendimentos, correções e alinhamentos em busca do bem e da verdade.

Urge a purificação dos interesses partidários hegemônicos, com a transparência de propósitos e a estrita fidelidade aos valores cristãos inegociáveis, para o retorno à fonte inesgotável da fé e, assim, beber de sua água com toda a humildade. A luz da fé é a única que possibilita enxergar o invisível e tem em si as propriedades para fazer de cada cristão uma força de amor nesta configurada crise, abrindo o ciclo de contribuições que só o evangelho pode oferecer, em diálogos construtivos, entendimentos na busca da verdade e da fraternidade solidária.

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Dom Walmor

*O Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, é doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, Itália) e mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma, Itália).

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